Aprendi a gostar de carros com o meu avô. Não que ele fosse um aficionado, mas a maneira como discorria sobre seu Karmann Ghia 1962, adquirido quando adolescente, era apaixonante para mim. Esse era o único assunto que fazia seus olhos se iluminarem, apesar de perceber certo tremor e tristeza em sua voz. Uma característica marcante do velho, que nunca entendi, era que às vezes ele sorria cansado e, nos raros momentos quando o fazia, não era uma alegria real, dessas que até a alma se diverte. Talvez fosse o sorriso de uma triste lembrança.
Era-me extremamente afeiçoado, sempre me defendendo das artes que mereciam umas boas palmadas, mas que nunca as recebia por força de sua intervenção. Meu pai o olhava com pesar e balançava a cabeça dizendo que o velho estava me estragando. Ele erguia sua cabeça branca, encarando meu pai, e respondia que não o havia estragado e, consequentemente, faria o mesmo comigo. Meu pai ria e minha mãe ficava furiosa.
Quando cheguei à minha própria adolescência, já sabia o que faria da vida. Entrei na Faculdade de Engenharia Mecânica e, no meu segundo ano, após economizar o dinheiro que o pai mandava, encontrei aquilo que, no subconsciente, havia procurado a vida inteira.
Numa dessas feiras de carros antigos encontrei um Karmann Ghia. Apesar de o velho não ter me mostrado nenhuma foto do seu próprio carro, sabia-o decor. através de suas lembranças. Era minuciosa a descrição que guardava na memória. Examinei-o, sentindo o coração arrebentar no peito, apenas para constatar que se tratava do mesmo.
O proprietário se aproximou, trazendo o peito estufado, dizendo como o havia adquirido e do quanto cuidara dele. Na verdade não estava tão bem apresentável como queria me fazer crer. Sem querer ofendê-lo com o que me passava pela mente, no tocante à forma de se tratar um carro, fingi ouvi-lo. Dado momento, enquanto buscava a certeza de que o objeto à frente era o mesmo de vovô, uma palavra me chamou a atenção: Vendo! Virei-me para ele e disse aos borbotões:
— Eu compro! — sorri para o carro, encantado.
O velho me analisou com os olhos apertados e soltou:
— O que um garoto como você vai fazer com uma relíquia dessas?
Expliquei-lhe, sem dar muita importância ao fato, uma vez que não queria que nossa negociação terminasse na exorbitância de um valor que não pudesse arcar e que faria uma surpresa para meu avô. Isso pareceu lhe condoer a alma. Perguntou-me se tinha o dinheiro necessário e combinamos de nos encontrar posteriormente para finalizar a transação.
Quando cheguei dirigindo o carro no final de semana, soltando sua buzina rouquenha, o velho saiu de casa e assim que o viu, parou estupefato. Caminhou como se estivesse flutuando até baixar a mão sobre o capô. Prendi a respiração esperando por sua próxima reação. Olhou para mim, mais intrigado do que emocionado, e antes que dissesse algo, fui lhe contado sobre a feira.
— Não pode ser o mesmo carro. A cor está errada — disse-me com a voz falha.
— Vô, se você observar onde a pintura está descascada, bem perto da roda direita, verá que ele foi pintado e que não fizeram um bom trabalho. Mas não se preocupe. Eu o deixarei como era no seu tempo.
Ele balançou a cabeça concordando. Abriu a porta, que soltou um leve rangido como a exaltá-lo, e sentou-se no estofado feito um homem que carrega o peso do mundo. Vi-o se abaixando, desajeitado, numa posição totalmente incômoda para alguém de sua idade e, sem saber exatamente como e onde a escondera, o observo olhando para um retângulo com olhos vítreos. Pela primeira vez vi lágrimas em seus olhos. Sentei-me ao seu lado, olhando a fotografia em branco e preto de uma garota, com sapatos pretos de verniz tipo boneca, e um vestido que parecia uma camiseta sem mangas que descia até acima dos joelhos. Ela sorria tímida para a câmera, um rosto bonito, emoldurado por cabelos até os ombros.
Perguntei quem era e ele respondeu que aquela menina fora o amor de sua vida. Estela. Calou-se por alguns segundos, enquanto me dava conta de que acertara em comprar o carro. Só não sabia o que meu gesto faria a ele. Emocionado, passou a falar de como a conhecera e de como a perdera.
Seu pai estava se saindo muito bem no ramo industrial e ele, então com dezoito anos, comprou o carro de segunda mão no ano de 1968. Não precisou lapidá-lo muito. Uma polida aqui, um adesivo na carroceria, uma mexida no carburador e foi só rodar pela cidade. Ele a viu andando com as amigas pela calçada e seu coração parou. Passou por elas várias vezes enquanto tomavam sorvete, até que chamou sua atenção apertando a buzina do Ghia. Contrariando as amigas, Estela se debruçou sobre o vidro do passageiro e lhe ofereceu o sorvete. Naquele dia a levou, junto com as amigas, para a casa. Essas idas e vindas resultaram em um amor ardente e eterno, tendo o carro como testemunha. Até que seu pai descobriu que a menina era filha de um ex-funcionário que lhe causara problema em uma das fábricas.
Foi o suficiente para sua vida se transformar em um inferno. O pai passou a vigiá-lo cada vez que pegava o Ghia para encontrá-la. Em uma briga horrenda que tiveram, vovô chegou até a mentir ao pai dizendo que haviam terminado o namoro, o que foi atestado por seu grande amigo Pedro. O pobre rapaz, amigo até o fim, chegou a jurar de pé junto para seu pai, que o confrontou desconfiado, querendo a veracidade da coisa.
Diante da confirmação de Pedro, o casal teve uma trégua de alguns dias. Combinaram de não se ver até que vovô pudesse convencer o pai de que a menina não tinha culpa de nada. E foi assim que escondeu aquela foto que trazia nas mãos no solado do carro, enquanto seu olhar mirava o fim de tarde. Sempre que a saudade apertava, o rosto da menina o ajudava a encarar a situação.
Dias depois, em uma nova discussão entre eles, a proibição foi sumária. Foi ameaçado pelo pai. Ou ele acabava com aquilo ou seria enviado para fora da cidade, para morar com parentes distantes. Rebelou-se. Iria se casar com Estela a qualquer custo. Sairia de casa, para desespero da mãe, ainda naquela noite. E antes que o pudesse fazê-lo, o pai jogou sobre ele várias fotos onde Estela e seu amigo Pedro, encontravam-se aos beijos.
O chão de vovô ruiu naquele momento. Ela, quando confrontada, negou veementemente dizendo como ser possível ele acreditar naquela farsa! Entretanto, os fatos estavam bem à sua mão. Não havia como não serem os dois. Estava ali. A roupa, o anel que ela nunca tirava do dedo. Como ela podia ser tão dissimulada? Como podia chorar daquele jeito, agarrando-se a ele e pedindo que acreditasse nela, quando as provas estavam bem ali para qualquer um ver? Como acreditar no amor que dizia sentir por ele, enquanto agarrava sua mão, impedindo-o de deixá-la para sempre?
O pior de tudo foi ter que admitir que o pai estava com a razão e que ele havia sido um tolo, um joguete na mão dos traidores. Pedro não negou, mesmo quando o hematoma começou a aparecer em seu olho. Até aquele dia, vovô não sabia o que era sofrimento. Sofrendo, sobremaneira, decidiu, com o apoio do pai, vender o carro “manchado” de lembranças e, em seu sofrimento, jurou nunca perdoá-la.
Alguns anos depois Pedro, corroído pela consciência pesada, o procurou revelando a massacrante verdade. Estela foi vítima de uma armação entre ele e seu pai. Era muito jovem para raciocinar direito. Não podia recusar o dinheiro que receberia do velho estando tão necessitado quanto estava na época. O Velho lhe disse que era só ficar numa posição, bem perto da moça, que o fotógrafo conseguiria o ângulo perfeito para que não houvesse dúvida de que se tratava de um beijo ardente. E assim ele o fez. Estela não fora culpada. Sempre o amou.
Anos mais tarde, vovô até que procurou saber por onde ela andava, mas já era tarde para pedir perdão. Assim como ele, a moça injustiçada refez sua vida e seguiu em frente. Morrera, levando consigo o pesar de ter sido acusada injustamente pelo homem que amava e que deveria ter acreditado em seu amor acima de tudo, de todas as evidências.
Nunca se perdoou por ter sido ludibriado pelo pai e pelo amigo e por não poder dizer a ela o quanto sentia. Suas vidas poderiam ter sido bem diferente se tivesse ouvido o coração e não a razão.
Depois de me contar sua triste estória, deixou-me sozinho no interior do carro e entrou na casa levando a foto consigo. Fiquei sem saber o que fazer. Pensei em fazer-lhe uma surpresa e quem acabou surpreendido fui eu. Naquela noite quase não dormi e, o pouco que consegui, sonhei com o velho adolescente conversando com o carro depois da decisão tomada junto ao pai. O garoto se lamentava e o carro decidia que seria melhor para os dois se separarem, já que estava lhe causando tanta dor e raiva.
— Não sei se é uma boa ideia me separar de você também. Essa vontade é dele e não minha. O que farei sem nossas conversas, sem o seus conselhos, meu amigo? — perguntava o garoto com ardor alisando o volante do velho Ghia.
— Não se preocupe. Quando chegar a hora eu te encontrarei. — Afirmava a voz do carro.
Acordei perplexo. A história do velho havia mexido comigo. Um resquício do sonho martelava meus pensamentos:
— Vá meu caro amigo. — dizia a voz do carro ao meu avô adolescente — Eu cuidarei do seu garoto assim como fiz com você. Foi por isso que o chamei e o fiz vir até mim. Seremos tão grandes amigos como fomos um para o outro.
Assim que vi os primeiros raios de sol entrarem pela janela do quarto, havia me decidido vender o carro. Não queria que o velho sofresse ainda mais. Entretanto, ao abrir a porta da casa, mudei de ideia. Um jovem casal encontrava-se ao lado do Karmann Ghia. Havia uma felicidade tão intensa nos rostos dos dois que me senti tocado pelo momento. O rapaz do sonho olhou para mim como se me agradecesse, enquanto pegava a mão da garota. A imagem se desfez quando o farol do carro piscou para mim.
Olhei boquiaberto para o assento do motorista e lá estava vovô com a cabeça tombada no vidro. Corri até ele, sentindo o coração pular no peito. O casal havia desaparecido assim que cheguei ao carro solitário. A fotografia de Estela estava largada em suas velhas mãos, entretanto havia um jovem e genuíno sorriso de felicidade e gratidão em seu rosto.
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