Notas iniciais:
Conto criado para o desafio Mapa-múndi.
O país escolhido foi a Islândia.
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Vivemos no frio, mas, dentro de nossos corações, temos medo de morrermos queimados. Um conflito entre dois extremos, gelo e fogo, que nos revela o mais lindo cenário que a natureza pode ostentar.
A vista do oceano sobre o penhasco de formas distintas e únicas privilegia a sensação da brisa salgada em meu rosto, os vales com musgos coloridos e as montanhas adormecidas cobertas de gelo jorram em seu solo água, que alimenta os vales e desaguam no mar.
A tela residia mais uma pintura finalizada, que ia direto para o acervo no intuito de ser vendida posteriormente. Voltar para casa sempre fora uma tarefa difícil, que, com os anos, tornou-se uma simples caminhada. Acostumei com a vegetação e o relevo que adornava a vida que escolhi.
Anos atrás a inspiração me faltava, os altos prédios consumiram e usufruíram de tudo que possuía. Não conseguia pintar uma única tela. Desespero e ansiedade consumiram a disposição que tinha para fazer aquilo que mais amava. Por vez, decidido, peguei somente o essencial e fugi dessa realidade, com somente uma passagem de ida, reuni forças para uma nova aventura em um lugar totalmente desconhecido.
Acometido pela euforia de um novo começo, saí sem avisar ninguém. Familiares, amigos e, principalmente, a mídia entrara em colapso. Todos me procuravam. Não queria que fosse assim, mas já não estava aguentando as bajulações e os sorrisos falsos que eram lançados em minha direção.
Acostumar com o clima frio foi uma tarefa fácil, já que minha alma e coração estavam congelados fazia muito tempo. Mantive-me isolado por uns meses, em uma simples casa de turfa ao lado de um bosque — que, por várias razões, eram raros naquele ambiente —, somente ia a uma pequena cidade próxima para comprar mantimentos, e as mais variadas tintas e telas. Pela primeira vez, contemplei cores em que nunca tinha visto em lugar nenhum. A exuberância das cores da primavera expostas ao sol da meia-noite, no inverno a Aurora Boreal contornava as noites congeladas, tornando-as mais mágicas. Ao som de Beethoven, Mozart, Bach, e tantos outros, as telas começaram a ganhar vida. A felicidade voltava a correr em minhas veias. A sede de conhecimento levou-me a começar a participar da cultura local. Elfos, duendes, gnomos, trolls, e muitos outros seres sobrenaturais, fazem parte do folclore, mitologia e passado das pessoas, sendo transmitidos geração após geração.
Quando comecei a frequentar a cidade por mais vezes, percebi em meu íntimo como os habitantes eram unidos, e, em seus olhares, a simplicidade. Em certo dia nublado, quando as nuvens tocavam o chão, o hospital local estava divulgando que precisavam de voluntários para ministrar aulas diversas, na intenção de trazer divertimento e conhecimento para seus internados. Súbito interesse percorreu-me, enxerguei uma nova oportunidade de estar me distraindo das mazelas da vida e dar oportunidade para outras pessoas conhecerem a beleza das Artes.
Logo me voluntariei, daria as aulas toda segunda e quarta na parte da manhã. Nas primeiras aulas, contei sobre o princípio das Artes, desde a pré-histórica à contemporânea, seus olhos brilhavam quando citava os nomes de Van Gogh, Michelangelo e Leonardo da Vinci. Aulas depois estávamos partindo para a prática, ajeitávamos como era possível, no final belos quadros com tantos sentimentos, amarguras e desejos, a história de cada um expressa em uma tela. Tanto que uma chamava a atenção, as cores frias e mortas em um desenho abstrato, o artista dessa tela era uma garotinha que se chamava Sunna, órfã e com uma doença em estágio terminal, quando algumas enfermeiras a questionou sobre as tonalidades, ela simplesmente disse "O futuro é sombrio e pálido", dias depois houve a nota de seu falecimento.
Os dias se tornaram mais frios com a entrada do inverno, raras eram as vezes em que ia dar as aulas por causa da instabilidade do clima. A morte da pequena Sunna foi um pequeno gatilho para uma fase de crise existencial. O fogo pode derreter o gelo, mas o gelo derretido pode apagar o fogo.
Em momentos de fraquezas, corria diretamente para os braços daquele que mais me entendia e aquele que sempre esteve comigo. E dessa vez não foi diferente, liguei diretamente para ele, necessitado de seus conselhos e palavras de confiança. Com essa simples ligação, ele descobriu onde me escondia.
"Nunca imaginei que te encontraria em um lugar desses," ele me disse no nosso primeiro contato físico neste país. Entre idas e vindas, éramos duas pessoas que dependiam entre si.
Ainda não tinha percebido a falta que ele me fazia. Depois que passou a morar comigo nesse lugar onde o gelo e fogo se encontram no mesmo ambiente, ganhei mais um sentido para estar vivendo. Ele me completa.
"Quer ver algo incrível e mágico?" perguntei-o em um dia frio ao anoitecer.
Com aquele lindo sorriso e olhos entrefechados, ele sibilou "Sim".
Partimos em direção ao penhasco que ficava próximo à casa em que estava morando, muito bem agasalhados e com um lençol. Ao chegar ao topo, estendi o lençol sobre os musgos de coloração alaranjada e o indiquei para se sentar ou meu lado sobre o pano, com a brisa da maré em nossas faces.
"Você me trouxe para ver as estrelas?"
"Sim, e ao mesmo tempo não! A mágica ainda vai acontecer."
Com os minutos mais próximo do ápice da noite, a coloração esverdeada começava a colorir o céu em alguns aspectos, o rosa surgia como uma complementação do verde em contraste com o azul-cobalto que a noite possuía. Em sua face uma incógnita pairava no ar.
"A Aurora Boreal se resulta do impacto dos ventos solares com o campo magnético do planeta, e se transforma nessa linda tonalidade."
"Isso é incrível."
"Sabe, o mais legal é a mitologia local. Moradores desta ilha falam que no início do mundo havia somente o mundo das névoas Niflheim, e o mundo do fogo Musphelhein, e entre eles tinha um grande vazio em que nada vivia. Havia somente o fogo e a névoa, que se encontravam formando um enorme bloco de gelo, chamado de Ginungagap. Como o fogo de Musphelhein era muito forte e eterno, o gelo foi derretendo até surgir a forma de um gigante primordial, Ymir, que dormiu durante muitas eras. O seu suor deu origem aos primeiros gigantes. E do gelo também surgiu uma vaca gigante, Audumbla, cujo leite jorrava de suas tetas primordiais em forma de quatro grandes rios que alimentavam, Ymir. A vaca lambeu o gelo e libertou o primeiro deus, Buro, que foi pai de Borr, que, por sua vez, foi pai do primeiro Æsir, Odin, e seus irmãos, Vili e Ve. Então, os filhos de Borr, Odin, Vili e Ve, destroçaram o corpo de Ymir e, a partir deste, criaram o mundo."
Colocando minha cabeça em seu peito, continuei: "Foi a partir daí que compreendi a garotinha Sunna, quando ela disse que o futuro é sombrio e pálido, ela estava se referindo ao futuro que o poema Völuspá transmite, e que também é a finalização do conto da criação do mundo. No final, as forças do caos serão superiores em números, e em força, aos dos guardiões divinos e humanos da ordem. Haverá uma batalha final, entre ordem e caos, intitulada como Ragnarök, onde os deuses perderão, como é seu destino. Apesar de tudo, sobreviverão alguns humanos e divinos, que recomeçarão um novo ciclo em um mundo novo."
O silêncio se fez presente. Nenhum de nós dois queríamos continuar com esse assunto que me feria profundamente. Mas o fato de colocar o que estava reprimido em meu ser para fora, foi como se estivesse tirado uma enorme tensão de meus ombros.
"Ela só comentou aquilo que ela sabia, o futuro dela, desde o início não era incerto? Sombrio e cheio de incertezas? Com toda a certeza ela sabia o que estava por vir," disse ele.
"Mas ela era só uma garotinha, como ela tinha essa visão? Ela poderia ter tido um futuro brilhante!" exclamei saindo do aconchego de seu peito.
"Um futuro no qual ela não teve e não tinha como ter, já que ela morreu!" Neste ponto lágrimas já saíam de seus olhos. "Agora ela poderá trilhar um novo caminho dentre as estrelas, um que não haja dor ou sofrimento, um caminho onde ela poderá ser feliz de verdade."
"Realmente, esse mundo é sombrio."
Nesse dia a nossa conversa acabou com aquela afirmação minha, mas não porque queríamos, mas pelo fato de que era necessário.
Dias, messes e anos se passaram, e ele continuou comigo, conviveu e aturou as minhas crises, dilemas e chatices. Evoluímos em nosso relacionamento, passamos de meros amigos para amantes e, consequentemente, a namorados.
Desço esse penhasco frequentemente, venho aqui quando quero meditar, gritar as minhas revoltas ou simplesmente pintar o por do sol.
Achei este local quando estava procurando um lugar para recomeçar. Quando tudo parecia incerto, ele chegou e agarrou a minha mão e guiou-me dentre o mar de tubarões. Ele descongelou o mar e apagou as chamas da terra. E me fez acreditar que tudo era possível.
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