effyzztein Manuela

Houve vários momentos em que Craig imaginou estar vivendo um sonho. Era apenas bom demais para estar acontecendo com alguém como ele, um homem que ainda carregava tanta culpa nas costas e provavelmente o faria até o dia de sua morte. Simplesmente inacreditável. Ele gostaria que nunca precisasse ir embora, mesmo sabendo que tudo que é bom não durava muito. Agora, ele se arrepende por não ter aprendido essas palavras mais cedo.


Romantizm Yalnızca 21 yaş üstü (yetişkinler) için.

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okuma zamanı
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Capítulo Um

I.

24 de dezembro de 1786.

Craig se perguntava quanto tempo mais ele aguentaria até perder a consciência. Essa era uma das principais perguntas que perturbavam sua mente durante toda aquela caminhada que parecia estar durando uma vida inteira.

Ele deveria ter pego mais peças de roupa antes de fugir com Tricia, com absoluta certeza, ou ao menos um mapa para saber onde haveria a cidade mais próxima, sentindo-se um tolo por ter esquecido totalmente por breves segundos o quão rigoroso o inverno era naquela parte da Alemanha. Ele se amaldiçoou desde o início do caminho, mas agora não era uma boa hora para pensar sobre o passado quando o objetivo mais importante no momento era não morrer de hipotermia.

O peso que carregava nos braços não servia de muita ajuda, inclusive, muito menos a neve grossa ao redor dos pés que o fazia se desequilibrar várias vezes durante o trajeto, assim como a exaustão crescente, o clima, a fome, sua estabilidade mental que estava gravemente danificada naquele ponto. Nada, absolutamentenadaestava ao seu favor naquele dia, e não seria possível descrever em palavras o quanto ele apenas queria se deixar sucumbir pela neve pesada e desistir do futuro que ele sempre soube que seria difícil. Mas isso estava fora de cogitação. Simplesmente não podia ser uma opção. Se estivesse em outras circunstâncias, teria se dado um soco por pensar asneiras.

Os braços apertavam forte sua irmã contra o peito, inconscientemente procurando um pouco de calor para si mesmo no corpo dela também. Se tornando cada vez difícil continuar em pé com os membros lentamente se encolhendo sem que permitisse. Sua visão estava começando a ficar turva, algo que estava começando a se tornar demais para apenas ignorar. O horizonte se dobrava e desdobrava em sua frente, e ele estava tentando, ecomoestava, não entrar em pânico devido à isso.

Ele não podia morrer agora. Não podia. Ele precisava cuidar de Tricia, ele era tudo que ela tinha agora, mas havia alguma pequena chance de sobrevivência para eles dois, apesar de tudo? Eles estavam perdidos no frio, congelando em segundos, sem comida, dinheiro, um lugar para onde ir, alguém que pudessem confiar. Eles não poderiam viver fugindo para sempre, para onde eles iriam se fossem descobertos? O que mais restava para eles se não queimar numa fogueira?

Quanto tempo levaria até que suas pernas cedessem e desmaiasse ali mesmo?

Apenas continue andando.Ele rapidamente pensou consigo mesmo antes de afastar aquele tipo de pensamento para bem longe. Eram delírios e paranóias que não mereciam atenção agora. Não era hora para isso. Tinha que seguir em frente e pensar no agora. Tinha que achar algum local quente para se abrigar o mais rápido possível e garantir que ficassem seguros.

Mas para onde, então?

— Craig... - ele ouviu uma pequena tosse nos bolo de tecidos que se encontrava agarrado em seu peito, provavelmente consciente de sua agitação devido a sua respiração tão acelerada. Uma parte de seu ser pareceu ter se acalmado, enquanto a outra apenas se desesperado ainda mais - Q-Quanto tempo ainda falta? N-nós... nós...

— Acalme-se, não falta muito... - Craig sussurrou, palavras saindo de sua boca como um assobio fraco. - Estamos quase lá... aguente mais um pouco.

Os olhos se fecharam enquanto ele andava sem que ele notasse, contudo, ele não tentou abri-los novamente. Deus, ele estava tão, tão cansado, e com tanto,tantofrio.

— Vai ficar tudo bem, eu prometo, nós vamos sair dessa... - o sussurrou saiu tão baixo que Tricia mal conseguiu ouvi-lo - vai ficar... tudo--

— Craig! - ela gritou assim que sentiu os braços do irmão perderem a firmeza ao redor dela abruptamente - V-Você precisa se manter acordado, apenas por mais um tempo! Nós vamos conseguir, você mesmo disse isso!

Ele abriu a boca para responder; alguma coisa vaga, uma confirmação de que estava tudo bem e que ela não deveria se preocupar com nada. Que ele resolveria isso por ela e que tudo ficariabemem breve, como sempre esteve, mas que aos ouvidos dela e de qualquer outra pessoa que ouvisse não passaria de murmúrios incoerentes e sem sentido de um homem que não estava mais pensando direito, mas antes de sequer abrir a boca, os joelhos de Craig finalmente enfraqueceram e se afundaram junto ao resto das pernas na neve.

Seu corpo estava pesado, por mais que tentasse recuperar os movimentos dele desesperadamente. Ele sentiu o mais extremo de frio que já sentiu na vida engolir cada fibra de seu corpo quando a neve engoliu mais um pouco de seu corpo, no pior momento possível. E mesmo não faltando um segundo de investidas para apenas se levantar e continuar seu caminho, ele continuava parado, imóvel, com os membros endurecendo e com o desespero insuportável o fazendo gastar mais das poucas energias que ele duvidava que ainda tinha consigo.

Era assim o sentimento de morrer congelado? Ele se perguntava, mas após duas mãos trêmulas e pequenas envolverem as laterais de seu rosto gentilmente, como se fosse feito de porcelana e o mínimo toque fosse capaz de o quebrar em pedacinhos, se perdeu em algum lugar de sua consciência.

Tricia balançava os ombros dele e chamava por seu nome insistentemente, o forçando a olhar para ela. Um par de orbes azuis o olharam como se ele já estivesse morto há muito tempo, tão tristes, mas sem nenhuma lágrima. Talvez já tivessem congelado.

— Trish... - ele suspirou, uma silhueta de um sorriso se formava em seu rosto, os olhos continuavam fechados, o corpo se recusando a continuar em pé e seu dono aos poucos desistindo de contrariá-lo. - Volte para seu quarto, não se preocupe, eu vou resolver isso, tudo bem? Apenas volte....

— Olhe! Ali na frente, rápido! - ela gritou mais uma vez, a voz falhando e alternando de volume, denunciando seu choro - eu estou vendo, estou vendo algo... acho que parece uma mansão! Craig, precisamos ir! Rápido!

Ao ouvir essas palavras, alguma coisa pareceu ter se acendido novamente em sua mente. Usando o mínimo das forças que ele não tinha mais, ele conseguiu mover as pálpebras pela última vez e desejar com todo seu ser que aquelas palavras não fossem apenas outro truque de sua mente e na verdade Tricia já estivesse morta aos seus pés.

A visão continuava embaçada. Por um tempo, a única coisa que conseguiu ver foram os pequenos grãos de gelo caindo do céu calmamente, tão puros ao olhar como se a dor causada pela friagem que traziam ao tocar a pele nua não existisse, mas não demorou muito para realmente conseguir enxergar de fato a sombra de uma grande construção a alguns passos de distância de onde estavam, em meio deles.

Pela última vez, um fio sutil de esperança se formou em seu peito. Seu coração se apertou forte e toda a energia que ainda lhe restava correu para todos os lados dentro de si. Ele passou uma das mãos enluvadas sobre o próprio rosto várias e várias vezes para ter certeza que não era uma alucinação.

— Ali, não está vendo? Vamos, rápido! - Tricia gritou, desesperadamente tentando arrastá-lo e manter aquele tão frágil fio ainda intacto.

Com muito esforço, o único grão que ainda conseguia manter, Craig conseguiu se apoiar nas próprias pernas novamente, sem carregar a irmã no colo desta vez, e se arrastar segurando a mão dela com tudo que conseguia até o local. O corpo se assemelhando à um saco enorme enchido de areia se movendo sem rumo. Ele nem mesmo conseguia sentir as próprias pernas, mas ele continuava firme, andando o mais rápido que podia.

Onde estava com a cabeça durante todo esse tempo? Como não conseguiu ver o que estava bem a sua frente? Como conseguiu ser tão tolo de se deixar levar pelo cansaço e quase matar ele mesmo e sua irmã no meio do nada dessa forma? Craig balançou a cabeça freneticamente na tentativa desesperada de se manter focado, por mais que seu maior desejo fosse se encher de socos pela estupidez, e então seus passos se tornaram mais velozes, apesar do peso continuar em suas botas.

Sem que se desse conta, em questão de poucos minutos que mais pareceram uma eternidade, ele pode sentir subitamente a madeira robusta da porta de entrada tocando as pontas de seus dedos das mãos. Craig quase suspirou de alívio, mas ainda não era hora para isso.

Ele tentou bater e anunciar sua chegada, disse que estava com uma criança e precisava de ajuda por aquela noite, mas não recebeu nenhuma palavra em resposta. Ainda assim, ele continuou batendo, sem se importar com o fato de suas mãos doerem como o inferno a cada soco que transferia desesperadamente contra a porta. Esperneou com tudo que tinha nos pulmões para deixá-los entrar até que a voz não saísse mais com tanta clareza. Tudo acontecendo em um período muito curto de tempo para apenas não dar espaço para sua mente começar a delirar novamente suas paranoias e deixar a possibilidade daquela casa estar abandonada apitar em sua cabeça.

Seu corpo estava começando a enfraquecer novamente com o passar do tempo, seu desespero crescendo gradativamente. Ele jurou que estava ouvindo Tricia chorar novamente ao seu lado também, mas, então, houve um rangido.

Um rangido barulhento de algo grande se arrastando no chão ressoou bem ao lado de seus ouvidos, mas que não o fez imediatamente tapar as orelhas de desconforto devido ao estado tão delirante em que ele estava. Tão rápido que se não fosse pela mudança abrupta de posição dos portões em suas mãos, Craig teria perdido totalmente.

A única coisa que conseguiu identificar com sua visão distorcida foi a vaga escuridão que olhava-o de volta num pequeno vão que havia sido aberta entre as duas portas, completamente escuro, nenhuma silhueta sendo iluminada pela luz ofuscante e branca de fora, ele mal podia ver ao menos um rosto fosco na abertura.

Ninguém parecia estar do outro lado, mas ele gritou ao vazio mesmo assim.

— Você precisa nos ajudar! - ele começou, com a voz tão seca que soou como um sopro. Mesmo algo tão simples como falar parecia estar cortando sua garganta naquele ponto - Estou com a minha irmã mais nova comigo, estamos perdidos e não temos para onde ir, vamos morrer se continuarmos aqui fora no frio! E-Eu preciso... N-Nós precisamos de… um abrigo só por essa--

Mas ele não teve a chance de terminar a frase.

Sem que tivesse a chance de processar o que aconteceu, em questão de segundos, Craig sentiu-se perdendo o controle de seu próprio corpo quando suas pernas bambas cederam novamente e o lançaram contra a madeira com força. Seu corpo estava dez vezes mais pesado, suas forças escapavam de suas mãos, como areia, totalmente o contrário do que acontecia com seu pânico.

Craig pode ouvir o grito de horror de Trícia atrás de si. Com isso, o pouco de sua mente que não havia sido dominada pela exaustão se foi completamente. Aquele seria o local onde sua irmã estaria sozinha para sempre, de fato.

E se realmente não houvesse nenhuma alma viva naquela casa, ou se não a permitissem se hospedar em sua residência, se soubessem dos boatos, se fossem pessoas de grande fé?

Com aquelas perguntas, se fosse possível, Craig sentiu mais pânico o dominar, sentiu-se impotente, preso no próprio corpo. Era irônico pensar que ele só chegou perto de ser um irmão de verdade apenas na hora de sua morte, quando tudo acabaria de vez e suas tentativas no fim fossem todas em vão.

Seus olhos correram para todos os lados tentando achar a silhueta borrada de Tricia em algum lugar pela última vez, tentando achar um único pilar de tranquilidade para ao menos não morrer com aquela amargura, mas sua visão não via nada mais que uma escuridão sombria. Era tarde demais.

Foi com esse pensamento atormentando-lhe a mente que Craig enfraqueceu completamente.

— Não, Não! Nós chegamos tão longe, você está a salvo! Olhe para mim! Não se atreva a fazer isso comigo! - foi a última coisa que ouviu antes de perder a consciência, junto com o mesmo rangido súbito de algo grande se arrastando no chão novamente berrando em seus ouvidos.


II.

A dor de cabeça e o calor intensos foram as primeiras coisas que o receberam quando acordou, num lugar completamente diferente do exterior gelado que o envolvia momentos atrás.

As pontadas fortes que martelavam pesadamente por dentro de sua cabeça imediatamente trouxeram uma de suas mãos para massagear a testa e um gemido dolorido sair de sua garganta, mas que não foi o bastante para impedi-lo de subitamente levantar-se do colchão e acabar batendo a testa com força na prateleira acima da cabeça, assim que abriu os olhos e absorveu a informação de que não estava mais congelando até a morte.

A dor inevitavelmente piorou, mas isso não era o que realmente o preocupava. Ele bateu as costas da cabeça novamente num travesseiro macio que pareceu ter curado todas as suas dores com apenas um toque por alguns segundos, não optando por levantar-se dessa vez, e massageou o local com um gemido agudo, ainda com o rosto contorcido de dor, tocando com a ponta dos dedos um tecido molhado e quente que se encontrava deitado sobre sua testa. Confuso, e preferindo ser mais calmo dessa vez e evitar um ferimento mais grave, ele calmamente se sentou.

Irrefutavelmente, aquela era a cama mais confortável que já tivera o prazer de se deitar em toda a sua vida.

O tecido do lençol era liso, suave ao toque, seu corpo parecia estar deitado sob uma nuvem fofa quando parou para analisar seu estado. Ele também sentiu falta da maciez do travesseiro quando levantou as costas, e o monte de cobertores que se juntavam sobre seu peito para aquecê-lo tiravam sua disposição para sair debaixo deles.

O quarto, em questão, era tão aconchegante quanto a cama.

Era um cômodo pequeno, sendo o vermelho a cor que predominava na decoração. Uma escrivaninha de carvalho com um punhal de livros acima ao lado da cama e uma pequena cômoda logo abaixo de uma janela que ocupava boa parte da parede, coberta por uma cortina pesada e escura que não deixava nenhum raio de luz passar por ela a não ser os que escapavam pelas pequenas aberturas nas laterais.

À sua direita, havia um guarda-roupa do mesmo tipo de madeira que a cômoda, mas duvidava que havia realmente alguma peça de roupa dentro dele.

Se não fosse pela camada fina de poeira que cobria todos os móveis e seus aspectos tão gastos, diria que aquela mansão pertencia a alguém da realeza.

Por alguns segundos, Craig pensou que havia morrido. Tudo que tocava era estranhamente prazeroso demais para alguém como ele estar tocando, confortável demais, bonito demais, mas logo se julgou um tolo por realmente pensar por breves segundos que ele conseguiria alguma coisa boa depois da morte.

Com mais dificuldade do que gostaria de admitir, Craig agarrou as pontas dos tecidos que o cobriam e os lançou para o lado oposto da cama, deixando suas pernas livres e prontas para saltarem para fora.

Ele arrastou o corpo para longe da cama e permitiu que seus pés tocassem o chão de madeira. Um arrepio percorreu sua espinha ao receber uma nova onde friagem, no fundo de seu subconsciente uma memória não tão antiga vagou por sua sua cabeça, a memória da única vez em que Craig teve a absoluta certeza de que iria morrer e deixar sua irmã sozinha no pior momento que uma criança poderia passar, mas ele não se deixou pensar muito sobre essa memória em particular.

Quando levantou o corpo completamente e deu o primeiro passo, seu corpo o traiu instantaneamente e ele foi lançado ao chão muito mais rápido do que ele pode prever.

Craig se contorceu de dor, agora tendo mais membros do que gostaria latejando por atenção, e então se xingou suavemente por ter sido descuidado mais uma vez daquela forma.

— Cuidado - uma voz aconselhou a alguns passos de distância de onde estava. Seu corpo automaticamente sentiu um arrepio correr pela sua espinha e ele foi tomado pelo susto com o aviso inesperado.

Ele tentou levantar-se novamente, com mais pressa, e agora se virar para encontrar seu dono, mas por conta das pernas estarem consideravelmente mais pesadas só gerou com que diversos objetos acabassem sendo derrubados no processo de tentar se apoiar nos móveis próximos.

— Você ainda não está em condições de saúde muito boas, deve descansar mais um pouco.

A tal voz, pesada e morta, soando como se não fosse usada há vários anos, vinha de uma mulher que até então não havia sido percebida no quarto.

Havia algo claramente errado com ela. Craig podia ver isso no modo em que ela olhava para ele, da extremidade do outro lado do quarto em que os poucos raios de luz não conseguiam atingir, tão penetrante que parecia ter plena ciência do quanto de pavor ele estava sentindo, e no quanto o ambiente confortável do quarto rapidamente mudou quando ela surgiu.

A expressão ilegível, mas com um traço de arrogância, o encarava como se Craig fosse a criatura mais peculiar que ela já vira.

Ela se aproximou da luz calmamente, um sorriso ameno se formando em seu rosto, talvez esperando que aquele ato o tranquilizasse de alguma forma, e então se encostou num dos pilares da cama, não deixando o contato visual se quebrar.

Ela mantinha a cabeça erguida e o nariz empinado presunçosamente. Olhava-o de cima, com a postura sempre ereta, como se ela fosse imbatível à qualquer coisa que a atingisse. O cabelo curto e loiro escuro contornava seu rosto apático, repleto de marcas da idade que só um olhar muito minucioso poderia enxergar por trás do pó de maquiagem. O vestido era longo, elegante, o tipo de vestimenta que ele sempre via em mulheres nobres, mas que ainda era a coisa mais bagunçada que ela usava.

Com aquela aproximação, Craig sentiu o arrepio de antes retornar e permanecer por muito mais tempo que antes nas suas costas. Ela era assustadora, em todos os níveis, mas ele a respondeu como se isso não o perturbasse:

— Eu não sinto que preciso descansar mais do que já fiz, obrigado - Craig respondeu, muito mais rápido e seco do que planejava, mesmo que no fundo soubesse que seu corpo ainda estava cansado e implorando para deitar-se nos tecidos macios de antes. Algo lhe dizia que a mulher pensava exatamente o mesmo.

Ele se amaldiçoou intensamente por dentro quando percebeu que aquela não era uma atitude muito adequada na casa de alguém que havia acabado de lhe salvar. Todavia, a mulher apenas sorriu. Com esse ato, Craig se perguntou internamente se ela tinha conhecimento do quão assustadora ela se tornava quando tentava agir mansa.

— Muito bem, senhor Craig, você parece ser um homem forte, eu já deveria ter pensado nisso. - ela acenou levemente com a cabeça em compreensão. - De qualquer forma, você está livre para se deitar na hora que quiser. Você é meu hóspede, sinta-se em casa.

Craig engoliu seco, estreitando os olhos do canto do quarto e a olhando como se tivesse duas cabeças a mais.

— Como sabe meu nome?

Ela riu nasalmente. O que ela deveria estar sentindo estranhamente não condizia com suas expressões. Continuavam planas, caídas, e o olhar fixo em si.

— Sua irmã não parou de falar sobre o senhor nem por um segundo sequer. É uma garota adorável, eu diria.

Craig riria da parte do “adorável” se estivesse em uma situação diferente. É claro que algo assim viria de alguém que não a conhece por menos de um dia, mas logo que a diversão o atingiu, a ansiedade inundou seu peito nem um segundo depois.

— Minha irmã... eu posso vê-la? - ele se aventurou, embora fosse atrás dela independente da resposta que obtivesse.

— É claro - a mulher moveu levemente o corpo para deixar a visão além da porta livre para ele - seu quarto é logo ao lado do seu, a direita, ela deve estar acordada à essa altura. Não gostaria que eu o acompanhasse?

— Não! - ele respondeu nem mais um instante depois. Quando notou seu olhar surpreso e um tanto estreito, Craig gaguejou, limpando a garganta - Q-Quero dizer! Eu agradeço, mas gostaria de falar com ela a sós.

Com um aceno de cabeça, a mulher assentiu e se afastou em direção a saída do quarto, mas antes que sumisse do outro lado, ela se virou pela última vez, a franja desarrumada caindo sobre os olhos:

— A propósito, meu nome é Ellen.

Isso seria tudo que eles conversariam até então.



III.


O quarto de Tricia era, por algum motivo, mais receptivo e quente do que o seu próprio.

Era idêntico em aparência, mudando apenas a posição dos móveis e o fato de que o cômodo era maior, e muito mais iluminado. Não era uma grande dessemelhança, ele mal poderia dizer que estava de fato em outro quarto se não fosse pela presença da irmã, mas ele se sentiu mais à vontade, mesmo assim, provavelmente devido a calmaria que encheu seu peito quando teve a confirmação de que ela estava bem.

Aquele mesmo sentimento de total desespero por não estar conseguindo enxergar a figura dela com sua visão embaçada voltou-lhe a mente de repente enquanto a observava, a preocupação tão extrema que Craig nunca pensou que iria o atingir algum dia borbulhando no fundo da cabeça, ao mesmo tempo que toda sua história de vida com ela até agora também voltou para atormentá-lo.

Craig não gostava de pensar sobre as coisas que tinha a feito passar. Não gostava de lembrar da pessoa que já foi. Havia ganhado o perdão dela, no final, é claro, mas ainda era algo difícil de pensar. Não havia conseguido seu próprio perdão. Provavelmente nunca conseguiria.

A garota mais nova estava sentada sobre o longo tapete vermelho que cobria boa parte do assoalho, de costas para o irmão, alheia à sua presença lá dentro, muito concentrada em alguma coisa abaixo de seu peito logo ao lado de um candelabro, que só quando se aproximou percebeu ser um desenho.

Ele riria do desenho em circunstâncias normais, mas ele preferiu relevar que ela não era uma desenhista tão frequente.

— Por quê eu tenho esse negócio estranho na cabeça? - ele perguntou casualmente quando notou na ilustração da folha com mais atenção.

Com isso dito, Tricia girou o pescoço tão rápido em sua direção que pensou ter ouvido o estalar de seus ossos no processo.

— Craig! - ela exclamou no mesmo instante, sua face se iluminou de alegria quando percebeu a presença de seu irmão no quarto. Num piscar de olhos, ela já estava envolvendo os dois braços por seu torso firmemente num abraço desajeitado.

Um sorriso carinhoso surgiu em seu rosto involuntariamente nesse momento. Ele se agachou ao seu lado, sentando-se no carpete, e devolveu o abraço da forma mais forte que podia, finalmente se deixando aproveitar o sabor tão gratificante do alívio que lhe atingiu com aquele toque.

Por um longo tempo, eles permaneceram da mesma forma, se abraçando como se não tivessem se visto há muito tempo, talvez o mais longo abraço que já compartilharam na vida, até que Tricia finalmente se afastou abruptamente.

Craig ainda tinha o sorriso no rosto quando voltou o olhar para o rosto dela, mesmo que estivesse um pouco confuso com aquele súbito afastamento, mas imediatamente caiu para espanto quando percebeu o olhar flamejante de raiva que ela lhe lançava, e os diversos socos - que não chegavam a realmente lhe causar dor, mas que ainda eram desconfortáveis - que ela lhe dera logo após isso.

— Ei, ei! que merda é essa?! Eu acordo da morte e minha própria irmã tá tentando me matar de novo?! - Craig brincou, por mais que seu tom de voz soasse genuinamente irritado, mas em resposta só recebeu um soco mais forte na cabeça. Quando ela finalmente se acalmou, ele pensou que ela havia apenas se cansado daquela brincadeira, mas o semblante triste que se apoderou do rosto dela o alarmou logo sem seguida.

Ele se sentou no tapete ao seu lado na mesma hora, repousando as duas mãos nos ombros dela e fitando-a com preocupação. Ainda era ruim ver seu rosto tomado por tanta amargura, no entanto, ele não pôde deixar de se sentir imensamente mais calmo quando notou o retorno de sua coloração natural na pele de Tricia quando há tão pouquíssimo tempo estava tão pálido e frio como todo o ambiente que os cercava, semelhante à um cadáver.

Novamente, ele não se deixou pensar muito a respeito dela.

— Seu merdinha, eu achei que você tivesse morrido! Como você pode brincar com uma coisa dessas ainda por cima?! - ela gritou, demonstrando toda sua raiva, embora a tristeza continuasse presente. - você tem ideia de quanto tempo você dormiu?! Do quanto de preocupação você me deu?!

Craig imediatamente sentiu um gosto repulsivo de remorso na garganta.

— Eu sinto muito, Tricia, eu estou aqui agora, não estou? Não precisa mais se preocupar - ele tentou se defender, o que pareceu funcionar, pois sentiu os ombros dela relaxando sob seu toque. A garota abaixou o olhar, olhando para todos os lugares, menos para ele.

— Eu sei, eu estou mais tranquila agora, é que-- ela suspirou fundo, - eu te vi desmaiando na minha frente, eu fiquei tão assustada... eu não sei o que eu faria se você não estivesse mais aqui...

Craig abriu a boca para dizer alguma coisa - preferindo não comentar sobre a culpa que surgiu nos olhos da ruiva quando a viu fitar por breves segundos a marca de queimadura já curada em seu rosto. Uma palavra de consolo, uma garantia de que tudo estava bem agora por mais que soubesse a verdade dolorosa, mas as palavras estavam tão embaralhadas em sua cabeça que pensou que nenhuma seria capaz de ajudá-la agora. Ele suspirou, frustrado consigo mesmo, e então a puxou mais uma vez para um abraço forte, a única coisa que ele podia lhe oferecer agora.

— Isso não importa mais, ok? Eu estou bem, nós estamos bem - ele garantiu, percebendo que aquela era a terceira vez que lhe dissera isso quando sabia que não era verdade, e pouco tempo depois se lembrou de uma pequena informação que quase deixara escapar - e como assim “quanto tempo eu dormi”? Quantos dias se passaram?

Tricia se afastou do abraço, e então o lançou um olhar aflito.

— Você ficou desacordado por cinco dias, Craig...

Com isso, Tricia observou seu irmão se afastar em choque. Totalmente pego desprevenido. Por alguns segundos, ele pensou não ter ouvido corretamente. Craig pensou que não havia se passado menos de um dia desde que acabaram chegando na mansão, coisa que ele percebeu só mais tarde que fazia todo sentido. Ele não havia parado para pensar na gravidade da sua situação até aquele momento.

— ...Cinco dias?! - ele repetira, depois de muito tempo aturdido sem saber o que dizer.

— Entendeu minha preocupação agora, não é?! - ela revirou os olhos - você quase me matou de preocupação! Mas de qualquer forma, não foi ao todo ruim a espera. A senhora Schultz ficou o tempo inteiro garantindo que você ficaria bem e me acalmando. Ela parecia saber o que estava fazendo, mas eu não tenho certeza se ela já foi médica.

— Você ficou perto dessa mulher esse tempo todo?! - Craig se apressou em perguntar. Ele só percebeu o quão alterado ele pareceu quando notou a diversão curiosa no rosto da irmã.

— Hm... fiquei? - ela confirmou - eu sabia que você desconfiaria dela, não que não tivesse motivos, mas eu te garanto que ela é legal! Um pouco estranha, mas muito legal.

— Desde quando você acha alguém legal? - Craig a fitou um tanto perplexo, mas então se lembrou de todas as coisas que ela passou até chegar até ali, no mesmo segundo se perguntando se aquilo não desencadearia uma reação negativa nela.

Sua preocupação se foi no mesmo instante quando viu um sorriso carinhoso se formando no rosto dela.

— Você vai pensar o mesmo que eu em breve! - vendo a diversão dela, Craig riu e assentiu com a cabeça, embora soubesse que isso jamais aconteceria.

Ele afagou o cabelo da irmã com uma das mãos, bagunçando suas tranças arrumadinhas e bem penteadas ao lado da cabeça no processo, e então recebeu um resmungo irritado de desaprovação em resposta. As tranças em questão, não estavam mal feitas como costumavam ser, o que o fez deduzir que a senhora Schultz havia as arrumado para ela em algum momento enquanto ainda estava dormindo.

A ideia de que aquela mulher havia se aproximado demasiadamente demais de sua irmã o incomodou, mas ao menos ela não estava a mesma bagunça que passou a ser desde o dia em que ele mesmo começara a se responsabilizar pelos seus penteados.

Era engraçado pensar que de dois irmãos que ignoravam friamente a existência um do outro por coisas tão fúteis no passado se tornaram tão unidos como agora.

A mudança não era de hoje, levou um longo tempo até Tricia confiar nele novamente depois de anos de silêncio. No entanto, Craig nunca deixou de ainda se sentir completamente despreparado para os atos carinhosos que passara a receber dela nesse processo.

Ele se surpreendeu profundamente com o abraço que ganhara há pouco tempo atrás - algo que ele não se lembra de ter recebido dela antes com a onda tão forte de carinho, a não ser de quando ela era muito, muito mais nova do que era agora -, e mais ainda com a confissão de que de fato se preocupava com ele. O dava um sentimento de proteção no peito, algo que era imensamente melhor do que a frieza comum. Ele nunca havia permitido aqueles carinhos antes, de qualquer forma, então não era completamente culpa dela.

Era uma boa mudança, com absoluta certeza, mas com uma terrível circunstância.

— Nós já podemos ir amanhã, se você quiser. - ele disse, depois de muito tempo apenas observando-a desenhar. O clima ameno que se estabelecera no quarto o fazia sentir sono. - ou esperar mais alguns dias, não sei.

- Ir? - ela repetiu em descrença, abandonando o desenho inacabado com o pequeno giz de cera vermelho rolando por cima dele até deslizar para longe - ir para onde?

— Nós não podemos ficar aqui para sempre, você sabe disso, não sabe? - ele perguntou, apoiando a cabeça num dos braços e a olhando com ternura.

— Craig, nós não temos para onde ir, e a hospitalidade que nos deram aqui é muito difícil de receber em outro lugar, por que temos que ir agora?

— Tricia, por favor, você sabe do que estou falando - ele advertiu, firme e com a voz mais fria. Sentindo a calmaria de antes começando a se desmanchar. Tricia continuava difícil de lidar, mesmo depois de tudo - nós não podemos abusar da boa vontade dessa mulher. Temos que continuar andando e quem sabe encontrar alguma cidade próxima.

— Nós não estamos abusando de nada, ela disse que podíamos ficar quanto tempo quiséssemos. - ela insistiu. Craig suspirou pesadamente, sua paciência diminuindo.

— Você achou mesmo que com esse "ficar quanto tempo quiséssemos" ela quis dizer ficar pela vida toda?

— Até o fim do inverno! - Tricia soltou como última alternativa, mas ele já havia perdido a calma.

— Tricia, nós dois sabemos--

— Craig, o inverno está muito rigoroso, não podemos sair agora e nos arriscar de novo.

— As circunstâncias são outras agora, podemos nos preparar melhor aqui. Quer dizer, ela com certeza tem um cavalo, não é?

— Não! - a garota gritou, mais para interrompê-lo do que respondê-lo, o olhar suplicante - Craig, por favor, só me escuta dessa vez, por favor...

Outro suspiro enfurecido saiu de sua garganta, sua paciência inteiramente esgotada e sem nenhuma intenção de continuar aquela conversa. Ele se preparou para cortá-la e dar a palavra final de que iriam embora amanhã, querendo ela ou não, mas alguma coisa naquelas orbes azuis o implorando com tanta determinação o fez se calar e ouvir atentamente.

— Nós podemos ficar até o fim do inverno, para pelo menos termos alguma coisa ao nosso favor durante a viagem mais tarde. Nós temos tudo que precisamos para sobreviver aqui, você quer mesmo sair assim?

Craig a encarou friamente por alguns segundos. É claro que ele não queria, mas eleprecisava, ele não sabia as intenções dessa mulher com eles ali, poderia ser um erro fatal ficar tanto como ir embora.

Ela viu seu silêncio como incentivo para ter esperança

— Craig, por favor, por favor… eu sei que você não quer ir também!

Durante esse tempo, várias coisas passaram pela mente de seu irmão, assim como vários sentimentos o atingiram.

Uma parte de si mesmo sabia que ela tinha razão. Sabia que deveria desfrutar daquela onda de sorte tão rara que nunca tiveram antes que se dessem conta que já tinha ido embora, e que aquela de longe era a coisa mais sensata a se fazer naquele momento, no entanto, havia outra parte sua, que teimava em lhe dizer que havia algo errado ali, que eles deveriam ir embora imediatamente, sem pensar duas vezes.

Se fosse o mesmo Craig de antes, ele não daria ouvidos aos pedidos suplicantes de sua irmã e seguiria seu instinto, até mesmo sem ela, se precisasse, mas esse não era o Craig de antes. Eles não tinham para onde ir, de qualquer forma.

— Okay, tudo bem, talvez você tenha razão - ele suspirou, derrotado, e o rosto de Tricia instantaneamente se iluminou como na primeira vez que o viu naquele dia - Até o inverno, nenhum dia a mais do que isso. Essa casa me dá arrepios.

Tudo que ele conseguiu raciocinar no segundo seguinte foi um par de braços envolvendo seu pescoço como um urso e empurrando seu corpo para trás.

— Isso!Obrigada, obrigada, obrigada! - ela berrou contra sua blusa enquanto o apertava cada vez mais e privava seus pulmões de ar.

— Okay, okay, mas não se anima muito não - com essas palavras, Tricia se afastou e o encarou com confusão e aflição, temendo o que ele diria. Seu coração quase se partiu com a visão,quase. - se você não deixar me deixar bonito nesse desenho agora eu mudo de ideia e nós vamos agora mesmo.

As risadas dela encheram o quarto, por um segundo ou mais soando como se nunca tivessem passado pelas coisas que ocorreram. Craig pensou que Tricia havia o azucrinado o suficiente naquele dia, totalmente despreparado, como sempre, para as palavras que ela diria a seguir.

— Eu te amo, Craig. - ela sorriu carinhosamente. Seu peito se aqueceu com tanta intensidade que pensou ter derrubado o lampião em si mesmo sem querer.

— Eu não tô vendo você desenhar, mocinha.

— Vai se fuder.



III.


Em algum momento que ele não se lembra, Tricia adormeceu. Ele já teria retornado para seu quarto naquela altura, mas toda a exaustão que parecia estar dominando seu corpo e implorando para que se deitasse desde o início simplesmente desapareceu, de uma hora para outra, deixando-o para trás com apenas um vazio no peito no meio da noite, quando deveria estar dormindo.

Ellen havia retornado ao quarto para lhes trazer comida há algum tempo atrás, mas ele estranhamente estava sem fome. Estranho, para quem havia estado em coma por dias e sido privado de qualquer tipo de alimento, mas ele garantiu que se alimentaria mesmo assim quando a possibilidade dela encarar aquele ato como um desafio e os expulsar de sua casa martelou em sua cabeça. Ele duvidava que de fato isso aconteceria, mas depois do encontro que tiveram, ele preferia não agrava-la mais do que já havia feito acidentalmente.

O prato de comida se encontrava quase intocada acima de uma das escrivaninhas, esfriando gradativamente, mas Craig não faria questão de terminar. Ele observava do outro lado do quarto com fascinação as chamas da vela do candelabro acima de uma das estantes lentamente queimando a cera e a transformando num líquido pegajoso, que escorria para as laterais, caia nos arredores, e os manchava permanentemente.

Ele nunca gostou do fogo, da fumaça, do cheiro de vela derretida que se impregnava facilmente no ambiente e de alguma forma estava sempre presente em suas narinas. Era algo que ele preferia se manter longe, mesmo que não tenha uma única lembrança de sua vida em que de fato conseguiu evitá-lo por muito tempo, mas a visão ainda era hipnotizante, calma, e atraente, de certa forma, observar como aquele pequeno pedaço de destruição se movia. Tão vulnerável daquela forma; pequeno e fraco, mas tão destrutível no ambiente certo. Nas mãos da pessoa errada.

Fascinante, mas como tudo que lhe atraia, catastrófico.

Ele afastou os pensamento daquele elemento em questão, percebendo que ficara tempo demais olhando para o único ponto de luz do quarto o suficiente para ficar com a visão escura, e então, saindo em passos furtivos, ele se afastou do corpo adormecido de Tricia na cama e saiu para o corredor de fora.

Ele torcia para que Ellen não o pegasse se esgueirando pelos corredores de sua casa uma hora dessas da noite, principalmente quando ele ainda não estava em um estado tão bom de saúde e estava deixando sua irmã mais nova para trás, sozinha, mas em legítima defesa, aquela era sua ideia de “se sentir em casa” que ela queria tanto que ambos os irmãos sentissem.

Ele também estava sem sono, completamente energizado, por mais que tenha ficado cansado o tempo todo até o cair da noite. A única coisa para se fazer agora era explorar a casa que passaria os próximos três meses trancafiado, ou deitar nos lençóis de seu quarto epacientementeesperar pelo sono chegar, coisa que obviamente estava fora de questão.

A casa era tão grande quanto um palácio, isso era fato, mas ainda extraordinariamente vazia, ao ponto de fazer seus passos ecoarem com o mínimo movimento. A primeira coisa que apareceu em sua frente quando saiu foi a visão do andar de baixo atrás de uma pequena cerca escura - que tinha a mesma camada de pó sob si que parecia cobrir aquele lugar inteiro - contornando o piso. De lá de cima, ele podia ver a porta de entrada, tão grande que cobria a parede até o topo, repleta de fechaduras que firmemente a trancavam, e pequenos rastros de neve passando pelas frestas.

Haviam quadros, muitos quadros, por todos os lados, ocupando cada espaço vazio entre as colunas da parede, sendo paisagens de lagos ou campos vazios e até ambientes cheios de pessoas em sua maioria, mas que não eram tão chamativos a não ser pela sua aparência peculiar. Também haviam portas com aparência muito precárias para um ambiente tão obsoleto como aquele, na qual revelavam não ser nada mais que quartos ou salas vazias que o fazia tossir com o ar pesado e fechá-las imediatamente.

Quando chegou à entrada principal do primeiro andar, alguns passos de distância da escadaria do térreo, seus olhos arderam e piscaram em alarde quando uma fonte intensa de luz surgiu de trás da madeira depois de tanto tempo andando no escuro.

Havia uma longa mesa que se estendia até o outro lado do salão, muito maior do que ele pensava que uma mesa deveria ser, coberta por diferentes toalhas de seda que deixavam suas extremidades penduradas para fora, enquanto taças luxuosas de prata repousavam sobre elas pelo centro. Incontáveis cadeiras de couro as rodeavam, perfeitamente alinhadas umas nas outras, o visual tão extravagante que chegava a ser atrativo, o tipo de salão que ele daria qualquer coisa para poder se sentar e ter alguma refeição, como os nobres faziam diariamente. Os únicos objetos que aparentavam não estarem completamente sujos, mofados ou esquecidos.

Apesar da beleza e elegância dos móveis por si só, o lustre brilhante e chamativo, decorado do topo até a base com arranjos complexos de vidro e suporte de ouro logo acima de sua cabeça, iluminando o ambiente com magnitude, ganhava o maior destaque.

Craig se viu maravilhado com a visão, encarando a decoração refinada completamente boquiaberto, pensando por breves segundos que só poderia estar sonhando para estar adentrando num local tão magnífico.

As mãos deslizaram pela textura lisa da mesa enquanto olhava para todo o brilho alaranjado acima de sua cabeça, totalmente maravilhado, com o coração palpitando forte dentro do peito.

A cada passo que dava, ele se perguntava cada vez mais que tipo de pessoa a senhora Schultz deveria ser para ter uma casa enorme daquela apenas para ela. Se o fato de que sua sanidade mental era bastante questionável por conta de sua solidão num ambiente tão grande e caro, ou por conta uma tragédia que ela sofreu no passado. Não que realmente importasse, ele só estava curioso; ele estava vivendo no mesmo teto que uma mulher claramente instável, ele tinha que se preocupar de alguma forma.

Havia outras entrada há alguns passos de distância, uma que ele deduziu ser a cozinha por poder ver os utensílios domésticos pendurados numa parede daquele ponto, e outra que lhe dava acesso há outro corredor, este completamente escuro, por sua vez.

Ele agarrou o candelabro mais firme com uma das mãos, um estranho sentimento de aflição o agarrando pelas costas, mas que prontamente foi ignorado, e com passos hesitantes, passou pela porta.

Craig foi recebido com um calafrio percorrendo sua espinha assim que chegou até o outro lado. Percebeu um estranho sentimento de solidão rapidamente se alastrar ao seu redor, mas que era superado pela enorme curiosidade que sentia em relação aquela casa.

Aquela parte era imensamente mais escura, por sinal, também o único cômodo que percebeu ter janelas ocupando as paredes, e mais quadros, mas que ele não prestou tanta atenção.

Não havia nada de intrigante além do sentimento perturbador que o atingiu. Craig já estava farto de exploração por hoje e daria meia volta de volta ao quarto para dar continuidade à isso com Tricia no dia seguinte se não fosse pela última imagem, bem no final do corredor, livre de qualquer luz provinda das janelas que teria perdido totalmente se não tivesse percebido sua existência pelo canto do olho por breves segundos.

A ilustração mais realista que já havia visto de perto, cada pequena formato do pincel arrastado pela pintura sendoperceptível, pintado com tanta virtuosidade que era impossível não parar para admirá-la por algum tempo.

A imagem de Ellen estava sentada sobre uma cadeira, um olhar neutro no rosto encarando o espectador intensamente, os cantos da boca levemente levantados num sorriso sereno que passariam despercebidos se não olhasse mais atentamente para seu rosto, mas que ainda era inquietante, assim como qualquer coisa sobre ela, logo ao lado de um rapaz que Craig não reconheceu.

Ele não havia sido mencionado, até então, pelo que se lembrava. A possibilidade de que talvez Ellen tivesse passado por uma tragédia de fato martelou em sua cabeça novamente com aquela visão.

O jovem, por sua vez, estava em pé ao seu lado, afetuosamente segurando uma de suas mãos e escondendo a outra por trás do corpo. Idêntico à ela, se não fosse pelo tom mais claro do cabelo e os olhos mais escuros, além das feições muito mais jovens. A face totalmente planas, a mesma intensidade no olhar, tão inquietante quanto à mulher ao seu lado, mas ainda cativante de olhar.

Craig assumiu que poderia ser seu filho. Era tão estranho quanto ela, tinham que ser da mesma família.Duas aberrações,pensou com indiferença, mas ainda se sentiu perturbado e com um sentimento estranho na garganta quando se afastou.

Logo ao lado do quadro, havia uma escultura de um homem. Mais bizarra do que bela, realmente, mas que prenderam seu olhar por um tempo um tanto peculiar. Craig se virou para o corredor que entrara pronto para seguir andando, se não fosse por uma voz grossa subitamente se pronunciando nas sombras.

— É uma bela escultura, realmente, mas acho melhor não ficar tão perto se não--

E então um grito de susto acabou escapando de seus lábios involuntariamente antes que a voz completasse sua fala. Ele se virou em pânico tão rápido que acabou se desequilibrando nos próprios pés, caindo para trás num piscar de olhos sem nada para se agarrar. A última coisa que conseguiu raciocinar durante esse tempo foi o que parecia ser a escultura que admirava há poucos segundos atrás sendo empurrada pelo seu próprio corpo para trás e caindo da pilastra que se encontrava.

Os momentos seguintes se passaram como um borrão. Em um momento, Craig estava observando pelo canto dos olhos o objeto desequilibrar-se de onde estava e lentamente se aproximar do chão, para seu trágico fim, e ainda se adiantando para o barulho estrondoso que viria, mas no outro, ele se viu entre os braços de uma pessoa que não conseguia enxergar o rosto que num ato totalmente impensado e feito por impulso se lançou contra ele para agarrar a escultura e impedir seu estilhaçamento.

Foi uma cena estranha e desconfortável, ainda mais por sentir a respiração pesada da figura em questão passando por sua clavícula descontroladamente enquanto se esforçava para retornar à sua posição anterior sem que precisasse encostar mais do que já estava em Craig. Ele pensou em empurrá-lo e correr de volta para o quarto, mas Craig se viu completamente congelado de surpresa diante daquela situação.

Sem que notasse, o outro calmamente se puxou de volta para o lugar depois de vários segundos parado, arrastando Craig com ele, até que sem que percebesse, estava firmemente com os dois pés no chão novamente.

Quando a figura finalmente se afastou, Craig sentiu o ar que não percebeu estar segurando esse tempo todo finalmente sair de seus pulmões, e uma intensa onda de vergonha finalmente o afundou. Ele sentiu suas bochechas se aquecendo, mas foi rápido em esconder o rosto com as próprias mãos para escondê-lo e tentar conter a própria respiração acelerada.

— D-Deus, me desculpe, eu não queria te assustar! - o homem desconhecido exclamou imediatamente, levantando as mãos acima do peito de forma apologética e atrapalhada, se afastando drasticamente - Eu não planejava me apresentar dessa forma, essa escultura maldita vive caindo. Huh, v-você está bem?

— Você estava me observando? - Craig ignorou a pergunta com frieza, ainda paralisado pela cena anterior, um pequeno pontinho de ameaça em seu olhar.

— Não! - quer dizer… um pouco, talvez…? E-Eu juro que não foi por muito tempo!

Craig assentiu estreitando os olhos para ele, pronto para lhe dar uma resposta seca e curta e finalmente voltar por onde entrou, o coração ainda batendo forte de nervosismo. No entanto, assim que reparou mais precisamente na aparência do outro homem, notou uma coisa.

Era ele a outra pessoa da pintura com Ellen. Obviamente com algumas leves mudanças na aparência, mas ainda bastante parecido. Os cabelos claros e com leves ondulações que não havia percebido na pintura, levemente bagunçados que apontavam para todos os lados, e os olhos profundamente claros que o encaravam com nervosismo. Ele era bem diferente da ilustração, mas sabia de alguma forma que ainda era ele ali.

Ele era a própria senhora Schultz, porém mais jovem, masculino, e sem aquela aura diabólica o acompanhando.

Isso significava que ela não tinha nenhum filho morto, se de fato fosse seu filho, mas então…?

Ele só notou que estava o fitando por um tempo consideravelmente estranho quando o mesmo pigarreou envergonhado.

— Bem, hm… nós começamos com o pé esquerdo, eu suponho - o rapaz limpou a garganta nervosamente, estendendo a mão para ele logo em seguida - Meu nome é Thomas. Eu sou o filho da matriarca deste local. Desculpe por ter te assustado, novamente, minha mãe me mataria se eu acabasse quebrando mais uma alguma decoração de valor!

Ele soltou uma risada curta no final de sua frase, mas que imediatamente morreu quando notou que o outro não o acompanhava.

— Craig. - ele respondeu friamente, olhando para a palma da mão à sua frente com desdém e prontamente a ignorando, mas ainda intrigado com aquele homem.

Thomas abaixou as mãos no mesmo segundo, constrangido, mas apesar do evidente desânimo e nervosismo que aquela interação estava o causando, ele perguntou mesmo assim.

— Eu imagino que deva estar sem sono para estar aqui agora, então estamos com o mesmo problema, você não gostaria de--

— Olha, foi umprazerte conhecer, realmente. Adorei o susto e tudo mais, mas eu preciso ir. - ele anunciou rudemente, mantendo o tom de voz muito mais alto para mostrar que não estava afim de conversar.

Thomas visivelmente ficou ofendido pela forma com que Craig respondera, a leve caída de seus ombros e o vacilo do sorriso em seu rosto denuncia isso, mas ainda determinado, tentou de novo.

— T-Tem certeza? Chá costuma me dar sono, talvez ajude você também a dormir mel--

— Sim,eutenho certeza.Sem ofensas, mas eu tenho coisas melhores para fazer do que tomar chá com um cara que acabou de me agarrar há pouquíssimo tempo. - Craig afirmou desdenhoso, virando-se para o lado contrário e se preparando para sair. Pelo cantos dos olhos, ele pôde notar um lampejo de espanto e tristeza crescendo nas feições de Thomas. Por um segundo ou mais ele quase se arrependeu - muito obrigado pela oferta, sério, mas já vou indo.

Quando Craig se virou sem esperar uma resposta, Thomas se sentiu completamente ofendido. Toda sua disposição e confiança que levou algum tempo para construir pareceram se for junto à ele pelo corredor, mas junto ao desânimo, uma chama de raiva que ele foi rápido em empurrar para baixo do tapete.

E então, antes que pudesse ganhar força para correr pra longe sem que chamasse a atenção de Craig, aconteceu.

Cuzão— a palavra fugiu de seus lábios,literalmente, junto à um espasmo, e nem mais um segundo depois ele os cobriu com força com as duas mãos.Não... agora não, merda...

O xingamento não passou despercebido pelos ouvidos de Craig. Ele parou de andar no mesmo segundo com o corpo endurecido de surpresa, pensou ter ouvido errado por breves segundos em que o silêncio foi a única coisa que ouviu, mas não muito tempo depois, houve outro, e mais outro, e mais outro.

— Seu merdinha, cuzão,babaca, bundãofodedordecavaloscomumpênisenfiadonomeiodagarganta!- As palavras eram proferidas cada vez mais altas, ecoando pelas paredes que os cercavam. Craig encarava a cena boquiaberto de espanto, pego totalmente desprevenido. O candelabro em mãos quase escorregou de seus dedos e se apagou devido ao estado tão em choque de quem o segurava.

Thomas, por sua vez, tentava inutilmente impedir que os xingamentos se estendessem por mais tempo cobrindo a própria boca, por mais que soubesse que aquilo nunca funcionava se não por deixar sua voz mais abafada e sua boca dolorida. Aquilo durou uma eternidade para ele, o tempo todo evitando o olhar fixado em si de Craig, com o constrangimento crescendo dentro do peito, ele queria correr e se esconder no próprio quarto até o dia de sua morte, simplesmente não conseguia se mover - além disso, ele estava tentando fazer exatamente isso antes de chegar até ali.

Quando finalmente parou, ele esperou um soco, um empurrão, um insulto,qualquer coisa, por muito tempo coberto de um pesado silêncio que pareceu ter levado milênios para acabar, os olhos firmemente fechados e alheios a próxima reação do outro homem, até que finalmente conseguiu juntar coragem e palavras na boca para se desculpar.

— Eu… me desculpe! Me desculpe mesmo!Arrombado, cuzão!Isso sempre acontece! Eu não consigo controlar, eu---!

— Você me chamou mesmo dearrombador de cavalos? - Craig respondeu num sussurro, a face ainda coberta de surpresa.

— H-Hm… não foi intencional, eu juro!Merda, cuzão, viadinho!

E então, aconteceu a última coisa que esperava que acontecesse.

Houve uma risada. Uma risada alta, aguda, e que parecia vir de alguém que acabou de ouvir a melhor piada que já lhe contaram devido à toda sua euforia, ecoando por toda a sala, quebrando o clima. Nenhum vestígio de zombaria, no entanto, para o aumento de sua confusão.

Quando finalmente criou coragem para encará-lo novamente, ele o encontrou massageando o próprio estômago, apoiado numa das cômodas, a face completamente tomada por um sorriso enorme que mostrava todos os dentes. Thomas pensaria que ele estava rindo de dele se não fosse por suas próximas palavras entre os risos.

— Puta merda, eu não rio assim há anos! - ele suspirou, recuperando o fôlego e se aproximando dele novamente com o corpo mais leve e um sorriso. - Pode fazer de novo?

Thomas pensou ter entendido seu pedido completamente diferente do que realmente era. Ele abriu a boca por alguns segundos para confirmar suas suspeitas, mas então outro xingamento lhe escapou.

— Incrível!

— ...incrível? - ele repetiu para si mesmo, como se a palavra em si fosse uma coisa totalmente nova, encarando o homem sorridente em sua frente com a mente ainda uma completa bagunça. Thomas esperava uma zombaria sair como resposta tão avidamente que seu espanto só cresceu dez vezes mais.

— Sinto muito por ter te ofendido, posso lavar suas roupas como desculpas? Eu faço qualquer coisa, por favor! - Craig implorou, o tom de voz completamente diferente do que há poucos minutos atrás, encarando-o com tanta excitação e entusiasmo que tirou completamente o raciocínio da cabeça de Thomas.

A única coisa que conseguia pensar diante daquela situação era na possibilidade daquilo tudo ser apenas uma zombaria de mal gosto e que Craig iria fechar as feições à qualquer momento e lhe dar um soco.

Quando percebeu que ele estava perto demais de si, inclusive, ele imediatamente fechou os olhos e se encolheu debaixo dos braços para se defender, mas o único toque que lhe atingiu não foi nem de longe agressivo ou feito para machucá-lo, apenas o suave contato das duas mãos do homem envolvendo uma das suas gentilmente. Duas orbes brilhando em azul o encaravam como se ele fosse feito de ouro.

Ele sentiu suas bochechas se esquentarem levemente por baixo daquele olhar quando ouviu o próximo pedido que Craig lhe dera.

— Você ainda quer tomar um chá? Acho que meu sono definitivamente foi embora agora.

Por alguns segundos, tudo que Thomas fez foi ponderar minuciosamente sobre aquela oferta. Olhava para Craig como se fosse louco, talvez de fato fosse, mas não era como se isso fosse uma coisa ruim no final.

Quando percebeu que Craig ainda esperava uma resposta, tudo que conseguiu fazer foi acenar levemente com a cabeça, não sendo capaz de formular uma frase e recebendo um sorriso largo do homem em resposta. Um pequeno lampejo de alegria se acendeu no peito de Thomas, envolvendo seu coração num calor confortável, e então o guiou até o quarto mais alto da mansão para a tão aclamada xícara de chá.


IV.

O dia seguinte amanheceu maravilhosamente nem cinco minutos depois de se deitar para dormir.

Craig soltou um grunhido desconfortável quando a luz solar iluminou seu rosto entre as cortinas e cobriu a cabeça com os cobertores a fim de ignorar aquele fato e continuar a dormir, mas não demorou muito para sentir alguma coisa pulando animadamente em cima de si por detrás deles gritando infinitos bom dias e mostrando um sorriso radiante nos dentes tortinhos que o deram uma vontade incontrolável de socá-los.

Foi com muito esforço que ele teve que se arrastar até a mesa de jantar para o café da manhã. Tricia o tempo todo pulando radiante ao lado dele, sendo o mais feliz que ele já a viu sendo e compartilhando um pouco dessa felicidade com ele sem que percebesse, embora não sobrepondo seu mal humor que parecia irradiar em sua pele.

Apenas três das vinte e duas cadeiras que contornavam a extensa mesa eram ocupadas, a da primeira extremidades e as duas que se seguiam ao lado dela. O sentimento de estar finalmente tendo uma refeição naquele salão que admirara a poucas horas atrás, por mais que fosse extremamente alucinante, não foi capaz de lhe deixar menos rabugento. Ainda era gratificante, de fato, mas Craig ainda queria desesperadamente uma noite de sono. Ele se perguntava como as coisas tinham ido tão longe na noite anterior ao ponto de só ter voltado para o quarto muitas horas mais tarde, esquecendo totalmente que ele só havia saído da cama justamente para conseguir adormecer.

Ele quase derrubou a cabeça apoiada numa das mãos em seu prato diversas vezes enquanto esperava Ellen servir seus pratos - coisa que ele insistiu fortemente que poderia fazer sozinho, mas que acabou sendo convencido somente quando Tricia lhe deu um beliscão por baixo da mesa -, a barriga roncando levemente apenas com o pensamento de um pão ou leite em sua frente, mas o quão grande fora sua surpresa quando não muito tempo depois, ovos cozidos, tiras de bacon, torradas e café quente foram lhe servidos, acompanhado de uma jarra de geleia de amora e alguns bolinhos decorativos.

O cheiro delicioso que atingiu suas narinas quando as tampas foram retiradas das tigelas o deixaram aturdido por algum tempo, agravando sua fome, paralisando seu olhar nos alimentos em sua frente com a boca salivando. Deus, isso estava mesmo acontecendo? Ele estava mesmo tendo a refeição de seus sonhos pela primeira vez na vida? A excitação de Craig cresceu absurdamente com aquela visão. Aquilo pareceu ter chamado a atenção de Tricia que olhava-o com diversão e incentivo, como se compreendesse aquele sentimento.

— Coma! - ela encorajou - mas por favor use os talheres.

— As mãos são muito mais práticas, pra quê usar talher? Nem você usava isso há dois dias atrás. - ele sussurrou de volta para ela num tom acusatório, Tricia revirou os olhos.

— Sutileza na mesa, Craig Tucker, pelo amor de deus!

Ele abriu a boca para retrucar, mas antes que alguma palavra fosse proferida, o olhar curioso de Ellen por baixo de sua franja apontando para ele foi visto por breves segundos pelo canto dos olhos, o nariz empinado, como sempre via no rosto dela, um lampejo quase inexistente de ameaça nos olhos, e então decidiu apenas seguir o conselho da irmã sem nenhuma outra palavra, mas com grande esforço.

Craig não gostava de seguir ordens sob ameaças, mas ele não deixaria seu orgulho tirar vantagem dele agora. Ele não era um idiota, a ideia daquela mulher os jogando para fora ainda passeava por sua mente. Ele preferia evitar aquele cenário o máximo que podia.

— Tucker, hm? - a mulher murmurou para si mesma, como se o nome fosse algo novo - sobrenome curioso, vocês não são da alemanha, eu suponho?

— Somos da Inglaterra, originalmente. - Tricia respondeu orgulhosamente, mesmo que ela nunca de fato tenha ido para lá - mamãe veio para cá quando era mais nova.

— Entendo, vocês viajam para lá com frequência?

Um desconforto começou a dar início no peito de Craig quando viu o leve lampejo de tristeza no rosto da irmã.

— Ela costumava ir antes de nos ter.

— Mas nunca fomos para a Inglaterra nós mesmo - o homem se apressou em dizer antes que a senhora Schultz se aprofundasse mais naquele assunto. Tudo que recebeu foi um aceno leve em resposta. - Tricia sempre quis ir lá, a propósito.

— O senhor tem olheiras ao redor dos olhos, não dormiu direito essa noite? - ela perguntou um tempo depois, casualmente, nada mais que interesse e curiosidade na voz, lançando-lhe um rápido olhar para ele enquanto espalhava geleia numa das torradas.

- Hm... não. Não muito - Craig respondeu, um pouco melhor em esconder o nervosismo dessa vez enquanto mastigava um dos pedaços de bacon. O sabor saboroso que se encheu em sua boca foi capaz de mantê-lo distraído por algum tempo também, o que o ajudou ainda mais.

— Seus aposentos não estavam confortáveis o suficiente? Posso lhe dar outro quarto, se assim desejar.

Craig engoliu a comida no mesmo instante.

— Isso... não será necessário.

— Tem certeza? - Ellen insistiu mais uma vez, os olhos azuis afiados o fitando com alguma coisa que não sabia o que significava.

— Eu só tinha muito na cabeça, nada demais. - ele engoliu seco, devolvendo o olhar na mesma intensidade que o ela. - eu dormirei melhor esta noite.

A explicação não pareceu a satisfazer como ele esperava, no entanto. O espaço de uma hora para outra pareceu ter ficado mais pequeno, o roçar da faca contra o prato de porcelana ressoava bem mais alto do que se lembrava. Parecia que Tricia nem mesmo continuava ali com eles.

— Muito bem. - ela dissera depois de muito tempo, retornando novamente a atenção à própria comida e abandonando Craig com a inquietude que o deixara.

— Não ligue para ele, sr. Schultz, Craig é estranho às vezes. - Sua irmã disse logo depois, formando uma carranca aborrecida no rosto de Craig e tirando uma risada nasal de Ellen.

— Você deveria estar me defendendo - ele falou em própria defesa.

— Eu estou apenas falando fatos!

O café da manhã se seguiu envolto de muita vozes e discussões depois disso. Nenhum deles notou o olhar carinhoso e intrigado de Ellen sobre eles.


V.

Craig subiu as escadas circulares de pedra da torre velozmente, seguindo o mesmo caminho que seguira com Thomas no noite anterior, sentindo-se muito mais leve e energizado agora depois de um cochilo que durou praticamente o dia inteiro.

Tricia havia o perguntado várias e várias vezes o que havia o deixado acordado até o amanhecer naquela noite depois da refeição, nem um pouco convencida com a desculpa que usara anteriormente, mas desistiu quando percebeu que não obteria respostas tão satisfatórias de seu irmão em seu estado dormente, deixando-o sozinho em seu quarto o resto da tarde.

Craig decidiu deixar seu encontro com o filho até então desconhecido da senhora Schultz omitido da irmã por algum tempo, apenas até ter algumas conversas a mais com ele ao decorrer daqueles meses e ter certeza de que seria uma boa ideia compartilhar aquela descoberta com ela, já que ela parecia tão próxima de Ellen, justamente a última pessoa que gostaria que descobrisse sobre aqueles encontros, apesar da imensa vontade de confrontá-la sobre aquele assunto em particular.

Ele não pode deixar de notar a ausência de Thomas na mesa de todas as refeiçōes que tiveram até o presente momento, a curiosidade aumentando cada vez mais dentro do peito, mas que pacientemente foi mantida ali até que tivesse chance de falar com ele de novo, o que estava prestes a acontecer agora.

Ele respirou fundo, contendo aquele nervosismo estúpido dentro do peito, e então entrou.

— Você veio. - o mencionado dissera quando vira a figura de Craig adentrando seu quarto depois de dar leves batidas na madeira, mais para si mesmo do que para o outro. Um sorriso pequeno no rosto, igualzinho aos de sua mãe, mas que não o deixavam extremamente inquieto, embora.

O cômodo era exageradamente rodeado de estante de livros e brinquedos velhos, e exageradamente grande. Se assemelhava mais à uma biblioteca do que realmente um quarto e que parecia mais ser um castelo por si só do que um único cômodo. Craig ainda se sentiu uma pequena formiguinha quando o adentrou pela segunda vez. A única janela do ambiente inteiro era enorme o suficiente para mostrar uma pequena cidade luminosa à quilômetros de distância dali no horizonte escuro da noite.

Logo ao lado dela, estava Thomas, sentando sobre a mesma mesa pequena em que se estiveram na noite anterior e conversaram até o sol nascer, um livro grosso aberto sob seu colo. Ele se perguntava até agora como o tempo havia passado tão rápido e ido por aquele caminho tão de repente.

Pffft, é claro que eu vim, eu sou um homem de palavra. - Craig complementou presunçosamente, mas com um pequeno sorriso reconfortante no rosto.Thomas riu minimamente com o comentário.

Craig admitia que realmente só estava dando continuidade à aquela conversa devido nada a mais que seu interesse pela história claramente conturbada que mãe e filho compartilham naquela casa, com esperança de receber alguma informação do rapaz, que de uma hora para outra pareceu ter se tornado seu maior objetivo para descobrir - veja bem, não havia coisas melhores para se fazer ali -, mas apesar de suas razões claramente egoístas e sem intenção alguma de ajudar, uma parte de Craig ainda se sentia amargamente arrependida pela forma que tratou o loiro há algumas horas, por algum motivo que ele simplesmente não entendia.

Ele não costumava se incomodar em deixar alguém ofendido se aquilo não interferisse de alguma forma em seu caminho, em primeiro lugar; a culpa ainda era de certa forma um sentimento incompreendido por ele, por mais que estivesse realmente o atingindo com força nos últimos tempos. Então, por outro lado, aquilo também servia como um pedido de desculpas. Um pedido de desculpas que não esclarecido, mas que ainda contava.

— O chá não ajudou muito no final, não é?

— Não deu tempo nem de fazer efeito. - Craig revirou os olhos. - Tricia me acordou pulando em cima de mim e me derrubando da cama nem um minuto depois deu ter fechado os olhos.

— Hm, Tricia? - Thomas perguntou curiosamente enquanto fechava o livro e o abandonava sob a mesa.

— Minha irmã - Craig explicou, mas não se aprofundou muito nisso - mas de qualquer forma, eu ainda gostei de ontem à noite.

Isso pareceu ter animado o loiro muito mais do que pensou que faria ao notar o sorriso tímido que se formou em seu rosto. Ele sentiu seu rosto se aquecer levemente, mas tudo que fez foi desviar o olhar.

— Se é assim, nós poderíamos tomar outra xícara hoje novamente, se você quiser. - o outro falou com entusiasmo.

— É claro. - Ele respondeu com balançar de ombros, fingindo não se importar muito, e o sorriso de Thomas só cresceu. Após um aceno de cabeça, ele se levantou para buscar o jogo de xícaras.

Enquanto o loiro se afastava em passos rápidos em direção ao outro lado do quarto, a pergunta que andou rondando sua mente por um longo tempo mais cedo subitamente retornou.

— Hm, Thomas, porque não apareceu no café da manhã? - ele perguntou, o tom mais neutro possível, enquanto ocupava a cadeira à frente do loiro olhando-o com expectativa.

— Minha mãe não gosta de comer no mesmo quarto que eu - ele respondeu normalmente nem um segundo depois. Para a surpresa de Craig, nenhum tom de tristeza ou inquietação na voz enquanto retornava à mesa equilibrando os objetos de porcelana sob uma bandeja e calmamente colocando-os na mesa.

Oh— o outro murmurou, sem saber exatamente o que responder e um tanto chocado com a revelação - hm... porquê?

Craig sentiu uma leve vontade de se dar um tapa na testa.

Ele sabia que eles tinham problemas entre si desde o início.Por favor,quem mantém a existência do próprio filho em segredo? Só havia ficado um tanto chocado pela calmaria do loiro em falar sobre um assunto tão delicado. Sua indiferença poderia ser um mecanismo de defesa, aliás. Craig congelou com a ideia de ter dito algo errado.

— Ela gosta de fingir que não tem filhos - Thomas, no entanto, falou com a mesma naturalidade de antes, não demonstrando nenhuma perturbação diante daquela pergunta - por causa da minha condição, sabe?Vagabunda desgraçada-- desculpe - ele murmurou a última parte automaticamente, sorrindo abertamente por dentro quando recebeu um pequeno sorriso divertido de Craig. Ele ainda não havia se acostumado com a ideia de que alguém genuinamente se fascinava com aqueles ataques momentâneos - Eu não culpo ela, para dizer a verdade. Quer dizer... o que você faria se as primeiras palavras do seu filho de quatro anos para você fossem "vadia burra"?

— Eu o amaria dez vezes mais - o outro respondeu, zombando, como se sua resposta fosse a mais óbvia possível. Thomas balançou a cabeça em negação, desacreditado.

— Mesmo que ele afastasse todo mundo que você conhece? - ele levantou uma das sobrancelhas.

— Eu não poderia sentir mais orgulho! Se alguém inconveniente me visitasse, eu só precisaria manter ele por perto para a pessoa ir embora sem eu mover um dedo. - Craig respondeu, se tornando cada vez mais entusiasmado ao se imaginar com uma pequena criança nos braços que gritava insultos ao invés de chorar.

— Mas seriam seus amigos.

— Quem se importa? Se fossem meus amigos então iriam entender, não iriam embora. - ele respondeu simplesmente.

Com aquelas palavras, Thomas se calou por alguns segundos. Um sentimento estranho de formigamento e choque se formando em seu peito quando o efeito delas lhe atingiu. O loiro o fitou por vários segundos, intrigado pela forma com que Craig pensava, mas ainda fascinado de alguma forma, antes de finalmente responder.

— Queria que ela pensasse dessa forma.

— Eu me pergunto como alguém não pensa assim! - Craig vociferou, como se aquilo realmente fosse algo a se revoltar - Tipo, quem não seria feliz em chamar qualquer um de bundão fodedor de cavalos com um pau na garganta?

— Eu acho que bastante gente, na verdade, Craig.

— Foi isso que ela quis colocar na sua cabeça. - ele bufou, finalmente bebericando o líquido na xícara até então esquecido. Se surpreendendo por estar tão delicioso quanto anteriormente - Minha irmã diria a mesma coisa, e ela tem dez anos.

Thomas engasgou com seu chá.

— Dá pra acreditar que ela já quebrou o nariz de um cara duas vezes mais alto que ela?! - ele se animou com a vaga lembrança que lhe passou pela mente.

— Na minha época crianças de sete anos gostavam de comer terra e correr atrás um do outro, não quebrar narizes e essas merdas.

— Tricia é superior à esse tipo de criança, ela só come coisas vivas e outros derivados,tipopessoas.

Thomas riu genuinamente dessa vez. O dentes aparecendo, os olhos se apertando e cabeça se jogando para trás no processo. Craig não pôde evitar de acompanhá-lo e risadas foram as únicas coisas que puderam ser ouvidas naquele momento.

Por uma rápida fração de segundos, suas órbitas azuis passaram pelo livro repousando ao lado da bebida do loiro, coisa que por si só não lhe interessava tanto assim, já que ele não tinha tanto interesse em livros ou poesias como as outras pessoas, mas que de alguma forma manteve seu olhar por muito mais tempo do que os outros faziam. Talvez pelo fato da capa ser um pouquinho mais bonita e bem cuidada do que outras que já havia visto, ele não sabia.

— Interessado? - Thomas perguntou curiosamente, notando seu olhar, colocando sua xícara de volta no pratinho e estendendo o objeto que Craig observava para ele.

— Um pouco, eu acho - respondeu com sinceridade, apanhando-o de suas mãos e se maravilhando em como era satisfatório passar os dedos pela capa grossa do livro em questão e a folhas da primeira página.

— Você pode levar, se quiser, eu já li esse livro até de ponta cabeça. - sorriu suavemente, Craig o acompanhando sem que se controlasse mais uma vez. Ele estava sorrindo muito num dia só, era meio estranho.

— Eu não sei ler - bufou de zombaria da própria situação. Não sabia nem o que significava as duas palavras do comecinho.Pfft, patético,ele pensou consigo mesmo - Nunca tive muito tempo pra ir a escola. Eu sempre quis, no entanto, mas nunca levei muito para frente.

Thomas ficou em silêncio por algum tempo, o olhar distante, como se estivesse discutindo com si mesmo em silêncio, até que, inesperadamente, anunciou:

— Eu posso te ensinar...?

Se Craig ainda estivesse bebendo sua própria xícara, ele com certeza teria se engasgado e morrido naquele momento.

— H-Huh, quê?! - ele se atrapalhou com as próprias palavras e encarou o outro jovem como se outra cabeça tivesse crescido em seu pescoço. Tudo que ele fez foi sorrir gentilmente em concordância.

— Eu imagino que você não tenha muitas coisas para fazer por aqui, não é? Seria uma forma de você ficar entretido até a primavera chegar e evitar que você fique entediado com apenas a minha presença. - Por algum motivo, Craig sentiu uma vontade quase incontrolável de rebater e defendê-lo, mas acabou se impedindo no último segundo. O tom de voz de Thomas se tornou tímido de um segundo para outro, e ele desviou o olhar - quer dizer… se você quiser, é claro.

Craig ficou paralisado por alguns segundos com aquela oferta inesperada, realmente voltando a considerar que estava mesmo morto e em outro plano para estar finalmente recebendo uma oportunidade tão valiosa logo após ter escapado por pura sorte de uma morte lenta e dolorosa. Ele jurou que Thomas pareceu brilhar em sua frente por alguns segundos.

Quando percebeu que estava levando tempo demais para responder e provavelmente parecendo um idiota, ele balançou levemente a cabeça, retornando a sua pose relaxada de antes, porque infelizmente Craig ainda era orgulhoso demais para se deixar consumir pelas suas emoções, e então respondeu.

— Hm, é claro, por que não?

— Perfeito! - a face de Thomas se iluminou novamente, um brilho tão contagioso que sentiu-se hipnotizado com a visão daquele sorriso tão grande se espremendo entre as bochechas - você vai voltar amanhã de novo?

— Estaria bom pra você?

— É claro que sim

VI.

— Você tem andando um pouco avoado nos últimos dias, Craig, há alguma coisa acontecendo? - a senhora Schultz o indagou de repente enquanto jantavam uma noite, tirando-o dos próprios pensamentos tão de repente que ele se viu sem palavras por um longo tempo enquanto ela e sua irmã o encaravam com expectativa.

Fazia algum tempo desde o dia em que seu primeiro encontro com Thomas aconteceu, coisa que, por algum motivo, passou de acontecer apenas nas noite em que estivesse com dificuldades para dormir paratodasas noites que se seguiram. Craig havia praticamente trocado o dia pela noite naquele ponto, não podendo arriscar se encontrar com ele de dia com as outras duas acordadas. Não que nunca tenha tentado, o problema é que Thomas parecia ter uma certa aversão pelo dia por algum motivo, nunca estando em seu quarto quando o sol já estava no céu mais uma vez nas únicas vezes que tentara sair escondido.

Ele odiava admitir, mas havia um pouco de verdade nas palavras de Ellen. Craig realmente havia ficado mais alheio ao seu redor quando começou a ficar mais próximo de Thomas devido às pequenas aulas que começou a receber dele, secretamente se perguntando o que ele estava fazendo quando não estava em seu quarto e se aborrecendo com a lentidão em que o tempo passava quando não estava com ele.

Ele se via pensando constantemente sobre o que andou aprendendo nessas aulas, mesmo que na maior parte do tempo estivesse olhando mais para o loiro do que para o que ele estava explicando.

— Não sei do que está falando. - ele respondeu com frieza, olhando para ela por breves segundos antes de voltar a encarar a sopa de carne em seu prato. Havia se passado tempo suficiente para Craig ter se acostumado com o desconforto que Ellen trazia consigo, ele sabia como mantê-lo escondido no peito, já não o incomodava tanto quanto antigamente.

Mesmo assim, aquela ligeira sensação de perigo ainda pairava sob sua cabeça quando ela o olhava daquele jeito.

— Ela tem razão - Tricia argumentou. Craig se sentiu traído por alguns segundos. - você parece mais feliz nos últimos dias, está namorando com alguma fantasma daqui, por acaso?

— Quem me dera, Tricia - ele riu forçadamente, evitando o olhar delas. Uma sensação estranha atingiu a boca de seu estômago com aquela frase - mas acho que é porque a primavera está se aproximando, só estou ansioso.

Com suas palavras, a expressão da ruiva esfriou drasticamente. Seu olhar se tornou distante e ela encarou seu espaço da mesa com abalo.

— É, realmente... Está se aproximando. - Craig, por sua vez, só notou sua mudança de comportamento quando viu a senhora Schultz carinhosamente afagar suas costas e a olhar com carinho.

— Não se sinta assim, minha querida, você sabe que pode me visitar quando desejar, não sabe? - ela dissera, sorrindo gentilmente com doçura, recebendo um tímido sorriso e com um lampejo muito pequeno de melancolia da garota, e então virou-se para seu irmão - Eu digo isso para você também, Craig.

Ele estava se preparando para responder que aquilo provavelmente não seria possível da forma mais casual possível quando ela rapidamente completou.

— Isso, é claro, se você não continuar entrando onde não devia e não acabar ficando aqui por mais tempo.

De repente, Craig sentiu tudo que ingeriu naquele dia se revirar drasticamente dentro do estômago, ameaçando subir pela garganta e sair pra fora de novo, completamente despreparado para aquela frase. Ele não soube o que responder por vários e vários segundos, paralisado com a ideia daquela mulher saber o que estava escondendo e só estar se preparando para mandá-los embora para causar mais efeito dramático. Tricia havia voltado a comer silenciosamente, sem ter ideia das preocupações que assolavam a cabeça de seu irmão e o que aquela frase havia significado para ele.

Seu coração acelerou descontroladamente, dando-lhe a impressão de que as outras duas pessoas na sala pudessem ouvi-lo.

— ...O quê?— ele respondeu antes que desse mais tempo para seu pânico se espalhar e crescer, se sentindo estúpido por não agir da mesma forma confiante como há poucos minutos.

— Você sabe, senhor Craig, é tão fácil se perder aqui dentro, principalmente de noite quando não há muita iluminação nos outros quanto aqui. - a senhora Schultz respondeu, disfarçando alguma coisa com um falso olhar pensativo - Como não se perdeu ainda?

Antes que tivesse tempo para abrir a boca e respondê-la, nem um segundo depois, Tricia o fez primeiro.

— Você não me disse que estava andando pela casa de madrugada. - Ela dissera com uma carranca de desaprovação nas feições que até certo ponto era fofa. As duas agora o olhavam intensamente do outro lado da mesa.

— Eu só ando quando não consigo dormir. - ele mentiu, ignorando o sentimento de nervosismo que lhe atingira com toda a atenção depositada nele. Mudando o olhar para Ellen que ainda esperava sua resposta - Eu só tenho um bom senso de direção. Ou até sorte.

— Entendo, entendo. - ela assentiu, claramente apenas fingindo sua satisfação, muito tempo depois. Seu olhar escureceu em sua última fala, quase podendo ser confundido com preocupação - eu só espero que não acabe se arrependendo.

Ele engoliu seco, uma pontada de raiva se formando dentro de si. Ela sabia. É claro que ela sabia. Por que não fazia nada, então? Ia direto ao ponto e os jogava para fora de uma vez, como ele estava prevendo desde o início?

— Tenho convicção que não vou. - ele respondeu com dureza, olhando-a fixamente.

— Eu espero.


VII.


— Eu acho que sua mãe me odeia. - Craig soltou no meio da conversa enquanto estava distraído, a primeira noite deles em que não se encontravam no enorme quarto que normalmente se viam, mas sim num dos escritórios trancados que ficavam na área leste da mansão, área essa que nunca havia entrado até então, que Thomas explicou ser muito mais adequada para suas aulas do que seu quarto, por mais que não fosse exatamente isso que eles foram fazer lá.

Além da iluminação imensamente mais luminosa, havia uma longa variedade de bebidas alcoólicas nas prateleiras.

De repente, só agora Craig notou que havia esquecido de seu objetivo principal há alguns meses atrás. Ele riu internamente de si mesmo.

— Hm? Por que diz isso?Porra, merda- Thomas perguntara, depositando o líquido roxo em sua taça. Ele não se lembra em que momento haviam decidido trocar o chá doce pelo vinho, mas Craig não se importou muito com isso. Na verdade, via até como uma vantagem.

— Ela sempre dá a impressão que vai me mandar embora a qualquer momento. - ele suspirou, relembrando a conversa que tivera com ela mais cedo e sentindo a fúria anterior borbulhando com a lembrança - Ela também me lança esses olhares como se quisesse me matar ou algo assim, ou soubesse de alguma coisa que eu não sei.

Craig pensou em comentar sobre aquela faísca de apreensão que havia percebido nos olhos dela quando havia o avisado para tomar cuidado, mas logo se deteve, devia ter sido coisa de sua cabeça.

— Acha que ela sabe alguma coisa sobre nós? - ele perguntou apreensivo. Quando percebeu como sua frase soara, ele rapidamente se corrigiu - quero dizer, sobre você saber sobre mim e essas coisas.

— Talvez, mas se souber, não parece que ela vai fazer alguma coisa sobre isso - disse com um olhar distante, não percebendo o constrangimento do loiro em sua frente - tudo que ela faz é falar umas merdas enigmática e… enfim. Aqui é mais frio que o resto dos cômodos, não é?

— Oh, é por causa do inverno, não costuma ser tão frio assim. - ele afirmou, aproximando a vela para perto deles - A parte boa é que acabará em breve, não precisaremos mais dormir em cima do fogo para nos esquentarmos à noite logo, logo.

Thomas parecia alegre enquanto falava e tomava um gole do vinho recém aberto, mas houve uma leve caída em seu tom de voz por breves segundos em sua frase seguinte

— Você poderá voltar para casa, também.

No mesmo instante que terminou sua frase, um vazio gelado o atingiu, muito mais gelado do que o ambiente em si, manchando toda sua paz, como um pequeno pingo de tinta se alastrando sob uma superfície molhada com um simples e breve toque, manchando tudo pelo caminho.

A garganta de Craig de repente se apertou, sua boca ficando incrivelmente seca, seus olhos fitavam Thomas com uma dor crescente, mas ele foi rápido em afastá-la para longe antes que voltasse a lhe causar efeito.

— Nós não vamos voltar para casa. - ele respondeu, a voz baixa e firme, mas ainda trêmula. O olhar tão distante, que simplesmente não parecia ele.

A primeira reação perturbada que Thomas já o vira expressar.

— Por que não? - Thomas perguntou, intrigado, e ainda sim preocupado por aquela troca de atmosfera tão repentina. Sua confusão só cresceu quando o observou desviar o olhar em resposta, ainda incrivelmente rígido, como se não fosse ele.

Um longo silêncio se seguiu após isso. Os engolindo de uma forma tão intensa que o desconforto pesou nos ombros de Thomas. Ele havia dito algo errado? Havia tocado em algum assunto que não deveria? Deus, porque sempre tinha que estragar tudo?

Ele pensou que ambos já haviam desenvolvido um vínculo forte o suficiente para falarem abertamente sobre qualquer coisa naquele ponto, mesmo que houvesse uma certa relutância em alguns assuntos em específico, mas agora que presenciou de fato uma reação negativa vinda dele sobre seu passado, algumas coisas começaram a fazer mais sentido em sua cabeça, parando para raciocinar melhor.

Ele nunca falou muito sobre seu passado ou o porquê de ter ido parar ali, em primeiro lugar. Em nenhuma circunstância, nem para contar mais a fundo uma pequena história de quando era criança ou alguma desventura que teve ao lado de Tricia a não ser por dizer pequenas informações vagas. Sempre sobre ela, aliás. Nunca sobre si mesmo. Craig nunca havia iniciado uma conversa sobre o que seria dele quando a primavera chegasse, qual caminho ele seguiria depois dali, ou qualquer coisa relacionada a sua família. Nada. Thomas devia ter adivinhado que ele teria um bom motivo para isso depois de passar tanto tempo com ele, devia ter adivinhado que ele não gostaria de falar sobre isso. Nem agora, ou nem nunca, se desejasse.

Com essa lógica, Thomas se sentiu um tanto perturbado com o pensamento de que Craig não confiava nele como imaginava.

— Nós apenas... não podemos - ele respondeu, muito tempo depois - é uma longa história.

Thomas ponderou por algum tempo. Ele se perguntou se seria uma boa ideia perguntar novamente, mas rapidamente despachou o pensamento. Por deus, ele não insistiria em algo que claramente é uma ferida em processo de cicatrização, ele jamais faria Craig se sentir desconfortável perto dele.

E mesmo que tivesse cedido e de fato tivesse lhe perguntado, teria sido interrompido nem mais um segundo depois pela sua própria boca, quebrando o silêncio por ele com xingamentos involuntários como sempre tendia a fazer em péssimas horas.

— Ei, ei, relaxa - o sorriso confortador que recebera de Craig o surpreendeu, um calor estranho e reconfortante no olhar dele, algo que seria um pouco bizarro de se imaginar acontecendo há algum tempo atrás. Um consolo num simples olhar, um carinho que talvez ele tenha visto há muito, muito tempo, mas nunca em um momento como esse - nós podemos conversar sobre isso, se quiser, eu não me importo.

Isso era mentira,ele sabiaque Craig se importava. Ele viu o quão vulnerável Craig ficou por breves segundos antes de retornar à postura anterior como se aquele tópico em questão não fosse grande coisa, como ele tendia a fazer com absolutamente tudo. Ele viu a dor nos olhos dele, ameaçando extravasar através de lágrimas mas sendo rapidamente mandadas embora como todas as outras emoções dele, Thomas não era louco à esse ponto para imaginar tudo aquilo, mas se Craig dissera isso diretamente à si e o dera a permissão de saber uma parte tão secreta e íntima sua, ele não argumentaria.

Não agora.

A densidade incômoda da sala pareceu ter se desmanchado com suas palavras. Tão rápido que acharia que nunca teria entrado se não fosse a preocupação permanente em seu peito ainda apitando.

— Eu não quero te incomodar,porra, merda,merda!- mesmo assim, ele preferiu deixar suas questões para si mesmo.

— Deixa disso, porra, já falei que tá tudo bem.

Thomas o olhou aturdido por alguns segundos. Ainda intrigado por perceber um tom tão grande de diversão e casualidade em uma frase que parecia tão agressiva - o que era uma grande ironia, até para ele mesmo - mas ele logo foi preenchido por um calor confortável no peito. Ele pensou em insistir, mas deduzindo que isso só deixaria Craig irritado, decidiu perguntar logo;

— Craig… O que aconteceu com você e sua irmã para chegarem até aqui?

Depois disso, o silêncio se fez presente novamente. Por tanto tempo que Thomas pensou que o amigo havia desistido de lhe contar seu passado, mas então, um suspiro longo, alto e angustiado foi ouvido.

— Nós éramos… Nós não tínhamos condições tão boas antes daqui - Craig começou. A voz totalmente plana e neutra, mas ainda trêmula, se você prestasse muita atenção - Nós vivíamos da boa vontade dos outros e das mercadorias que nosso pai vendia, isso quando tínhamos sorte, claro, porque nós não tínhamos uma fama muito boa naquela vila, e para piorar minha mãe estava esperando um bebê.

Thomas ouviu atentamente, toda sua atenção voltada para a história contada. Ele se aproximou mais, e então acenou com a cabeça para que Craig continuasse. O rapaz em questão bebeu todo o líquido de sua taça antes de continuar.

— Era eu quem cuidava da casa quando meu pai não estava depois que minha mãe ficou grávida. Eu me esforçava pra deixar tudo perfeito, mesmo que não tivéssemos muito. Eu retribuí tudo que eles me deram quando eu era mais novo, eu não queria ser mais um peso para eles, mas…

— Mas…?

— Tinha a Tricia.

A expressão de choque que se manifestou no rosto de Thomas teria sido cômica se não estivessem naquela situação, em específico, teria até rido se não soubesse como tudo terminava. Por uma breve fração de segundos, ele pensou que Thomas descobriria apenas com aquela frase antes que sequer tivesse chance de falar toda história ainda não contada com sua irmã, e toda a antipatia e desapreço que sempre esteve lá desde sua memória mais antiga.

Por parte dele.

— Ela era uma garota bem violentaantes de chegarmos aqui, pelo que você já pode imaginar. Ela costumava bater nas outras crianças e tinha hábito de roubar comida das feiras. Era bem comum pais e vendedores furiosos baterem na nossa porta para reclamar dela, e muitas vezes tínhamos que dar algo como pedido de desculpas para não contatarem a polícia em troca, o que só dificultava nossas vidas ainda mais. Ela era nosso segundo maior problema naquela época. - sua mandíbula se contraiu e se apertou dentro da boca, algo que Craig esperava que Thomas não notasse.

— Por conta disso, nossa reputação piorava ainda mais; ninguém gostava de nós por conta do passado turbulento da minha mãe, mas pareciam odiar um pouquinho mais a minha irmã. Ela não merecia isso. Ela era só uma criança tentando sobreviver. Por que as pessoas tinham que ser… assim?

Ele suspirou profundamente antes de continuar.

— Um dia, ela apareceu gravemente doente, nunca entendemos o porquê. Não tínhamos dinheiro para pagar um médico e ela parecia piorar a cada dia; mal saia de casa, não saia da cama e sempre reclamava de frio mesmo que estivesse com todos os cobertores da casa, ela também espirrava frequentemente.

— Meu pai e eu vivíamos ouvindo lamentos dos clientes que vinham à nossa barraca nos consolar como se ela já estivesse morta, foi um inferno! E esse era apenas o boato menos ruim que andaram espalhando por aí.

Uma pontada de raiva apertou seu peito com aquela lembrança, e as milhares outras bem piores que vieram junto com ela. A vaga memória de ver o contraste tão bizarro de um sorriso começando a se formar na face de um cliente e palavras exageradamente melancólicas sendo proferidas pela “perda tão recente” com pesar tão forçado que o enojava, e o quanto seu pai pareceu profundamente perturbado quando os tais clientes foram embora. Eles só não voltaram para casa mais cedo naquele dia de novo porque suas desculpas estavam começando a não fazerem mais tanto efeito com sua mãe. Eles jamais poderiam dizer uma coisa dessas à ela.

— No final, a doença que ela tinha se revelou não ser tão ruim quanto pensamos; pouco menos de cinco dias depois ela já estava de volta aos trilhos. Parecia que nem tinha adoecido. Ficamos confusos, à princípio, mas como não tínhamos um médico para nos explicar o que havia acontecido com ela, não pensamos muito nisso, pensamos que estava tudo bem de novo.

Uma risada mórbida ecoou, vários segundos depois, como se uma piada muito boa tivesse passado por sua mente.

— Quão errados nós estávamos.



IX.

19 de setembro de 1786.



O barulho do tecido raspando a madeira do assoalho era ensurdecedoramente irritante, mas incomparavelmente melhor do que os grunhidos de dor que fora forçado a ouvir nos últimos dias.

Ressoava no quarto inteiro, deixava um cheiro enjoativo de sabão barato no ar, e seus braços estavam tão dormentes que o movimento havia se tornado automático naquele ponto. Ele sabia que não adiantava lavar algo que foi sujo desde o princípio, mas ele precisava fazer alguma coisa que o deixasse ocupado o suficiente para não pensar nas coisas que haviam acontecido naquele dia.

Algumas folhas de grama começavam a crescer entre algumas fendas do chão. Craig as arrancava friamente com a bucha, desmanchando-as em pedaços em cada impulso que dava contra o assoalho, nem se preocupando em limpar os restos que se perdiam e grudavam na esponja. Em algum ponto, ele começou a usar muita força nas esfregadas, suas mãos tão firmementes agarradas num tecido tão duro e áspero que acabou se machucando e deixando o próprio sangue cair na água e se alastrar por onde lavou. Pareceram durar horas o movimento vagaroso do líquido escarlate calmamente se espalhando pela água transparente, tornando-a tão escura que suas órbitas azuis pareceram brilhar de volta para ele do reflexo de seu próprio sangue. Era perturbador, sem nenhuma dúvida, mas isso não o perturbava. Seus pensamentos foram abruptamente cortados quando Tricia adentrou o quarto.

— Craig...? - ela perguntou, olhando-o tão profundamente que podia jurar que a viu se afastar por alguns segundos para longe dele. Craig piscou algumas vezes, mortificado pelo fato dela ter o pego encarando uma poça enorme de sangue. Ele olhou para baixo de si mesmo em desespero, tentando ganhar tempo para arranjar uma desculpa, mas notou que não havia sangue nenhum no processo, e então a fitou novamente.

A garota o olhava cheia de suspeitas, com a testa franzida, um lampejo de preocupação muito,muitodifícil de enxergar em algum lugar deles, coisa que com certeza Craig não perceberia nunca, porque ele não prestava muita atenção em sua irmã mais nova naquela época. O cabelo despenteado há bastante tempo amarrado em dois rabos de cavalo, deslizando pelas suas costas e por cima da capa velha e suja que sempre usava. Uma verdadeira bagunça de fios ruivos que ainda sim era a coisa mais chamativa em sua aparência além dos intensos olhos azuis, como os de Craig, mas sem aquela frieza intimidante.

Depois de alguns segundos ainda estático pelo susto, ele finalmente respondeu com simpatia, o que só fez com que a garota sentisse mais embrulho no estômago. Ela podia fingir que não sabia que aquele tom de voz era claramente forçado se isso significasse tirar aquele sentimento ruim de dentro do peito.

— Ah, olá Tricia - ele disse, ainda sentindo a adrenalina do susto correndo em suas veias e se esforçando para afastá-la, mantendo a voz totalmente neutra - eu não vi que estava aí.

— O que aconteceu com você? - ela perguntou com uma pitada de receio na voz. Ele quase gaguejou por alguns segundos antes de respondê-la, o nervosismo ainda agitando seu interior.

— Eu só estou um pouco cansado, não é nada demais. - a forma cortante com que dissera intimidou um pouco a irmã, mas isso não a impediu de continuar falando.

— Você estava aí há bastante tempo.

— Eu não dormi bem hoje, eu vou me deitar logo.

— Já faz alguns dias que você anda assim. Certeza que dormir vai ajudar?

Craig suspirou fundo, o que durou longos segundos desconfortáveis pelo ponto de vista de Tricia, começando a sentir uma pitada de irritação crescer dentro de si. Por que ela era tão insistente?

— Por que está aqui? Já quer o almoço? - ele trocou de assunto, sabendo que se continuasse com aquela pequena discussão iria acabar surtando em cima dela. Seu pai havia lhe avisado para não estressá-la naquela semana, coisa que estava sendo incrivelmente difícil de fazer.

Ela demorou alguns segundos para responder, ainda o olhando em alerta.

— Sim... mas eu vejo que você está meio ocupado, eu volto depois--

— Não, posso fazer agora - Craig se levantou num pulo, passando por ela para ir até a cozinha e deixando toda a bagunça de sabonetes para trás.

Quando ele passou ao seu lado, uma ventania leve se formou e soprou alguns fios do cabelo dela para trás. Seu coração acelerou por alguns segundos, a ansiedade a consumiu com a proximidade do irmão, mas se foi tão rápido quanto veio quando percebeu que não recebera um olhar sequer, por mais rápido que fosse. Deixando apenas um filete de melancolia que já havia se acostumado àquele ponto para trás.

Quando se sentou na mesa de jantar que cobria boa parte do cômodo pequeno, Craig retirou uma pequena tigela de uma das prateleiras de madeira da maneira mais despreocupada possível, jogando a pequena abertura do objeto para os lados com força e fechando-a com um chute com a ponta de um dos pé quando se afastou. O objeto de porcelana tão delicado foi carregado nas pontas dos dedos e arremessado rudemente em cima da mesa antes de Craig se virar para a panela fervendo no fogão, como se o fato daquilo ser a coisa mais preservada daquela casa não fosse grande coisa para se preocupar.

Aquele era um dos dias em que Craig voltava para casa borbulhando de fúria, por um motivo que ele nunca chegava a explicar, e que estranhamente parecia ter o atingido com mais força do que nunca naquele dia, o que só dava motivos a mais para Tricia optar por ficar sentada em silêncio na mesa e evitar agravar aquele sentimento o melhor que pudesse. Ele normalmente descontava no garoto gordinho e de cabelos castanhos que vivia arrastando-o para fora de casa, o sorriso tão grande e entusiasmo contagiante que todos se perguntarem como uma pessoa como ele conseguia ser amigo de um jovem tão estoico como Craig Tucker, mas depois de seu desaparecimento, Tricia tivera o infortúnio de se tornar o novo alvo principal.

(Ela não necessariamente via como algo ruim, no entanto. Era bem melhor do que receber aquela indiferença tão cortante e dolorosa que aquele ponto era incrivelmente comum como se nem mesmo existisse.)

— A senhora Donovan veio aqui de novo. - de repente, Craig se pronunciou, tirando-a de seus pensamentos e ainda de costas para si, mexendo com os objetos ferventes no fogão e fazendo Tricia involuntariamente sentir falta de quando ele ainda estava calado só para evitar aquele assunto. O tom mórbido e indiferente de sua voz só aumentou seu desconforto - eu pensei que você estava doente.

— Não foi eu! - ela gritara nem um segundo depois que Craig terminar sua frase, desesperada para que ele acreditasse nela ao menos naquela vez mesmo que soubesse que seria uma tremenda estupidez no final. Seu corpo estremeceu até o último fio de cabelo quando ouviu aquela risadinha sarcástica e seca que a chamava de patética sem uma única palavra ressoando na cozinha.

Por deus, como ela pensava que ele acreditaria nela?

— Não, claro que não foi, que estupidez minha pensar que foi. - seu irmão respondeu. O barulho da colher de madeira mergulhando na sopa dentro da panela começando a ser audível mesmo do outro lado do quarto, indicando o quanto Craig estava começando a falhar em disfarçar sua irritação com aquela calma insuportável que a fazia pensar o quanto seria melhor ele apenas surtar e gritar - De novo tentando roubar a mesma casa? Você tem alguma coisa mal resolvida com a mulher ou o quê?

Apesar do imenso pavor de enfurecer seu irmão e acabar ouvindo coisas que não queria, a ruiva não se calou.Por favor,ela ainda era a garota que socou um garoto duas vezes maior que ela e colocou todos os seus amiguinhos cuzões para correr para debaixo das saias das mamães. Ela nunca se calava, nem mesmo para ele.

— Você fala como se não tivesse feito exatamente as mesmas coisas antigamente, não é? - da mesma forma que ele rira há poucos minutos, ela o fez. Encarando suas costas com um sorriso de desprezo, como se não houvesse nenhuma tristeza crescente dentro do peito - Quer tanto ser “o exemplo de irmão mais velho” pros nossos pais que vira a porra de um hipócrita. Você não vai me fazer esquecer o que eu mesma já vi você fazendo.

Um riso nasal mais alto saíra de Craig enquanto ele lançava a cabeça para cima e bufava de escárnio. Toda a cena a fazendo se sentir mais e mais irritada e pateticamente pequena.

A verdade era que, apesar disso ter já se encerrado, e nem sequer uma palavra ser dita sobre isso nos dias de hoje, há muito tempo, Craig foi exatamente igual à ela. Roubava frutas e joalherias das barracas menores da feira junto ao seus amigos quando tinha pouco mais de treze ou quatorze anos, ainda tão jovem, e por mais que já tenha havido casos em que ele não foi tão sortudo em pegar o que queria e ir embora, ele eramuito bomno que fazia. Algo que, acidentalmente, acabou inspirando outras pessoas.

— A diferença entre nós dois é que nunca fuiburroo suficiente para tentar roubar a mesma coisa duas vezes - ele respondeu, virando levemente a cabeça para lateral para encontrar o olhar furioso da irmã. - na verdade, ninguém além de nós dois sabe sobre isso, o que só prova que só quem sabe fazer direito tem que continuar fazendo, ao invés de qualquer idiota birrento.

Tricia quase cuspiu de surpresa e horror ao ouvir suas palavras. Ficando paralisada por breves segundos.

— Então você admite? Mal posso esperar pra contar pra mamãe.

— Como se ela realmente fosse acreditar em você, Trish. Pode ir, boa sorte com isso. - ele cuspiu.

Por alguns segundos, Tricia o encarou com aquela face cheia de horror e hesitação impagável que só a deixava mais pequena em relação a ele. A adição do apelido só intensificando a raiva que agora ardia dentro do peito. Ambos os irmãos se encaravam como se fossem se atacar a qualquer segundo. Tricia se calou por um tempo considerável enquanto ele se aproximava com o recipiente da sopa numa das mãos.

— ...O que você quer dizer com isso? - ela perguntou, a voz fina e coberta de raiva, provocando outro bufo.

— Por favor, não finja que não sabe do que eu estou falando. - Craig debochou, tirando um olhar surpreso da garota ruiva - Acha mesmo que ela vai levar a sério asuapalavra contra a minha?

O novo conjunto de palavras a mortificou com mais intensidade que o anterior. O tom vocal se suavizando drasticamente enquanto sua fúria dava lugar a incredulidade.

— O quê…?

Craig afastou qualquer vestígio de remorso que estava poderia estar sentindo naquele ponto antes que tomasse muito controle sobre ele. Ele queria falar tudo que queria. Ele queriabrigar. Queria que os conselhos de ser paciente e dar tempo ao tempo de seu pai fossemse fuder. Tricia não aprenderia uma lição enquanto seus pais continuassem à lidar com ela daquela forma pacífica e irritantemente compreensiva que andava e progredia de forma tão lenta que parecia não haver progresso nenhum de fato. Ela precisava ouvir aquelas coisas para mudar aquele jeito, mesmo que tivesse que sermuitosevero para isso.

Ele estava fazendo isso para o bem dela, mesmo que no final ela não fosse enxergar aquela discussão daquela forma tão cedo.

— Sabe o que eu escuto eles conversando quando você não tá por perto? - ele sussurrou enquanto despejava o alimento na tigela em sua frente distraidamente, derrubando acidentalmente algumas pequenas gotas para fora e sentindo o vapor quente subir pelo seu rosto - “Deus, porque eu tenho uma filha tão horrível?”, “Eu não deveria ter engravidado desta criança”, “Nossas vidas estariam tão boas sem ela aqui!"

— Você está mentindo! - ela gritou em negação, querendo desesperadamente acreditar que ele estava mesmo falando mentiras.

— Você sabe que não estou. - ele respondeu no mesmo segundo, batendo a mão com força na mesa fazendo a saltar, e aproximando o rosto da irmã ameaçadoramente por cima. Diminuindo-a muito mais do que fizera em todas as outras vezes em que aquele mesmo cenário acontecera, mas que não acabaram indo tão longe como aquele, sentindo uma diversão mórbida ao ver pequenos indícios de lágrimas naqueles olhinhos claros que o olhavam com tanta raiva, mas ainda outra coisa que foi prontamente ignorada - Eles não são os únicos, na verdade.Trish. Tem tanta gente por aí que pensa o mesmo, é a única coisa que eles andam falando nos últimos dias, sabia?

Com um grande pesar, e com suas próprias palavras, ele se lembrou de algo que aconteceu há alguns dias atrás, algo que deixava até ele, o próprio Craig, estupefato com o tamanho da ignorância humana. A vaga memória de duas mulheres conversando em sussurros a alguns quilômetros longe da lojinha de seu pai sobre ninguém menos que Tricia e os acontecimentos recentes que ocorreram com ela.

“A filha mais nova dos Tucker acabou falecendo, você não ouviu?”

“Não, eu a vi na varanda de sua casa esta noite, ela está viva. Onde ouviu isso?”

“Como isso é possível?! Ela não conseguia nem sair da cama há poucos dias, pensei que já estava morta.”

“Pode ter sido só um mal entendido, Sheila, meu filho também ficou doente esses dias e já está radiante de novo. Crianças ficam doentes.”

“Eu não acho que esse seja o caso agora! Não viu o quanto aquela garota é estranha? Sem falar das mortes recentes dos animais da região!”

“Você não está insinuando que…”

Ele afastou o restante da memória antes que se envolvesse demais com ela.

— Não... cala a boca! Cala a boca!

— Eu ouço as pessoas da feira sussurrarem umas pras outras "Ai meus deus, a mais nova dos Tucker não morreu? Que azar! É melhor eu já correr " - ele riu internamente quando a viu se encolher na cadeira e tapar os próprios ouvidos em desespero, soluços descontrolados inutilmente tentando ser abafados. Sentindo-se mais motivado à continuar - "É uma pena que a reputação deles só continue decaindo por causa daquela garota".

Tricia agora agarrava os próprios cabelos com força e os pressionava contra os ouvidos, se esforçando ao máximo para não conseguir ouvir as palavras cruéis de Craig contra ela, embora soubesse o tanto de sentido que elas possuíam. Ela sentiu as lágrimas finalmente saltarem para fora de suas órbitas quando sentiu o toque dele num dos ombros, delicado e que poderia lhe dar a ideia de que estaria se desculpando em alguns segundos se não o conhecesse tão bem.

— Sério, você ainda quer continuar com esse hábito horrível mesmo depois de ter sido pega tantas vezes? Não faz ideia do que está fazendo e continua só porque quer se sentir melhor do que os outros. Quer saber de uma coisa? Isso não te faz nada mais que uma pirralha irritante e-- antes que fosse capaz de terminar sua frase, o líquido quente da sopa mal saída do forno foi jogada contra seu rosto abruptamente, com a tigela e tudo, que caiu no chão e se espatifou em um milhão de pedacinhos, ardendo sua pele como fogo que imediatamente lançou o corpo de Craig para trás em total choque. Tricia saiu em disparada da cozinha até o exterior nem um segundo depois, sem olhar para trás.

— Urghhh, sua merdinha! - Seu grito de raiva ecoou pela casa inteira enquanto ele agarrava o rosto ferido, pouco antes de um bater de porta estrondoso ecoar de volta para ele.

Craig não se preocupou com a grande possibilidade de sua mãe acordar e vir até a cozinha checar o que estava acontecendo até notar uma das vasilhas de seu jogo de chá tão precioso completamente destruída no chão, a única coisa cara que não havia sido cedida por dinheiro, que nem mais um minuto depois foram retiradas com muito cuidado do assoalho, pecinha por pecinha, e colocadas sob as mãos de quem as apanhava ao mesmo tempo que milhares e milhares de murmúrios ofensivos fugiam dos lábios de seus lábios, tanto pelo rosto ainda dolorido, tanto pelo que havia acabado de acontecer, e tanto por estar totalmente fudido por todas as coisas que fez só aquele dia.

Ele não se arrependia, no entanto. Iriam o agradecer depois.

Quando juntou todos eles sobre o balcão e percebeu que nem no inferno teria como consertar, Craig se permitiu ficar frustrado. Com um suspiro alto, ele deu um soco forte no balcão, que o devolveram com uma dor ardente na parte da mão, que de alguma forma não conseguia superar a ardência em seu rosto, e depois encharcou um pedaço de tecido na água de um dos baldes e pressionou contra a própria face, ainda grunhido com a dor. Aquilo com certeza formaria uma cicatriz.

Ele tentou, como tentou, ocupar a cabeça da mesma forma que estava fazendo antes de toda aquelaputariaacontecer para não deixar nenhum tipo de remorso chegar até ele. Porque, pelo amor de deus, por que ele se sentiria culpado de qualquer forma? Ele estava a acordando para a vida! Dando um fim naquele hábito podre que ela tinha de roubar de uma vez ao invés de "calmamente sentar, conversar e entender o porquê". Era mais prático daquela forma. Rigoroso, mas prático.

Ele permaneceu repetindo aquelas inúmeras desculpas e explicações para os próprios atos em sua mente enquanto se preparava para retornar à seus afazeres como se nada tivesse acontecido, ainda com o rosto dolorido, tentando se concentrar apenas na desculpa que inventaria à sua mãe quando, de repente, sem motivo aparente, a imagem de sua irmã chorando piscou em sua frente enquanto passava no corredor.

O brilho das lágrimas que escapava entre os dedinhos finos cobrindo seu rosto totalmente vermelho se prendeu em sua mente por mais tempo. O sentimento da culpa agora sendo demais para ignorar.

Você sabe, em toda sua vida, Craig nunca agiu como os outros irmãos da região. Ele nunca brincava de brincadeiras estúpidas com Tricia só pra fazê-la feliz, nunca a ensinava truques para se dar bem ou contava-lhe histórias assustadoras para obrigá-la a se comportar. Não, ele sempre foi frio, apático, seco. Não a olhava nos olhos ou dizia mais do que o necessário. Pareciam dois estranhos que aconteceram de viver na mesma casa, embora, talvez já tenha o feito em algum ponto de sua infância.

Talvez, em algum momento distante, eles já tenham sido tão próximos quanto todos os outros irmãos que Tricia observava e sentia tanta inveja. Poderia ser até a razão por trás de ainda existir todo aquele afeto e carinho que sua irmã inexplicavelmente ainda nutria por ele, mas havia se passado tanto tempo, que simplesmente não importava mais.

Você pensaria que seria fácil continuar a se manter indiferente ao que aconteceu para o Tucker mais velho. Ele nunca se importou com ela por todos esses anos, porque começar agora? O segredo é que nem ele mesmo se compreendia.

Você não foi duro demais? Isso foi realmente necessário?

É claro que aquilo foi necessário. Ela não entenderia agora porque ainda era uma criança, mas em breve ela o faria. Ela era esperta, Craig sabia que ela o faria. Em seus raros momentos de empatia, Craig conseguia se enxergar nela quando era mais novo; cheio de vida, sem nenhuma noção do perigo, com toda aquela fome infantil pelo que não deveria fazer.

Mas então, mesmo depois de tanto tempo, o remorso cresceu até o ponto em que não aguentava mais.

Nem mais um segundo depois, abandonando o tecido frio que pressionava contra a queimadura, o pratinho destruído de sua mãe no balcão, o sabão secando em seu quarto, Craig xingou alto antes de sair com passos pesados e rápidos de sua casa atrás da garota que há pouquíssimo tempo havia corrido para longe. O sentimento prevalecendo sendo a raiva extrema, mas que gradativamente mudava para preocupação.

Deus, que irmão horrível ele era.

O outono estava lentamente tomando o lugar do verão. O vermelho e amarelo se formando nas árvores e nas folhas dos arbustos daquela época era uma visão bonita de se ver, principalmente em volta da casa pequena em que viviam com diversas videiras com flores subindo pela madeira, mas Craig não se importou com isso, nem mesmo com a brisa fria que começava a se intensificar que o recebeu hostilmente assim que saiu para fora.

Craig olhou para todos os lados a procura de uma pequena mecha de cabelo ruivo se movimentando, se frustrando ao não ver nada além de seus vizinhos andando livremente na rua de terra com cestas nos braços e jarras de água na cabeça. Ele correu para mais longe de seu jardim, desviando com cuidado das pessoas que passavam e aumentando a velocidade dos passos conforme sua preocupação também crescia dentro de seu peito, coisa que ele não tentou desmanchar dessa vez, sabendo o quanto merecia sentir o peso das consequências na pele.

Com o passar do tempo, ele realmente pensou em desistir e apenas esperar por ela em casa, por mais que se sentisse mais e mais entorpecido de afligimento e alguma coisa lhe dissesse que aquilo não era uma boa ideia. Mas então, em meio há todas aquelas pessoas andando, havia uma pessoa de estatura baixa o bastante para se chamativo, capa longa e escura, mas que ainda mostrava a barra do vestido azul balançando com a movimentação de suas pernas, com a cabeça totalmente coberta pela touca que foi minimamente levantada enquanto ela atravessava a rua. Um ponto de esperança se acendeu em seu peito, que só cresceu e se tornou alívio quando a pessoa atendeu o chamado de seu nome quando gritou há longos passos atrás dela.

O rosto de Tricia por baixo da touca se encontrava completamente vermelho, ainda vagamente molhado devido as lágrimas que ela deveria ter derrubado no tempo que levou para encontrá-la, passando de neutro para surpresa, e logo depois raiva novamente.

Craig correu para alcançá-la, desistindo de atravessar as diversas pessoas em sua frente educadamente e passando a simplesmente empurrá-las para longe quando viu sua irmã começar a correr.

Suas pernas doíam como o inferno quando conseguiu alcançá-la, depois de muito,muitotempo correndo pela cidade inteira atrás dela. Pensou que seus pulmões iriam explodir dentro do peito e seu coração pular para fora da garganta quando finalmente parou. Ele correu com tanta velocidade que não conseguiu interromper suas próprias pernas de pararem no mesmo segundo que desejou quando conseguiu chegar até ela, e agora ambos os Tucker estavam na parte mais isolada da cidades, caídos no chão de pedra, totalmente exaustos, mas a mais nova deles, apesar disso, não se sentiu nem um pouco menos disposta a se afastar e a continuar a fugir.

Craig segurou com toda força que tinha e com muito esforço os pulsos da ruiva com as duas mãos, tentando o melhor que podia conter os socos e chutes que ela lhe lançava desesperadamente tentando fugir. O processo sendo imensamente cansativo e frustrante, mas não acendendo nenhum pingo de raiva havia dentro dele, no entanto. Apenas uma enorme preocupação.

— Me larga, me larga, porra! - ela gritou, desesperadamente tentando fugir. Não havia mais nenhum cuidado ou receio em suas palavras, só ódio, ódio ardente direcionado apenas para Craig. Não seria ao todo uma surpresa se todo o apreço que ela incrivelmente ainda conseguia sentir por ele tivesse sumido com o vento depois do que acontecera. - Socorro! Tem um maluco me atacando!

— Tricia… Tricia! Olhe para mim! - Craig implorou, mas Tricia não o ouviu. Continuou se balançando e tentando se soltar do aperto dele - Desculpe, tudo bem?! Eu não queria ter te dito essas coisas!

— Você parecia estar se divertindo cuspindo elas em mim! Me larga! - ela vociferou de volta, ainda se mexendo, mas muito menos dura em comparação há alguns segundos.

— Olha… nós podemos conversar isso melhor em casa, tudo bem? Só por favor pare de se--! - ela cuspiu em seu rosto antes que Craig pudesse terminar.

— Eu não vou voltar para casa!

— Tricia, escute--!

— Não! Me deixa ir! Não é isso que você tanto queria?!

— Não! Tricia-- eu--! - e então o corpo dela subitamente amoleceu em seu aperto, mas ao invés de se sentir aliviado, tudo que o acertou foi arrependimento e pesar intensos.

E então, Craig sentiu a atmosfera esfriar e seu corpo amolecer, como parte de sua vida tivesse se esvaído e se desmanchado no ar que respirava com as palavras seguintes.

— Vai se fuder, Craig! Eu te odeio! Você é o pior irmão do mundo.

Tricia já havia desistido de lutar contra ele. Completamente desolada, sem nenhuma força restando dentro dela para continuar a correr. Naquele ponto, tudo que lhe restava era chorar, chorar e chorar, sem ter a mínima ideia de que o causador de tudo aquilo sentia essa mesma vontade crescer dentro do peito.

Pela primeira vez em muito tempo, Craig não soube o que fazer. Quando viu ela se acalmar e cair de costas no chão duro e desabar em lágrimas, dizendo todas aquelas palavras dolorosas, a única coisa que sua cabeça lhe dizia era o quanto ele merecia aquele ódio. O quanto ele não merecia ter nada do que tinha. Não merecia aquele amor que durou de uma forma inexplicável depois de tantos maus-tratos. Craig simplesmente se sentou, a puxou para seu colo, e a abraçou. A ruiva não tentou afastá-lo.

— Eu sei, eu sei. - ele sussurrou em seus ouvidos. As únicas coisas que foram ouvidas depois disso foram seus soluços, o arrastar das folhas no chão pelo vento frio, pessoas falando e as carruagens passando há longos metros atrás deles na cidade.



X.


— Nós precisamos voltar - ele sussurrou horas mais tarde, quando o corpo dela já havia parado de tremer e o sol a se por entre as montanhas que podiam ser vistas dali. Havia se passado o que parecia ser uma eternidade, mas nenhum dos dois pareceu ter notado isso até o sol estar iluminando apenas a direção deles - Trish?

Quando não recebeu nenhuma resposta, cautelosamente, ele afagou os ombros da ruiva e a balançou da forma mais suave que conseguiu, já imaginando que ela havia adormecido. Pouco tempo depois, Tricia soltou um pequeno gemido de sono, e então se afastou do abraço desajeitado deixando uma marca quente no local. Ela massageou os próprios olhos que ainda estavam um pouco ardentes devido ao que aconteceu com um longo bocejo, e então, ficou paralisada em silêncio no mesmo lugar que estava por alguns segundos.

— Você me ouviu? Está ficando tarde, precisamos ir - Craig repetiu, sorrindo com simpatia incerta e voltando a afagar suas costas, ainda perdido de certa forma sobre o que fazer. Ele sentiu seu coração esfriar e se partir quando Tricia se afastou de seu toque nem mais um segundo depois, como se queimasse.

Sem dizer uma única palavra, ela se levantou e limpou a sujeira da capa velha que já estava bastante suja antes mesmo de cair no chão e então caminhou com passos curtos em direção de onde haviam saído. Craig pensou que ela gostaria de ir embora sozinha até vê-la parar abruptamente há vários passos de distância em sua frente e o chamar com um balançar de cabeça.

Durante todo o caminho, nenhum dos dois disse uma única palavra. O olhar de Tricia era distante e concentrado apenas para onde ia, a face totalmente neutra. Em toda sua vida, Craig não se lembrava de se sentir tão culpado antes, por mais que o sentimento já tenha o atingido uma vez ou outra no passado. Não apenas pelas coisas que havia dito à ela mais cedo,por tudo, absolutamente tudoque já havia a feito passar. Iria ela o perdoar algum dia?

— Craig… espera, o que eles estão fazendo ali?

Ele não teve tempo de responder sua própria pergunta.

Havia uma grande aglomeração de pessoas em frente a construção de madeira que viviam. Gritando coisas incoerentes que não era possível ouvir daquela distância. As tochas e troncos de madeira com fogo em suas mãos sendo o único ponto luminoso da rua inteira. Trica teria esbarrado em um grupo delas antes de saírem do túnel se o mais velho não tivesse a puxado para trás no último segundo. As tais pessoas não pareceram ter os notado, continuaram marchando em direção aos outros. A multidão crescendo cada vez mais.

Bem de longe, Craig podia ver seus pais com feições aflitas abraçados um ao outro na porta de entrada da casa, conversando sobre alguma coisa que julgava ser incrivelmente ruim pela maneira com que falavam. Um sentimento pavoroso se infiltrou pela sua garganta.

— Espere aqui, tudo bem? Eu vou falar com eles. - ele acariciou levemente seu ombro, sentindo-se um pouco mais disposto a prosseguir quando não foi afastado dessa vez. Ele preferiu fingir que não fazia nenhuma ideia do que aquilo se tratava na frente dela.

Ela o olhou preocupada, mas não o impediu.

E então, quando se virou afastou meros dois passos, num piscar de olhos tudo se tornou o mais horrível dos pesadelos.

Seu corpo endureceu do mais puro horror quando viu sua casa há poucos metros de distância ser incendiada por todas aquelas pessoas com as tochas, sendo consumida pelas chamas de maneira tão súbita que em questão de segundos o fogo se tornou mais brilhante que a própria luz da lua, irradiando calor até mesmo para ele que estava consideravelmente longe, queimando toda a madeira e a grama ao redor, levando-as à cinzas em segundos, até derrubar toda a construção num forte estrondo.

Ele sabia que não deveria ter ignorado os avisos. Deveria ter parado e escutado com atenção todas as vezes que ouvia o nome deles em alguma conversa paralela. Deveria ter dado mais atenção quando alegavam que sua família era amaldiçoada e que iriam fazer alguma coisa à respeito, mas aquilo simplesmente… não parecia certo. Era algo tão surreal que apenas não entrava na cabeça, não podia ser levado à sério. Como alguém era tão idiota ao ponto de acreditar num mito estúpido que surgiu de uma história inventada? Não fazia sentido. Ele pensava que não fazia sentido. Aquilo não podia ser real.

“Você não está insinuando que…”

“O que você acha? É obviamente um vampiro que estamos lidando!”

Com aquela visão, muitos sentimentos o atingiram de uma vez só. Craig quis gritar o mais alto que sua garganta conseguiria. Ele queria entrar em sua casa e salvar seus pais de um destino terrível demais para pessoas boas com ele sofrerem. Ele queria vomitar. Ele queria queimarcada um daqueles desgraçadosque pareciam contentes demais em darem um fim a algo que muito menos era real.

A única coisa que fez, no entanto, foi correr pelo mesmo caminho que veio antes que qualquer um o visse.

Ele não se permitiu olhar muito tempo para o rosto horrorizado da irmã iluminado pelas chamas do que a muito pouco tempo fora sua casa, lugar onde deveria haver memórias felizes e nostálgicas, mas que nunca passou de um lugar extremamente melancólico e frio graças ao irmão horrível que ele foi para ela. Ele sabia que não aguentaria ver ela sofrendo novamente no mesmo dia. Craig apenas a abraçou com força, como se ela fosse desaparecer se não o fizesse, a agarrou nos braços, ecorreu. Correu o mais rápido que ele jamais fez, como se suas vidas dependessem disso. Sem rumo, sem nenhum pingo de esperança e com a sanidade que já era incrivelmente questionável naquele ponto se mantendo apenas por um fio sutil e gasto, que não duraria muito tempo naquelas circunstâncias.

Era isso que ele estava evitando de pensar mais cedo. Ele não deveria ter feito isso. Não deveria.Não deveria.

— Ei, Tricia, você pode me ouvir? - ele sussurrou para ela, a voz tão trêmula, tão fraca, não era o mesmo Craig que havia acordado naquela manhã.

A garota não conseguiu responder de outra forma além de um rápido e desajeitado balançar de cabeça contra seu pescoço. O rosto ainda em total choque, lágrimas escorrendo dos olhinhos brilhantes que ainda olhavam fixamente para onde o fogo se originava, agarrando os ombros de Craig com força, a última pilastra que ela ainda tinha para se manter em pé, que ainda sim era incrivelmente frágil.

— Nós vamos ficar bem, okay? Isso vai passar por isso, nós vamos ficar bem.

— Craig... nossos pais... E-Eles...

— Shhh... - ele afagou novamente os fios ruivos da garota a silenciando no mesmo instante, o toque acidentalmente mais firme em comparação ao anterior, mas demonstrando carinho mesmo assim - somos só eu e você agora, não se preocupe... vai ficar tudo bem.

Seu olhar caiu para a sombra que se formou abaixo deles com a iluminação das chamas atrás deles enquanto corriam para longe. Os gritos gloriosos ainda sendo ouvidos atrás dele, como se seus atos fossem motivos para celebração enquanto pessoas que não tinham nenhum mal ou malícia dentro de si mesmos queimavam lentamente. Todas as maiores certezas que já tivera na vida sendo aos poucos deixada para trás, inclusive as que falava como consolo para sua irmã.

— Vai ficar tudo bem.


[...]


Depois disso, o silêncio engoliu o escritório intensamente, mas que não incomodou tanto aquele que acabara de contar sua história. Uma bola sufocante de palavras presa na garganta de Thomas, completamente horrorizado e enojado pelas atrocidades que acabara de ouvir. Demorou muito tempo até que conseguisse arranjar forças para dizer alguma coisa, que mesmo assim, só demonstraram mais ainda seu espanto.

— Puta merda… eu… não posso acreditar. Craig... por que essas pessoas fariam algo assim?

Craig não respondeu de imediato, sentindo-se entorpecido pela embriaguez do vinho e pela história que acabara de reviver. A imagem de seus pais derretendo e gritando em agonia grudou como um carrapatoem sua mente, mas que dessa vez não provocaram nenhuma reação exagerada nele. Depois de revivê-la tantas vezes, já não doía tanto quanto da primeira vez. Ele se sentia imune a qualquer tipo de dor que aquela memória poderia o provocar,. Ele tomou um longo gole da garrafa de vinho já pela metade.

— Eles diziam que ela estava amaldiçoada. - ele sussurrou com amargura, um sorriso de nojo no rosto ao lembrar daquelas coisas, uma diversão mórbida que lhe dava calafrios -você acreditaria se eu te contasse que pensavam que ela era um vampiro?

Novamente, aquelaexpressão de choque que seria cômica se a situação não fosse tão deprimente. Ele tomou outro gole do vinho distraidamente. Não percebeu a tensão que se formou nos ombros dele ombros.

A história ainda não havia terminado.

— Nós moramos no celeiro de um dos nossos vizinhos vários meses no meio de um monte de merda de animais, mas era o que tínhamos então não reclamamos muito, até que um dos filhos da puta nos encontraram - seu rosto se enrrugou de nojo por alguns segundos, cuspindo a última parte com veneno nos dentes, como se tivesse provado algo que não gostou. Depois, sua face ganhou um forte feição de desânimo - ele era filho de uma velha amiga nossa, eu pensei que ela fosse legal, sabe? Ela vivia ajudando minha mãe com qualquer coisa que ela precisasse depois que ela foi expulsa de casa; ajudou a cuidar de mim, inclusive. Até a casa que morávamos era originalmente dela! Eu pensei que ela não se importaria, Liane era uma boa pessoa, o problema era ofilhinho mimadoque conseguia entrar na cabeça dela com tanta facilidade e conseguiu a convencer de nos entregar.Aquele desgraçado, gordo, filho da puta do caralho!Eu devia ter socado mais forte aquele nariz de porco antes de sair!

Uma fúria devastadora dominou seu ser quando se lembrou do rosto convencido de Eric Cartman rindo gloriosamente da miséria deles quando os encontrou adormecidos no celeiro de sua casa. Seu impulso foi jogar a garrafa em em algum lugar com toda sua força para extravasar sua frustração. Ele realmente teria o feito se a presença de Thomas e seu olhar amistoso não tivessem o acalmado no mesmo instante.

— Eu fiquei tão em pânico que simplesmente corri com ela para longe dali antes que as autoridades chegassem não trazendo nada comigo a não ser as roupas do corpo, botando a vida de nós dois em perigo no meio dofrio, foi aí que acabamos encontrando essa mansão. - ele completou com um longo suspiro. Pouco tempo depois um sorriso de canto surgiu em seus lábios.

— Eu juro para você que eu pensei que íamos morrer, mas então, um anjo miraculoso caiu do céu e me colocou bem aonde você mora, e cá estou eu, vivo e bêbado. Se isso não é sorte grande eu não sei o que é. - ele riu sozinho, Thomas ainda o olhando com uma mistura de simpatia e incredulidade.

— Como ela lidou com tudo isso...? - ele perguntou com a voz fraca, soprando com tanta preocupação que Craig se assustou por alguns segundos.

— Deus, ela virou uma bagunça completa. - ele riu com amargura - não havia um único minuto em que eu não a via chorar. A pior parte é que a última vez que eu vi isso acontecendo foi no dia em que ela nasceu, acredita?

Craig sorriu levemente ao pensar no quanto ela era uma garota forte, a menina mais durona que ele já conheceu. Nem mesmo quando todas as crianças da escola se voltaram contra ela e a acusaram de roubar o dinheiro de uma de suas colegas - coisa que ela não tinha feito - ela não abaixou a cabeça e demonstrou estar tocada com aquela situação. Nem quando essas mesmas crianças haviam a cercado e a agredido no final das aulas. Tricia apareceu como se nada daquilo fosse grande coisa, sem nada além de um olhar desinteressado e presunçoso quando voltou para casa com um mero olho roxo e os punhos doloridos. Ela só chorava quando algo realmente a machucava de verdade. Isso só fez com que se odiasse mais ainda.

— Eu podia ter feito alguma coisa. Eu podia… eu sei que eu podia. Meus pais ainda estariam vivos e ela nunca precisaria chorar--

— Craig, você sabe que isso não é culpa sua, não é?

Numa fração de segundos, então, as duas mãos do loiro agora afagavam as laterais de seus braços com ternura enquanto o fitava com preocupação. As lágrimas que estavam tão bem contidas dentro de si começaram a escorrer em algum momento no qual ele não fazia ideia. Deus, ele era tão patético. Thomas devia estar pensando a mesma coisa.

— Você estava ouvindo o que eu tava falando, por acaso? Eu poderia ter--

— O que você poderia ter feito, hein? Não tinha nada para se fazer! Não foi você que acusou sua irmã de ser uma criatura que ninguém sequer tem certeza que existe e colocou fogo na casa dela! - Thomas o aconselhou com dureza, mas com o tom de voz ainda estranhamente reconfortante - A culpa não é sua, é deles.

"A culpa não é sua, é deles"

Houve uma pausa longa depois dessas palavras. O silêncio já bastante comum daquela mansão preenchendo a sala que até pouco tempo estava tão cheia de falatório. O sentimento assustadoramente quente envolvendo a boca de seu estômago numa intensidade e rapidez tão grande que quase o fez desmaiar ali mesmo, sem mais nem menos, como andava ameaçando acontecer nos últimos encontros que tivera com o loiro na rápida fração de segundos em que seus olhos se encontravam e se encaravam. Mas ainda sim,diferente.

Ele sabia o que aquilo significava. É claro que sabia, ele não era um completo idiota. Ele prestou atenção em todos os sinais que notara em si mesmo até ali e que não se esforçava muito para afastar quando finalmente deitava sua cabeça no travesseiro. Ele só não queria admitir. Ele sabia que caso admitisse para si mesmo aquele sentimento tão avassalador que poderia destruir qualquer ser humano por dentro que nem toda porra de história de amor que já ouviu se tornaria muito mais do que ele poderia conter. E ele tinha certeza, até as órbitas sombrias o olharem com tanto calor como ele tanto desejava, que Thomas jamais o veria da mesma forma. Assim como nenhum outro cara já o viu antes.

Nos segundos seguintes, ele não pensou em mais nada. Não pensou em como ele poderia ter entendido tudo errado e estar cometendo um erro terrível. Não pensou em como ele estariam condenado pelo resto da vida se caso se arrependesse disso mais tarde. Não pensou em como todos olhariam com desgosto para ele se caso soubessem. Ele apenas se inclinou,como se nada disso fosse grande coisa, e em um piscar de olhos encostou sua boca na de Thomas, e as coisa progrediram dali.

Durou uma eternidade, ao mesmo tempo que durou pouco menos de um minuto. Os lábios de Thomas eram incrivelmente gelados, não tinham gosto de chá de morango ou do vinho refinado como imaginou, tinha um gosto imensamente melhor do que tudo que já provara, algo que ele nunca poderia ter imaginado. Sua rigidez nos primeiros segundos foi o suficiente para acender seu pânico e o fazer se afastar não muito tempo depois. Ele já sentia o arrependimento se arrastando pelas suas costas e se preparando para culpar a embriaguez na ponta da língua. No entanto, Craig não teve tempo nem de abrir os olhos e raciocinar o que havia acontecido, porque as duas mãos gentis que haviam se afastado, tão gélidas como o próprio inverno inteiro, o puxaram para perto de novo, e Craig não precisou de nenhum outro incentivo para aprofundar aquele beijo.

Thomas incrivelmente sabia trabalhar com as mãos. O mero toque de seus dedos longos em seu pescoço enquanto as línguas se encontravam só colocaram mais lenha naquela chama ardente que se acendeu dentro de seu peito, bombardeando sangue para todos os cantos de seu corpo e batendo forte seu coração contra as costelas, como nunca bateu antes, nem mesmo quando encostava acidentalmente em sua pele quando estavam tendo aquelas aulas estúpidas que só serviram de desculpa para passar mais tempos um com o outro. O calor subindo e se manifestando no suor, colando suas roupas.

O beijo se intensificava num ritmo tão lento que o irritava em níveis catastróficos. O fazia querer simplesmente jogá-lo numa parede e devorá-lo.

As respirações descompassadas, o desejo irradiando de seus corpos, cada vibra de seu ser implorando para que Thomas chegasse mais perto porque aquilo simplesmente não parecia suficiente; tudo isso o fazia se sentir o pior dos pecadores. Ironicamente, a ideia que mais o excitava naquela história toda.

Ele não se lembra como acabaram retornando ao quarto de Thomas em algum momento e como de alguma forma ninguém ouviu os barulhos que ele acabou soltando ao longo do caminho. Ele sentiu as mãos dele deslizarem por suas costas, se prenderem em suas coxas e as levantarem enquanto se agarrava nele com os membros, e no minuto seguinte, a maciez do tecido da cama tocava suas costas suavemente, e então sua camisa que pingava à suor sendo retirada de seu torso.

Um suspiro de prazer escapou de sua garganta involuntariamente quando o sentiu se deitar sobre ele na cama e tocar em sua virilha com um dos joelhos. Os corpos agora se tocando completamente, mas ainda parecendo não ser suficiente. Seu rosto se aqueceu como se estivesse em chamas quando o joelho deu lugar à uma mão, que numa lentidão torturante adentrou suas calças e agarrou sua ereção que já estava doendo aquele ponto. Os beijos gelados dele mudando para o pescoço e mais sons eróticos foram pronunciados.

Craig era um jovem atraente, não havia dúvidas sobre isso. Mesmo assim, ele ainda era virgem, o que explicava sua sensibilidade à toques mais ousados. Não que ele nunca tenha se envolvido com outra pessoa antes, só nunca havia chegado muito longe. No momento em que as mãos das garotas da cidade deslizavam para suas calças tentadoramente, sua resposta imediata era dar uma desculpa qualquer e correr para longe dela o mais rápido que podia, como um bloqueio impenetrável que ele nunca realmente entendeu, mas que agora fazia todo sentido. Tudo pareceu se encaixar em sua cabeça, mesmo que já tenha se questionado sobre isso no passado e jogado para algum lugar debaixo do tapete.

Os movimentos de Thomas aceleraram com o passar do tempo, desmanchando todo tipo de pensamento que houvesse em sua cabeça. Cada fibra de seu corpo gritando em êxtase, coisas se espalhando dentro dele que nunca pensou que sentiria. Tudo bom demais para ser verdade, até que finalmente voltaram ao normal para Craig, como sempre costumavam ser.

Ele sentiualgo. Algo ruim, pela primeira vez o envolvendo depois de tanto tempo saboreando tantas sensações gratificantes que já deveria ter desconfiado. Uma dor impertinente que não conseguia raciocinar de onde vinha, tão forte que se misturou com o prazer que prevalecia em seu ser e juntos se tornaram um sentimento completamente novo. Algo bom, mas ruim ao mesmo tempo. Que o fez gemer o mais alto que podia até e o consumiu até a última vibra por um longo tempo, mas não parou quando finalmente atingiu o orgasmo.

Tudo que permaneceu foi a dor latejante em seu pescoço que pareceu se intensificar depois do ápice, sua própria respiração pesada, e aenormeexaustão que se instalou por toda sua carne. Craig tentou fazer qualquer coisa, chamar por Thomas, questionar o que estava acontecendo, ou só ignorar o que podia e continuar a noite, mas a exaustão que o sucumbiu era simplesmente demais para lutar, não conseguia fazer muito mais que mover as pálpebras, que ainda precisavam de demasiado esforço.

Ele não precisou dizer nada, de qualquer forma, porque Thomas se pronunciou não muito tempo depois.

— Craig… se eu te contasse uma coisa, você promete não ir embora?

Ele se sentiu meio pego de surpresa com essas palavras, um pouco mais com a apatia com que foram usadas. No momento em que abrira a boca para dizer algo, o cansaço cresceu muito além da conta, algo que era exageradamente grande, considerando o quanto ele era bom em resistir ao doce alívio do sono e ao descanso almejado. Por um milésimo de segundos, Craig pensou que ouviria palavras doces, mas ele já deveria imaginar que as coisas já haviam voltado ao normal para ele.

Thomas se levantou sobre ele, revelando sua face completamente manchada de sangue que deslizava por baixo de seu queixo e caia em seu rosto, olhando com um brilho tão intenso e sombrio que não parecia o mesmo Thomas que o olhava com tanta ternura há poucos minutos atrás.

Com aquela visão, outra sensação se alastrou. Quando mudou seu olhar de Thomas para o próprio corpo uma última vez uma enxurrada grotesca de sanguese espalhava na cama e manchava os lençóis brancos.Seu sangue.


— Você não vai sair dessa casa quando o inverno acabar.

24 Nisan 2020 01:05 0 Rapor Yerleştirmek Hikayeyi takip edin
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Manuela nao sei escrever fodase

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