As ruas estreitas e quase vazias do pequeno vilarejo em Louisiana aparentavam cenários de filmes de terror. Eram intermináveis e confusas como os becos de um labirinto, ladeadas por singelas construções em madeira e pedra. Haviam altas árvores de troncos estreitos, muitos galhos e poucas folhas amareladas e prestes a se soltar. O constante farfalhar produzia um ruído hostil e amedrontador, ouvia-se ecoando o som delas se balançando com a intensidade em que eram golpeadas pelo vento gélido e implacável do princípio de inverno. Aquela hora o céu estava encoberto por inúmeras nuvens acinzentadas que carregavam uma iminente chuva torrencial. Era fim de tarde, não demoraria a escurecer, e de repente as primeiras gotas tocaram o rosto de Anne, misturando-se as lágrimas que lhe escorriam incessantes. O clima frio de aspecto triste e mórbido harmonizou perfeitamente com o estado de espírito apático lânguido da figura feminina.
Anne Daniels apressou seus passos, ajeitando os cabelos cacheados de modo a cobrir-lhe a face plangente. Em relação a roupa rasgada e amarrotada que cobria parcialmente seu corpo, não havia muito o que fazer, mas, ao menos lhe restava o capuz de sua capa. Ela fungou, resvalando as costas da mão no nariz que escorria em decorrência do choro. Envergonhada, aflita e sentindo uma imensurável dor física e emocional, suspirou desgostosa ao deparar-se com o olhar presumido de algumas pessoas ao longo do caminho. Ela não era o tipo que se preocupava ao ponto de considerar o julgamento de terceiros. Em outra ocasião, teria erguido o queixo e ignorado os olhares de desprezo. Costumava ser forte e destemida, afinal foi ensinada a não se curvar jamais a soberba e prepotência dos que se julgavam superiores. Era livre! Um direito ruidosamente conquistado por seus antepassados. E sendo negra, mulher, nascida e crescida em meio a uma sociedade preconceituosa e misógina, ainda que camuflada entre as autoridades que diziam proteger os direitos de todos, para ela afetar-se com opiniões superficiais e equivocadas, não lhe permitiria verdadeiramente viver. E Daniels não sentia vergonha em expor seus sentimentos, o que não poderia se dizer do motivo que a levou àquele estado emocional devastado.
Levando novamente as mãos trêmulas aos olhos úmidos, dentre tantas outras, enxugou a face. A passos lentos e vacilantes vagueava sem rumo, relutante em retornar para sua casa. Como poderia, diante do que lhe ocorrera? Inúmeras vezes lhe foi avisado a probabilidade de que isto lhe pudesse acontecer. Mas, com rebeldia, não julgou válidos os conselhos de seus pais. Ela iria lamentar por isso eternamente. Obstinada em livrar-se do repentino infortúnio que se tornara sua vida, caminhou em direção oposta ao lar, até encontrar a antiga estação portuária desativada há décadas. Anne sentou-se à beira-mar olhando desinteressada as ondas chocarem-se contra o píer, os olhos turvos miraram o horizonte, sem, contudo, enxergar algo de fato. Cenas grotescas e desumanas passaram-se por sua mente, desorientado-a cada vez mais. Por que continuar vivendo? Havia motivos para permanecer dentro daquela cruel realidade em que se encontrava? ...Impura, sem honra ou dignidade. Nada lhe restou, nada do que era considerado valioso nos tempos em que vivia. Havia sido humilhada, maltratada e rechaçada por um ser desprezível, no melhor dos atributos. E ali, desiludida, amargurada, usada e abusada, ela sentiu-se estúpida por não ter dado ouvidos a voz da razão. Eram muitos os sentimentos e sensações que atormentavam sua mente perturbada e cansada.
A aparência lastimável, prostrada, indefesa e desalinhada fazia contraste com seu perfil cotidiano, tão organizado e imponente. A senhorita Daniels orgulhava-se de ser uma mulher negra de cachos bem cuidados, físico saudável e esteticamente agradável. Um sorriso alegre sempre a acompanhava, sendo exposto em seu batom rúbeo. A vestimenta acentuada ao corpo evidenciava de maneira decente seus traços femininos. Ela era linda! Sobretudo de alma. Inteligente, e estudiosa como muitos homens naquela época deixavam de ser. Anne não era perfeita, naturalmente. Uma filha rebelde, de opinião forte, resoluta. Queria ser dona de si, negava obediência aos mandos de seus progenitores de personalidade conservadora. Eles eram bons pais, queriam o melhor para a filha, mesmo ela não enxergando a conduta deles de tal forma. A sua personalidade era encantadora e inesquecível, era querida, o que não se aplicava a todos, afinal, quem poderia agradar todo mundo? Anne não possuía tal pretensão, e Nova Orleans jamais permitiria que o tivesse.
Um século após o fim da escravidão, e muita coisa necessitava de mudança. Aquele ódio gratuito, toda aquela intolerância que ainda estava vívida entre os habitantes brancos. A resistência dos negros quanto a confiar nos descendentes de senhores de escravo, era irredutível. Quem poderia culpá-los? Era notório o desconforto, a raiva e a repulsa que sentiam por afro-descendentes. A moça não entendia o que de tão errado fizera, se é que fizera, ou seus semelhantes, para terminar daquela forma. Não havia desculpa! Sequer motivos. Era puramente a maldade do ser humano, não de todos obviamente, contudo, da maioria que chegara a conhecer. Lhe corroía as entranhas admitir ter uma parcela de culpa, por, em sua ingenuidade, ter-se deixado levar por alguém como ele. Não obstante, jamais poderia imaginar que o final desse conto seria esse. Ele parecia tão certo, amável e verdadeiro. Mentira! Tudo havia sido uma grande farsa, e ela pagou um alto preço por isso. Anne tomou em mãos uma pesada pedra e algumas cordas velhas que jaziam espalhadas pelo chão sujo e empoeirado. Respirou fundo, inalando o cheiro nauseante da maresia mesclada a seu próprio sangue e suor. E tomando coragem, amarrou de qualquer jeito as cordas em seus pés, fazendo o mesmo com a pedra rústica. Soluçou, levando uma mão ao peito, na falha tentativa de sufocar a dor, era chegada a hora.
As lembranças intrusivas se fizeram presentes uma vez mais em sua mente. O homem alto, corpulento e de sorriso simpático, cativou-a facilmente. Anne não se importou com a cor de sua pele clara, tão pouco em relação a excelente condição financeira, prestígio e poder, díspares em relação a si própria. Gerhard Ingstad mostrou-se inicialmente de igual para igual, no entanto, as diferenças entre os dois eram exorbitantes. Ele era jovem, vinte e sete anos e solteiro. O herdeiro principal da famosa dinastia do Lord Ingstad. Soberana e proprietária de incontáveis propriedades dentro e fora do país, possuíam muito além de prestígio, poder, para fazerem o que bem entendessem de praticamente todos, e a respeito de tudo. A triste realidade que Anne descobriu mais tarde. Gerhard somente quis aproveitar-se dela e assim o fez. Violou seu corpo, sua vida e seu coração. Ludibriou-a fazendo pensar que estava apaixonado, mas, sua intenção resumia-se unicamente em desfrutar dos prazeres que poderia da beleza negra que fascinava a muitos. Daniels caminhou de volta à margem decidida a aplacar seu tormento, entretanto, antes que pudesse atirar-se ao abismo abraçando seu destino, ouviu uma voz dirigindo-se diretamente a ela. Anne estagnou petrificada.
— A senhorita não julga que nossa raça já teve um fim desonroso como esse, por tempo demais?
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