Não é uma virada de ano qualquer. Todas as emissoras de televisão, das pequenas as grandes, estão de plantão para cobrir a chegada do ano 2000. Como dizem insistentemente os jornalistas, já é 2000 em Sidney, Paris, Londres, Moscou, Berlim, Tóquio e dentro de poucos instantes será no Brasil também, em primeiro lugar onde o horário de verão está em vigor, como é o caso de Curitiba.
Tita é uma garotinha de 12 anos que como muitas outras, veste a roupa nova que ganhou no Natal para ver a contagem regressiva com os pais em frente à televisão. Meire das Neves, a mãe dela, detesta datas comemorativas de um modo geral, mas resguarda a superstição de que dá mau agouro dormir na virada.
Tita está sentada no chão da sala com o cachorrinho Cricri, um amável Beagle que também foi seu presente de natal. Ela não nega que está chateada porque queria que houvesse mais alegria e espírito de confraternização nas festas de fim de ano. Como é de costume, o telefone não para de tocar, todavia são os parentes do seu padrasto Horácio que telefonam para desejar feliz ano novo.
Aline, a quem Tita considerava sua melhor amiga, se transformou muito nos últimos meses para agradar um menino por quem está cegamente apaixonada. Adolfo, o seu melhor amigo, também tem uns comportamentos estranhos porque ao mesmo tempo em que diz gostar dela, dá indiretas sobre querer namorar — apesar de Tita se considerar nova demais para isso, nem sequer lhe pediu o número de telefone ou o endereço de casa para não perder o contato durante as férias.
Tita está se sentindo muito sozinha porque acredita que toda garota de 12 anos precisa ter amigos da sua idade, sentir que pertence a algum lugar e às vezes sua vida parece tão previsível que teme se transformar numa miniatura da sua mãe, uma mulher mal humorada que odeia tudo.
O ano 2000 chega com chuva em Curitiba e a queima de fogos por essa razão fica um pouco ofuscada, então Tita acompanha o show de luzes no céu pela televisão imaginando como estão se sentindo aquelas pessoas que estão na areia da praia ou em festas onde há música, alegria, sorrisos e abraços.
Quando acaba a queima de fogos em Copacabana, ainda que a transmissão da RPN prometa se estender até às três da manhã, Meire apanha o controle remoto da televisão e desliga o aparelho:
— Agora acabou a palhaçada! É hora de dormir.
Horácio boceja:
— Ah Meire, é sábado...
— E eu com isso? — retruca ela, apontando na direção da filha que está com o cachorro no colo. — Renata, vá escovar os dentes e já pra cama...
— Mas é sábado, manhê! E é ano-novo e eu estou de férias...
— Eu não gosto de falar duas vezes... — ameaça Meire. — E quero esse guapeca lá fora. É de pequeno que se torce o pepino.
Tita olha para o padrasto que dá de ombros e mesmo magoada coloca Cricri para dormir numa caixinha de papelão forrada com cobertor velho na despensa.
Cricri começa a chorar como faz todas as noites.
— Deixe que chore! — grita Meire.
Tita não está conseguindo dormir, então ouve música no walkman até que o sono chegue ou a pilha do equipamento acabe. Numa de suas fitas está gravada a música Paciência do cantor Lenine, uma das suas preferidas. Ela não chora apenas porque seu cachorrinho não pode dormir ao seu lado na cama e sim porque os festejos de fim de ano preenchem seu coração com tristeza, é quando aflora a solidão por não saber se Félix, seu pai, a ama, por não ter amigos que se preocupem com ela, porque tudo parece sempre igual e essa é a razão que a faz acreditar que ser gente grande é melhor do que ser criança.
— Cala essa boca, cachorro nojento! — berra Meire.
— Ele é só um cachorro... — diz Horácio num tom mais conciliador.
— Você e suas ideias de jerico de trazer cachorro pra casa sabendo que eu não gosto de animal, quanto mais dentro de casa...
— Meire, pare, por favor! — implora Horácio.
Meire arromba a porta do quarto de Tita, coloca o cachorro ali e a menina, que estava imersa em pensamentos mil, se assusta.
— Pra se assustar assim é porque não está em paz com Deus!
Qualquer pessoa que estivesse com o fone de ouvido no escuro e fosse arrebatada por um estrondo no mínimo teria um infarto de tanto susto, porém Meire é insensível e acredita que tudo deve operar do seu jeito.
— Ainda não foi dormir? — pergunta Meire, raivosa, em vez de tentar saber se a menina não estava chateada ou querendo um pouco de carinho ou as duas hipóteses.
— Não estou com sono! — responde a menina.
— Mas eu te mandei dormir!
— Só que eu não estou com sono, manhê.
— Trate de dormir mesmo assim! — decreta a troglodita.
— Eu me deitei, mas estou sem sono. Ou agora é proibido ter insônia também?
— Menina mal educada!
— Sabia que pessoas educadas BATEM na porta do quarto antes de entrar? Eu quase morri de susto.
— Decerto porque estava fazendo o que não presta. Quem não deve não teme.
— Agora sim é que eu não vou conseguir dormir mesmo. Puxa vida, custava bater na porta antes? Eu não arrombo a porta do seu quarto nem se estiver morrendo, custaria fazer o mesmo por mim?
— Acontece, queridinha, que o que pirralha fala não me interessa, então eu abro a porta do jeito que eu quiser, quando eu quiser, porque eu sou a dona dessa porcaria de casa e faço o que eu quiser. Você não tem que dar pitaco em nada, tem que calar a boca e obedecer, só obedecer porque criança não tem querer. — debocha Meire que na maioria do tempo parece odiar a própria filha pela maneira como a trata. — O dia em que você tiver sua casa, aí você que faça o que quiser que não estarei nem aí... Por enquanto eu faço o que eu quiser e você tem que aceitar, tanto é que se me der na telha eu sumo com esse cachorro, então recado dado: se ele aprontar alguma coisa, VOCÊ vai ter que me ressarcir.
— Boa noite? — alfineta Tita, esperando algum indício de humanidade em Meire.
— Desculpa, não sou mamãezinha de novela. — debocha Meire que fecha a porta do quarto da filha com tanta força que poderia se supor que uma forte rajada de vento por ali passou.
— Depois eu é que sou mal educada... — resmunga a garota chorosa e magoada.
Meire grita do corredor:
— Já está tarde pra você brincar com esse maldito cachorro! Vá dormir! Vá dormir ou eu te surro tanto que você vai passar o verão inteiro com as marcas da vara nas costas!
— Tenha mais paciência com a menina, Meire. — adverte Horácio.
— Não vejo a hora que essa desgraça cresça e saia de casa. — pragueja Meire.
Tita se acocora e coloca Cricri no colo, o beija no alto da cabeça e ele retribui com muitas lambidas amorosas. Ela, que quando quer chorar profundamente, afunda o rosto no travesseiro para que Meire não escute, faz isso e volta a ouvir música pensando consigo mesma: minha vida vai ser sempre assim?
☼
Tita adormeceu chorando e acordou horas mais tarde com as patinhas de Cricri arranhando o cobertor. Ela, ainda sonolenta, esfrega os olhos e se senta na cama, abre devagarinho à janela de venezianas porque se Meire ouvir um rangido, é capaz de surtar. O céu ainda está escuro.
— Cricri! — sussurra ela. — O que foi? Ainda é tão cedo...
Cricri choraminga.
— Tá com fome, não tá?
Tita, mesmo com vontade de se deitar de novo para dormir até tarde, calça um chinelo de pano e com o cachorrinho no colo vai até a despensa para colocar ração na vasilha do amigo, lhe oferecer água fresca e verificar se ele fez as necessidades nas folhas de jornal dispostas pelo aposento.
Quando Tita vê que há um buraco no gramado do quintal, sente a espinha arrepiar. Se Meire souber disso, poderá sumir com Cricri.
— Cricri, o que é aquilo?
É lógico que o cachorro não a responde, mas também não a ignora.
— Você não ouviu o que a mamãe disse? Ela falou que se você aprontar alguma coisa vai embora. Você quer ir embora? Você quer me deixar sozinha?
Tita se agacha para fitar Cricri:
— Você me ama, não me ama?
Cricri lambe a mão direita de Tita.
— Cricri, você precisa ser um bom menino, senão a mamãe vai tirar você de mim. Promete pra mim que você sempre vai ser um bom menino? Promete? Promete? Promete pra mim?
Tita descalça os chinelos de pano e nas pontas dos pés corre até o gramado onde há um buraco. Faz muito tempo que a garota perdeu o gosto por brincar de caçar tesouros, no entanto parece que Cricri ainda está nessa fase. Apesar de não ser um baú cheio de joias de ouro, moedas raras e pedras preciosas é uma caixa branca retangular que os terráqueos que vivem nos tempos atuais adorariam receber de presente: um smartphone que só falta ter aplicativo para teletransporte e telepatia.
Tita já viu celulares em novelas, aqueles que parecem até tijolos de tão grandes, mas não imagina que o que tem em mãos veio do futuro.
— Nossa, Cricri! — exclama Tita. — Você acha cada coisa! Que troço estranho!
Quando Tita escuta o piso ranger com os passos pesados de Meire, corre para a despensa com Cricri e leva consigo o “troço estranho”.
Assim que ouve o barulho da descarga e se certifica de que a mãe voltou a dormir, Tita vai para o quarto com Cricri e não deixa de se impressionar com a caixa retangular, abrindo-a e descobrindo um objeto que possui uma tela espelhada. Os fones de ouvido que nem sequer precisam de fio são brancos e estão dentro de um plástico, assim como o carregador e a bateria reserva.
Tita descobre o manual de instruções e curiosa por natureza o lê para saber como manejar aquele equipamento estranho.
— Hum, esse botão aqui serve pra ligar, que bacana!
PÁ!
O aparelho se liga e Tita arregala os olhos quando o sistema operacional lhe mostra um ano que lhe parece bem distante: 2018.
Em 2018, Tita terá 30 anos de idade.
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