jagutheil Julio Gutheil

Continuação de Cinzas no Paraíso. Novos rostos, novas jornadas e revelações. Uma guerra é travada enquanto uma adaga poderosa traz de volta a vida um ser ancestral, e perigoso.


Фентези средневековый 18+.

#continuação #magia #fantasia
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Prólogo

Um sopro de outono.

Foi o que Dohâj pensou ao sentir a brisa suave daquele entardecer de final de verão balançar o seu cabelo recém-lavado. O vento que leva o verão para longe e promete gelo, era o que o seu povo dizia sobre aquilo. Uma sensação boa e bem vinda de frescor após uma sequencia longa de dias quentes demais. Mas mesmo assim a sensação vinha com uma nota de medo, lembrando que não tardaria muito para o vento congelante começar a soprar furiosamente do alto da montanha.

Ela já havia cumprido suas rondas do dia e estaria livre na noite que se aproximava, mas mesmo assim gostava de ficar no alto da torre de vigia olhando para a imensidão da estepe que se espraiava aos pés da cordilheira, para o leste e o norte. Logo abaixo, na comprida muralha da fortaleza, os guardas do turno da noite caminhavam compassadamente de um lado para o outro, sempre com o olhar atento voltado para aquele enorme e silencioso vazio. Mas Dohâj sabia muito bem que de vazio ou silencioso as estepes não tinham nada.

Um sutil fio de fumaça serpenteava aos céus pintados de rosa, muito longe, à leste, e ver aquela imagem fazia com que a jovem sentinela quase pudesse ouvir o retumbar dos tambores de guerra e de morte. Enormes rodas feitas de varas flexíveis que eram tiradas das mirradas árvore que cresciam naquela terra gelada e estéril, e depois cobertas com tiras das peles ressecadas de uma dúzia dos animais que vagueavam nas estepes, esticadas ao máximo que suportariam e então recebiam uma camada de gordura e resina para não cederam a chuva e a umidade. O ribombar daquelas coisas monstruosas era ensurdecedor, ainda mais quando uma dúzia deles era tocada ao mesmo tempo, mas mesmo assim era uma melodia triste e melancólica, quase introspectiva. Dohâj nunca entendeu como essa sensação era possível, e acreditava que jamais seria capaz de entender.

Os tambores eram um chamado para guerra ou a música de despedida de um ente querido em um funeral. Como não havia qualquer sinal de guerra entre as tribos e os mortos eram queimados em piras nos funerais, obviamente aquele fio de fumaça significava que alguém havia morrido e os velhos rituais eram efetuados. Talvez seja o meu pai, ou um tio, um amigo de infância. Dohâj não teria como saber, provavelmente nem fosse a sua tribo perdida que se despedia de alguém. Mas o sentimento era o mesmo de qualquer maneira.

Uma tristeza suave tomou conta dela. Respirou profundamente e se deu conta que a noite já caíra quase por completo, estava na hora de jantar com seus companheiros e em seguida se retirar ao seu pequeno dormitório.

A escada que dava acesso à torre levava quase uma vintena de voltas até chegar ao seu topo ou a sua base, e naquela hora de crepúsculo estava quase mergulhada em completa escuridão. Dohâj precisava prestar atenção a cada passo que dava naqueles degraus desgastados pelos anos, mesmo que já houvesse feito aquele mesmo caminho mais vezes do que seria capaz de contar. Ali sim havia silêncio, e um ar fresco agradável, que parecia imóvel e imutável, como se desconexo da realidade do mundo lá fora.

Os corredores da antiga fortaleza formavam um labirinto que se espalhava por suas entranhas de pedras ancestrais, que há séculos vigiavam a fronteira mais a norte de Swandia. Os novatos seguidamente se perdiam ali dentro durante as idas e vindas de trocas de turnos, mas Dohâj já estava ali há tempo o suficiente para conhecer cada polegada daquelas passagens. Às vezes se pegava pensando que não parecia ser verdade que cinco anos antes ela vivia na imensidão da estepe, passando mais tempo entre raposas e lobos do que entre outras pessoas.

O cheiro do jantar a alcançou antes mesmo de entrar na sala de refeições, um grande cômodo retangular de paredes nuas, e sua boca já estava salivando. Daiko Sem-Nariz era o cozinheiro da fortaleza há sessenta anos e ainda conseguia exercer o seu ofício de uma forma impressionante, preparando refeições que eram boas demais para uma guarnição que recebia suprimentos geralmente bastante ruins. Diziam que ele era um feiticeiro, como os que viviam pelo reino e eram figuras importantes, o que ele nunca negou, mas também nunca confirmou. Outros diziam que ele trocara seu nariz por essa habilidade, mas na verdade o perdera para uma flecha que acertara seu rosto de raspão muitos anos antes. Ele estava no outro extremo daquela sala, mexendo seu caldeirão, rindo e contando suas histórias para um aprendiz.

Dohâj acomodou-se em uma das mesas compridas, de madeira velha e gordurosa e cheia de talhos, entre dois companheiros que haviam ingressado na guarnição na mesma época que ela. Arahum era baixo e corpulento, um jovem de apenas dezoito anos que esperava poder voltar a sua terra natal algum dia, o outro era Pergo, um sujeito com a aparência mais banal do mundo, mediano, de cabelos e olhos castanhos, de rosto comum, sem nenhum traço relevante além de uma barba rala cobrindo suas bochechas e queixo, parecia sempre cansado e distante. Ele era mais velho, talvez tivesse quase quarenta anos, e costumava dizer que não tinha outras expectativas além de terminar seus dias servindo ao rei ali.

"Vocês estão mais quietos que o normal hoje" Comentou Dohâj, servindo-se do guisado de lebre de uma panela fumegante que acabara de ser posta na mesa "Alguma coisa aconteceu?"

"Não sei de nada ao certo" Respondeu Pergo, com sua voz calma, partindo um pão em três partes e entregando aos companheiros "Mas reparei em uma movimentação estranha perto da entrada do escritório da comandante Mahato. Isso me deixou intrigado."

"Estranha como?"

"Primeiro eu vi um mensageiro que nunca tinha visto antes passando em disparada na direção do escritório do comando, pouco depois alguns capitães estavam indo para lá também. Mais tarde o mesmo mensageiro saiu em disparada de novo, agora na outra direção e com uma expressão tensa no rosto. Não sei do que se tratava, mas algo me dizia que não era bom."

"Será que algum vilarejo próximo foi atacado?" Questionou Arahum.

" Acho difícil" Disse Dohâj, servindo-se de mais daquele ensopado saboroso. "Nós saberíamos se alguma tribo tivesse ido à direção dos vilarejos mais ao sul, a única forma de chegar lá é passando bem na nossa frente"

"Eles poderiam ter se esgueirado pela montanha." A sugestão de Pergo tirou um gesto de concordância de Arahum "Existem caminhos e trilhas que não podemos ver daqui."

"Eu sei disso, mas me parece trabalhoso demais para algum chefe arriscar seus homens em uma investida que traria pouco retorno. As vilas estão empobrecidas depois do último inverno."

"Nem me lembre desse maldito inverno" falou Arahum, empurrando seu prato vazio para o centro da mesa "Meus ossos ainda doem por causa daquele frio."

"Espere chegar à minha idade, aí sim você saberá o que é dor nos ossos."

"Você nem é tão velho assim Pergo!" Protestou o jovem corpulento, que na maioria das vezes não entendia as palavras irônicas do amigo. "E se é tão velho assim já deve ter visto invernos piores"

"Eu nasci e cresci no norte desse reino, sempre com a cordilheira fazendo sombra por onde quer que eu ande, vi invernos severos, vi amigos e parentes morrendo pelo frio e pela fome, mas como esse último?" Agora ele não era nada irônico, sua voz continuava suave, mas com um toque de preocupação que se fazia notar. "Não, nunca vi nada como aquilo. A estepe até parece mais vazia."

"Algum tempo atrás ouvi de um andarilho que os portos das Ilhas da Neblina congelaram" Dohâj ouvira aquilo no começo da primavera, quando ainda havia gelo derretendo nos paredões de pedra das montanhas e no solo da estepe, mas mesmo assim era difícil de acreditar. "Vocês acham que é verdade?"

"É verdade sim" Respondeu uma voz que surgiu de repente por trás de Dohâj, que se virou e viu que era Lasheda, uma mulher alta e magra de cabelos grisalhos e pele curtida pelo sol de muitos verões e pelo vento de outros tantos invernos. Era uma das oficias mais antigas daquela guarnição, o braço direito da comandante Mahato, e apesar da idade ainda era uma espadachim melhor que qualquer um ali. Ela sentou-se ao lado de Dohâj, com uma caneca de cerveja na mão. "No fim do último verão, quando o rei mandou os Intendentes das províncias juntarem tropas para prevenir um ataque ao reino, a comandante me enviou com mais alguns soldados da nossa guarnição para o sul. Estávamos na costa de Ikker auxiliando uma tropa de lá quando o inverno caiu com toda a força, e eu vi com os meus próprios olhos alguns portos congelarem ali, e como as Ilhas ficam mais a norte, com certeza foi ainda pior."

"Isso não pode ser natural" disse Arahum, subitamente com uma expressão fechada no rosto, segurando com firmeza uma caneca de lata nas mãos. "Não pode"

"O mundo anda estranho, e isso que eu já vi muitas coisas estranhas nessa minha longa vida," Lasheda esvaziou sua caneca em um longo gole, estalou os lábios e suspirou pesadamente. "Mas agora preciso concordar com Arahum, isso não é natural, e algo está errado."

"E isso tem a ver com todo o movimento nos escritórios da comandante hoje?" Perguntou Dohâj, com algum receio de ter ido longe demais, mas com a curiosidade falando mais alto. Ou talvez fosse medo.

"Mensagens do lorde Gunth chegaram, e eu pude perceber que algumas delas tinham o selo real. Já o conteúdo dessas mensagens a comandante não discutiu comigo, por enquanto pelo menos"

"E o que o rei iria querer com este buraco esquecido pelo mundo?" Arahum parecia amargurado agora.

"Bom..." Ponderou Pergo, calmo e sereno como sempre. "Depois do que aconteceu nos reinos do leste não seria de se estranhar que o rei decidisse prestar mais atenção às fronteiras aqui do norte. Nunca se sabe.

"Realmente" Concordou Lasheda. "Ainda mais que as tribos têm perambulado por perto ultimamente. Ouvi de outras guarnições mais a norte que chegou a haver alguma luta."

"Mais cedo vi fumaça subindo ao longe" Dohâj sentia seus braços coçarem ao falar aquelas palavras. "Imaginei que fossem de um funeral. Pode ser um sinal de guerra então?"

"Guerra?" A soldado mais experiente pesou aquela palavra por algum tempo. "Não acho que chegaria a tanto. As tribos sofreram com o inverno tanto quanto nós, muito mais até, e os números deles devem ter caído muito. Acho improvável que aconteça algo mais que poucas incursões furtivas para roubar gado ou algum cereal."

"Um pensamento em particular tem passado pela minha cabeça ultimamente." Pergo havia se inclinado para frente e falava em voz baixa, com um tom quase segredoso "Magia."

"Como assim?" Perguntou Dohâj, confusa e estranhando o comportamento do amigo."

"E não da magia comum dos bruxos do reino." Continuou Pergo "Mas sim algum tipo diferente, mais obscuro e antigo. Essa é a única explicação que faz sentido para mim. Ou vocês realmente acham coincidência um inverno como nunca se viu antes acontecer logo depois dos massacres que aconteceram nos reinos vizinhos?"

"Quer saber de uma coisa?" Arahum também se curvou para frente "Eu concordo com você, Pergo. Eu nunca gostei de magia, nunca mesmo, por mais que existam bruxos aos montes por aí eu nunca vou aceitar isso como algo normal."

"Eu não usaria as palavras que você usou, mas acho que o seu ponto tem alguma razão." Pergo estava de volta ao seu ser de sempre, coçando casualmente a barba rala.

Bom, então eu nunca poderei contar a verdade a eles. Mais de uma vez Dohâj teve as palavras prontas em sua boca, prestes a contar que em suas veias corria sangue bruxo, que ela uma criatura da magia. Mas sempre se continha, engolia aquelas palavras, decidia deixar para outra hora, quando eles estivessem prontos, ou talvez quando ela própria estivesse pronta. Mas esse dia nunca chegava, mesmo depois de cinco anos, e aparentemente nunca chegaria. Jamais seria aceita ali se falasse a verdade. E isso a machucava, porque era como perder uma segunda família, sentir outra vez uma dor horrível que apertava o seu coração.

Ela fora banida de sua tribo quando completara dezesseis anos e a magia que morava dentro de si despertou. Na tradição das tribos das estepes aquilo era uma maldição, uma aberração, uma impureza que deveria ser expurgada antes que envenenasse todo o resto.

Aconteceu em um dia de primavera. A estepe estava tão verde quanto seria possível, até mesmo com pequenas flores coloridas pontilhando a paisagem ao longe, uma brisa suave soprava do norte e um sol ameno brilhava palidamente no céu cheio de nuvens que dançavam de um lado para o outro. Era uma imagem muito viva em sua mente, com todas as cores, como se olhasse para uma das pinturas penduradas nas paredes da humilde biblioteca da fortaleza. Ela estivera tirando a pele de um cervo, o maior que qualquer outro da tribo pudesse se lembrar de já ter sido caçado ou mesmo visto, quando uma briga entre dois homens embriagados começou. Um deles empunhou um machado e atirou na direção do outro, mas errou, e o machado então voou impiedosamente na direção do irmão menor de Dohâj, que brincava ali por perto.

Tomada por um pânico incontrolável ela fez um gesto com o braço, sem pensar no que fazia, e nisso uma força poderosa surge do nada e paralisa o machado em pleno ar. Sua magia havia nascido ali, naquele momento, diante de toda a tribo que a observava em um silêncio aterrorizado. Muitas foram as vezes que ela acordara no meio da noite com a sensação de que o silêncio do dormitório daquela guarnição era o mesmo daquele dia de uma primavera distante.

Foi banida naquele mesmo dia, ao anoitecer, sendo obrigada a partir apenas com a roupa que trazia no corpo. Sua mãe chorava em desespero e seu pai não conseguia olhá-la nos olhos.

Vagou sem rumo por dias pela imensidão da planície, até que em um anoitecer foi encontrada por uma patrulha da guarnição. Estava com frio e fome, com os braços e pernas cheios de cortes por causa de quedas enquanto tentava caçar algum animal, rosto sujo e o cabelo cheio de nós. Lasheda estava naquela patrulha, ela sabia a língua das tribos e ouviu a história de Dohâj. Somente ela e a comandante Mahato sabiam de tudo. Isso fora há cinco anos, ela entrara para a tropa da guarnição, aprendera a língua swandi e a lutar, mas as lembranças ainda doíam.

Lasheda agora olhava para ela com um discreto olhar de viés, que Arahum era avoado demais parareparar e que Pergo era esperto o suficiente para ignorar. A mulher mais velha tinha um sorriso triste nos lábios, sabendo como Dohâj se sentia, afinal a jovem desabafara com ela uma centena de vezes aos longos daqueles cinco anos. Já era difícil o suficiente ser da origem que era no meio de todos aqueles swandis desconfiados, não precisava do fardo extra de saberem que também era bruxa, ainda mais naquele pedaço de reino onde isso não era tão bem visto como em outros lugares.

Sentiu o peso do dia de rondas cair de uma vez só em seus ombros, estava cansada e triste demais para continuar ali, então decidiu que era hora de ir para a cama.

Despediu-se dos companheiros em poucas e frias palavras e partiu rumo ao seu dormitório, que ficava logo acima da biblioteca e sala de estudos onde três vezes a cada quinzena um irmão escriba dava aulas de leitura e escrita aos soldados que quisessem aprender. Fora ali que aprendera swandi, de forma incrivelmente rápida e fácil segundo o que dizia o irmão Leot. Gostava de poder passar por ali todos os dias e trocar algumas com o irmão quando ele estivesse na fortaleza. E para a sua alegria, ele estava ali, saindo da sala de estudos e trancando-a.

"Dohâj! Ora, que prazer revê-la minha criança!" Disse o escriba de cabelos brancos e costas cansadas enquanto abraçava sua antiga aluna.

"Digo o mesmo meu bom amigo. Não sabia que o senhor estaria aqui hoje, minhas rondas me levaram ao outro extremo da fortaleza"

"Fui pego um pouco desprevenido também." Respondeu Leot, que era um palmo mais baixo que Dohâj, mas mesmo assim sua postura e ar de sabedoria o faziam parecer um gigante "Mandaram me buscar no nosso humilde monastério logo após o almoço. Havia comido demais e a viagem surpresa foi um tanto desagradável por isso."

"Para dar alguma lição?"

"Não é o caso. A comandante Mahato pediu que eu traduzisse algumas cartas que ela escreveu para a língua dos povos das Cidades-Porto." Ele bateu com a mão em uma sacola de couro que trazia junto à barriga "O assunto delas é sigiloso, então não posso comentar isso com você, perdoe-me criança."

"Não tem problema irmão Leot." E agora essa, pensou a soldado, não tendo ideia do que uma comandante de guarnição isolada no norte de Swandia teria a tratar com alguém tão longe ao sul. "Esse dia foi estranho..."

"Estranheza é o traço definidor deste nosso mundo, criança, eu acharei que há algo de errado quando não houver nada mais a ser estranhado. Mas enfim, já é hora de me retirar, foi uma tarde cansativa demais para um velhaco como eu."

"Passará a noite conosco?"

"Sim, a comandante foi gentil em me oferecer o pernoite. Amanhã na primeira luz do dia partirei de volta ao monastério. Mas antes creio ter de passar na cozinha, minha barriga ronca como um furão. Diga-me, nosso querido Daiko preparou aquele ensopado de lebre lendário que só ele é capaz de fazer?"

"Sim, e como sempre está de lamber o prato ao terminar." Dohâj sentiu seu coração se aquecer quando o velho escriba abriu um largo sorriso com sua resposta.

"Eu sabia! Daiko pode não ter nariz, mas eu tenho e o meu reconheceria esse cheiro maravilhoso em qualquer lugar do mundo. Boa noite minha criança, durma bem e tenha um dia excelente amanhã."

"O senhor também, irmão. Boa viagem amanhã."

Eles se abraçaram mais uma vez e o irmão escriba rumou com seu passo sereno em direção a comida, com o queixo erguido como se levado pelo cheiro de ensopado de lebre. Dohâj sorriu e sentiu-se mais leve, Leot tinha esse poder sobre ela. Lasheda tinha sido de sua confidente e o irmão escriba havia sido como um pai para ela, atencioso e carinhoso, que mesmo não sabendo sua história inteira de alguma forma entendia que era aquilo que ela precisava.

Subiu ao dormitório que estava escuro e silencioso. Pendurou o cinto de espada em um gancho, tirou as botas, as calças e o colete. Sentou-e na borda da cama e ficou ali em silêncio por algum tempo, observando algum ponto qualquer em uma das paredes. Ainda parecia errado dormir em uma cama e não apenas em cima de peles colocadas em um chão duro. Estava certa de que jamais se acostumaria de verdade.

Deitou-se e o sono logo a alcançou.

Como na maioria das noites, acabou vagueando por sonhos.

Ela não estranhou quando se viu na imensidão vazia da estepe, pois era o que sempre acontecia quando passava tempo demais pensando em seu passado. Estava nas margens do imenso lago ficava no coração da sua terra perdida, estendendo-se por várias milhas em todas as direções. O povo de Dohâj chamava aquele lugar de Tuo'kil'hâv-ës. O Lago da Morte, o lugar para onde Tondullo, o senhor dos ventos, soprava a fumaça das piras funerárias que carregava os espíritos dos mortos; era a passagem para o outro mundo, o reino das campina sempre verdes, do verão eterno, onde sempre há caça abundante, os riachos de água fresca, onde você reencontra seus antepassados desde o começo dos tempos e senta aos pés da Primeira Mãe e ouve suas histórias sobre o passado e o futuro. A água sagrada que sussurrava promessas em suas ondas gentis.

A jovem estava descalça, com as calças dobradas quase nos joelhos, sentindo o frescor que subia e descia de seus pés em gestos suaves, quase carinhosos. O vento soprava com alguma força, remexendo seus cabelos acobreados e enchendo seus ouvidos com um silvado constante. Ela olhou para baixo e viu seu rosto distorcido pela superfície do lago, sua pele quase amarelada e olhos de um castanho lavado, sempre distantes, sempre inseguros.

De repente uma onda mais alta se encontra com as pernas de Dohâj e ela ouve um som vindo de dentro da água, alguns metros dentro lago. Ela ergue o olhar e vê que alguma coisa se erguendo.

A primeira coisa que surge é um par de chifres, longos e perfeitamente arqueados, de um tom de cinza pálido que parecia absorver os raios do sol. Não demorou muito e Dohâj entendeu que aquilo era uma máscara feita da carcaça de um touro selvagem das montanhas, com pedras de âmbar colocadas nas cavidades dos olhos. E quando o corpo emergiu por completo do lago, vestindo roupas pesadas de peles adornadas com penas de abutres e águias, a jovem compreendeu.

Kaeveryz. Dohâj apenas pensou o nome, um nome tão antigo quando todo o mundo, e mesmo sem mover os lábios, a palavra poderosa encheu aquela imensidão, carregada pelo vento e deslizando nas águas calmas do lago. E Kaeveryz ouviu.

Por que veio até mim, criança perdida? O guardião do lago flutuava um palmo acima das pequenas ondas, gotas pingavam de seus pés descalços e os braços compridos balançavam para frente e para trás, indolentes. Sua voz era rouca, abafada pela máscara de osso.

Eu... eu não sei... isso é um sonho. Fui dormir e agora estou aqui, como estive tantas outras vezes. Isso é um sonho, não é?

Nunca sonhei, não saberia dizer.

Dohâj estremeceu. Por um instante pensou que havia morrido em seu sono e agora sua alma vagava rumo ao outro mundo. A ideia de partir sem poder dizer adeus aos seus pais uma última vez a apavorou, sem abraçar seu irmão, sem ouvir as batidas ensurdecedoras dos tambores. Não poderia ser, não era sua hora ainda.

Kaeveryz ergueu seu braço direito e estendeu a mão, chamando Dohâj para junto de si.

Não. Não. Não. Não pode ser... Ela não ardeu em uma pira, seu espírito não havia se tornado fumaça branca que o sopro poderoso de Tondullo traria até o limite dos mundos.

Ainda não é sua hora, criança, nada tema. Apenas venha.

Dohâj deu um passo, e então outro e mais um. Logo estava com água na altura da cintura, mas ela continuava sempre a frente, um passo de cada vez, com o olhar sempre fixo nos olhos de âmbar daquele ser ancestral.

O fundo do lago era de seixos lisos que escorregavam sob os pés da jovem, que agora com a água na altura de seu peito tremia de frio e de medo. Kaeveryz crescia como um gigante conforme ela se aproximava, agora com ambos os braços estendidos e mãos abertas, seus olhos de pedra brilhavam mais e mais conforme o mundo ao redor era engolido por escuridão.

Parou de se mover quando chegou aos pés do ancestral guardião, a água estava em seu queixo, ameaçando entrar em sua boca e no seu nariz se não tomasse cuidado.

Kaeveryz desceu, mergulhando com suavidade de volta no lago. Desceu até que seus olhos de âmbar estivessem na mesma altura dos de Dohâj. As duas pedras irregulares pareciam ser toda a luz do universo, dois sóis imponentes que prometiam calor, que prometiam vida.

O guardião colocou sua mão larga e calejada na cabeça de Dohâj, e a empurrou para baixo.

Todo o peso de seu corpo sumiu de repente. Ela sentia-se como uma criatura sem corpo, disforme, flutuando gentilmente em um vazio infinito e eterno. Não lhe faltava ar porque ela não precisava respirar, não estava molhada, pois não estava mais na água, não sentia frio, nem calor, nem medo, nem alegria, nem êxtase, nem apatia, apenas nada. Nada.

Deixe arder.

A voz de mulher emergiu do vazio como uma brisa repentina.

Deixei arder, como a senhora mandou. A resposta veio um longo tempo depois, na forma da voz de uma garota jovem, que também chegou tal qual uma brisa repentina. E agora?

Dohâj não entendeu o que a voz de mulher disse em seguida.

Agora se sentia caindo, lentamente, mas sem parar.

Parou de cair e viu-se na base de uma escadaria, de degraus brancos e lisos, que subiam em zigue-zague uma montanha enorme, tão alta que seu topo era escondido por nuvens. Ela subiu o primeiro degraus, depois o segundo e o terceiro, e continuou até que pisou em uma poça de sangue. Olhou em volta, e quando viu o corpo eviscerado de um garoto deitado sob os degraus o ar escapou de seus pulmões e uma onda de pavor tomou todo o seu corpo. Correu pela escadaria até que suas pernas não aguentassem mais.

Dohâj então chegou a algum tipo de construção de pedra, que parecia como um templo que ela vira em um dos livros do irmão Leot anos antes. A escadaria continuava subindo e subindo em direção às nuvens, mas sem saber por que, Dohâj parou ali. Um vento mais gelado que qualquer um que ela já tivesse sentido vindo do alto das montanhas soprou de lugar algum e levou consigo um pedaço da alma dela. Seguiu-se um suave farfalhar de roupa sendo arrastada pelo chão, acompanhado por passos cuidadosos e repetidos e ritmados toc's.

Os sons vinham das costas da jovem, que de soslaio podia ver apenas uma figura vestida completamente de preto e um reflexo brilhante de algo metálico.

NÃÃÃÃÃÃO

O grito ecoou do alto da montanha. Um grito de dor, uma dor tão grande que se espalhava pelo mundo todo, uma dor de perda e desespero. Criaturas aladas voavam e enchia o céu de sombras escuras, cheiro de fumaça deixava o ar espesso e angustiante.

Vá. Não tema, não hesite, apenas vá. O seu mundo não é mais seu, o seu povo não é mais seu povo, o seu passado não existe mais, apenas o seu futuro. Vá, vá e compreenda. A voz veio e se foi em um único sopro, sussurrando as palavras ao ouvido de Dohâj, com gentileza, quase com carinho.

Em um piscar de olhos ela estava de volto no lago, com água na altura dos joelhos e parada diante da figura imponente de Kaeveryz. O âmbar dos olhos do guardião faiscava.

Isso tudo é foi real?

Do futuro, do presente, do passado. A resposta veio após alguma consideração. Tudo já escrito, tudo já acontecido, destinos inexoráveis. Apenas os que carregam a antiga fé dentro do coração podem ver essas coisas, aqueles que creem com cada fibra de seu corpo, que muito mais que conhecer e recitar de cor as antigas lendas e tradições acreditam nelas. Agora vá ver o mundo.

Dohâj acordou com um salto. Amanhecia, e o alojamento aos poucos se iluminava com os primeiros raios de sol que entravam pelas janelas. De todas as vezes que sonhara com as estepes nenhuma fora como aquela. Tinha a boca seca e o coração batia com força. Passou a mão no rosto e sentiu uma mecha de cabelo molhado na testa.

A porta foi aberta em um movimento brusco e rápido. Era Dhugge, um recruta órfão de apenas nove anos que por enquanto era apenas o copeiro da comandante Mahato.

"Oh, Dohâj, ainda bem que você está acordada. A comandante quer que você se apresente a ela em seu escritório."

"Já estou indo, obrigado Dhugge."

O garoto demorou alguns instantes para partir, e Dohâj sabia que ele observara discretamente suas pernas nuas enquanto ela se levantava e colocava de volta as calças. Ela não se incomodava, não era a primeira vez e nem seria a última. Cedo ou tarde Lasheda acabaria dando um par de bofetadas nas orelhas dele para lhe ensinar alguns modos. Mas de qualquer maneira não havia muito para ser visto, desde sempre fora magricela e mirrada jamais seria uma mulher de corpo notável como sua mãe era. Seu pai resmungava seguidamente que daquele jeito jamais arrumaria um bom casamento, mas sua mãe a abraçava e dizia que Dohâj era linda da forma que fosse. A saudade doía demais.

Terminou de se vestir e recolocou o cinto de espada na cintura. Passou mais uma vez a mão na mecha molhada de cabelo e saiu do dormitório com as palavras de Kaeveryz dando voltas incessantes em sua cabeça. Agora vá ver o mundo.

Mas que mundo? Ela se perguntava, com o coração acelerado e as palmas das mãos úmidas de nervosismo enquanto atravessava o pátio de treinos. O mundo lá fora não é para mim. A estepe era o meu mundo, o meu único mundo. Agora só me resta vigiar estas muralhas, todos os dias, pelo resto dos meus dias.

O seu mundo não é mais seu, o seu povo não é mais seu povo, o seu passado não existe mais, apenas o seu futuro. As palavras Kaeveryz eram como um vento constante.

O escritório de Mahato ficava no topo de uma das torres maciças que se erguiam dos cantos da fortaleza, construções austeras e feias, de pedra bruta castigada pelos anos de clima intempestuoso daquela região. A escada que dava acesso ao escritório era toda de madeira, toras de carvalho engenhosamente encaixadas, não tendo nenhum prego nem qualquer tipo de amarra, mas era tão resistente e firme como qualquer outra que fosse feita de pedras ou tijolos. Ela subia em um ângulo muito agudo, quase rente à parede da torre, e toda vez que Dohâj precisava subi-la ficava com uma sensação estranha.

A porta estava entreaberta, mas a jovem achou adequado dar duas batidas curtas e ágeis para anunciar, e em seguida colocou a cabeça para dentro do aposento.

"Bom dia comandante, a senhora deseja falar comigo?"

"Sim, entre e feche a porta, por favor." Respondeu Mahato, em sua voz firme e dura que usava apenas em situações oficiais, o que deixou Dohâj ligeiramente preocupada. Ela fechou a porta como ordenado e sentou-se com as costas eretas na cadeira simples diante da mesa da comandante. Mahato era uma mulher de idade, de rosto estreito cheio de vincos e rugas, olhos eram cinzentos, porém penetrantes, e uma expressão tão dura quanto a sua voz. Tinha os cabelos ainda escuros amarrados em uma trança que caía em suas costas. Vestia-se sobriamente com roupas escuras e um colete de couro sem adornos. "Dohâj, eu a chamei aqui porque foi decidido em uma reunião que se estendeu durante a noite, entre os oficias mais experimentes da guarnição, que uma missão muito importante será delegada a você"

Mahato era assim. Direta, metódica e sem rodeios. Dohâj endureceu sua postura ainda mais, se esforçando para não transparecer nenhuma dúvida ou inquietação.

"O que a senhora ordenar, comandante."

"Você irá com o irmão Leot para o sul, o escoltará até às Cidades-Porto. Ele explicará os motivos durante a viagem. Volte para seu dormitório e prepare suas coisas, vocês partem agora mesmo."

Uma chama emergiu nas entranhas de Dohâj, uma chama que consumiu todos os medos e angústias.

Agora vá ver o mundo.

"Sim comandante, imediatamente."

7 октября 2018 г. 13:25 0 Отчет Добавить Подписаться
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