Naruto sabia que seu companheiro de viagem não estava bem. Sentado no chão entre duas prateleiras com Madara encostado nele entre suas pernas, podia sentir a pele quente e febril do outro contra seu peito. E o calor do lugar em si piorava ainda mais. A única coisa que iluminava aquele espaço do tamanho de uma geladeira era um bastão de neon, o brilho aumentava a impressão de estarem dentro de um forno ligado.
Ele olhava com certo distanciamento a porta de compensado. Os urros dos mortos haviam cessado. Quanto tempo esperaram por isso trancados num depósito minúsculo de uma lanchonete? Um dia, dois, uma semana inteira? Ele não fazia ideia. Em algum momento, Naruto esqueceu a fome, a garganta seca, a desejo de dormir, exceto uma coisa: a vontade de ir ao banheiro.
Eles saíram de Suna com objetivo de chegar até Konoha para tentar encontrar o restante da família Uchiha — vivos de preferência. Juntos venceram boa parte da distância que jamais conseguiriam sozinhos. Porém, quando faltava pouco mais de 50km para chegarem à cidade, foram cercados por mortos vivos. Eles estavam em um posto de gasolina quando mais de 300 zumbis apareceram. Não poderiam lutar contra tantos, nem fugir, a melhor alternativa foi uma lanchonete decadente do outro lado da rua que poderia servir de abrigo.
Os zumbis quebraram as vidraças, invadiram a lanchonete, arrombaram a porta da cozinha, mas não os encontraram. Tinham conseguido se esconder no último instante.
Passando-se o medo e a excitação da fuga, Naruto sentia seus nevos tão gastos quanto um pano de chão muito velho. Ele desejava sair logo dali para ir mijar, resgatar seu machado que havia deixado cair na fuga, encontrar um lugar seguro para comerem algo decente e dormirem por umas 20h seguidas, isso era pedir muito?
Era sim.
Sua vida antes do fim do mundo foi um verdadeiro paraíso se comparado ao agora. Ele sentia falta do conforto bolorento do sofá-cama, do gosto industrial de comida instantânea e do seu gato, embora fosse um felino desagradável. Agora dormir por 3h seguidas, mesmo que fosse no chão, era um luxo, um chiclete valia mais que qualquer jantar refinado, e seu melhor amigo era um machado que roubou do corpo de bombeiros em Suna.
A única coisa que conseguiu preservar de sua antiga vida era aquele homem. Madara, seu ex chefe. Enquanto mantinha os braços em volta de Madara e o queixo colocado sobre a cabeça dele — já que mal havia espaço para um deles- se perguntava se daria esse momento em troca do mundo normal. Sem mortes, sem zumbis.
Talvez.
— 174 dias. — disse Madara num fio rouco de voz. — Agora eu perdi a conta. Não faço ideia de quantos dias se passaram.
Naruto levou a mão a testa do homem, estava queimando de febre e ensopada de suor. Desejou ainda mais estar num lugar sossegado onde pudesse oferecer algum conforto ao outro. Onde colocaria compressas na testa dele e o alimentaria com uma boa comida.
— Tenho que tirar você daqui.
— Por que voltou por mim naquele dia?
— Hm?
— Você pediu demissão e disse que gostaria de nunca ter me conhecido.
Naruto não queria falar sobre aquele dia. Parecia coisa de uns cem anos atrás ou a vida de outra pessoa. Algo que não tinha importância.
Naruto inclinou o corpo para o lado esquerdo, a beirada de madeira da prateleira raspava sua têmpora, e com certa dificuldade, passou a tirar da bochecha de Madara os fios de cabelo que estavam grudados na pele dele por conta do suor.
Em nome da praticidade, os cabelos dele tinham sido cortados bem curtos, mas já estavam alcançando o ombro novamente.
Ele esticou o braço para pegar um calendário velho na prateleira de cima, as pontas estavam enrugadas como pergaminho. Começou a abaná-lo na esperança de acalmar aquele calor, mas a sensação era de que abrir uma panela de pressão e ter o vapor encostando na pele.
— Mesmo com o mundo queimando, você voltou — continuou o Uchiha —, acho que quero ouvir da sua boca o porquê.
— Não quer, não. — Naruto pôs-se a abanar com mais força.
Era uma história boba e constrangedora. Naruto se apaixonou pelo próprio chefe. Então na festa da empresa de final do ano em 2015, ele bebeu um pouco demais e acabou falando o que não deveria para o sobrinho do patrão. Uchiha Itachi era um linguarudo sem vergonha que não conseguia guardar segredos alheios. Depois do feriado, ele foi chamado à sala de Madara para ter "uma conversa séria". O desfecho, é claro, foi humilhante. Madara disse que só não o demitiria porque ele era um bom funcionário mas, se ele quisesse pedir demissão, era livre para fazê-lo.
Naruto não disse abertamente ao chefe que possuía sentimentos por ele, porém, não negou também. Acabou ficando pelo dinheiro. Permaneceu no emprego até atingir o limite. Ele disse a verdade quando falou que gostaria de nunca tê-lo conhecido, da mesma forma que todo mundo fala o que pensa quando está com raiva.
O dia que se demitiu foi o mesmo que o mundo se transformou no verdadeiro inferno. Ele voltou mesmo assim e nunca se arrependeu disso.
— Acho que quero. Você está começando a parecer muito atraente se comparado aos mortos lá fora.
Naruto corou.
— Você está delirando. Sobrou um pouco de água, vai melhorar se beber um pouco.
— Por que está sendo evasivo?
— Porque estamos num depósito minúsculo onde não podemos nem esticar as pernas e porque nós jamais teríamos essa conversa em uma situação normal. — sibilou ele.
— Hm.
Ele pegou a garrafa de água ao seu lado, estava pela metade. Embora o líquido fosse bastante tentador, ele não tomou.
— Toma. — ofereceu a Madara. A garrafa foi aceita sem protesto. Madara tomou a água num único gole.
— Por que não admite em voz alta o que é tão claro em suas ações? — voz retornou suave.
Naruto suspirou irritado com aquela insistência.
— Nós já tivemos uma conversa antes, e ela foi bastante esclarecedora.
— Por que você voltou? — insistiu Madara.
Naruto ficou em silêncio e colocou o queixo sobre a cabeça de Madara novamente. Como um gavião colocando o bico entre os cabelos do dono.
Ele lembrava que, quando a coisa toda desmoronou, a primeira coisa que pensou não foi chamar a polícia para prender o vizinho que estava comendo a mulher dele na frente de casa — comendo no sentindo exato da palavra. Pensou no ex-chefe que deveria estar trancado no escritório revisando relatórios até depois do expediente.
As primeiras horas foram um caos, acidentes em toda parte, casas pegando fogo e um verdadeiro cenário dantesco de gente praticando canibalismo. Ele atropelou duas pessoas e até hoje não sabia se elas estavam vivas-vivas quando aconteceu. Sabia que não deveria se sentir culpado pelos atropelamentos, foram fatalidades, e por mais que tentassem se convencer, isso não impedia os pesadelos de assombrarem sua mente quando fechava os olhos.
Ele atravessou a cidade inteira para encontrar aquele homem preso dentro do elevador da empresa. Se não tivesse escutado a voz dele pedindo ajuda, talvez ambos estivessem mortos agora.
— Você não duraria um dia sem mim. — disse por fim. Um silêncio caiu sobre os dois. Naruto fechou os olhos e envolveu Madara um pouco mais entre os braços. Sua âncora, seu porto seguro. Ele era o que mantinha sua sanidade em pé, e se conseguisse ajudá-lo a encontrar a família dele, ia ser como um salvar um pouco do equilíbrio do mundo. Soava como tentar achar o menor grão de areia de uma praia grande, mas se ele fosse encontrado, ia ser algo único.
Por mais que Itachi fosse um linguarudo, queria vê-lo de novo. Sasuke, o irmão irritante dele, também. A garotinha que Madara amava como se fosse filha dele ainda mais. A ideia de que todos eles estavam mortos o enjoava muito, então preferia se apegar a esperança de que estavam vivos, mesmo que fosse uma completa loucura o que estava fazendo. Atravessar metade do país em busca de pessoas que provavelmente estavam mortas com esperança do contrário, não poderia ser o pensamento mais lúcido, não naquele dias.
— Acho que, se não estivéssemos nessa bosta, eu faria sexo com você.
Naruto franziu a testa.
— Você era meu patrão, e hétero, jamais ficaria comigo.
— Não estou falando do antes, mas dessa porcaria de depósito — Madara riu deixando Naruto desconcertado. — Quero fazer isso quando a gente sair daqui.
— Está delirando e, se mais tarde conseguir lembrar do que está dizendo agora, vai se arrepender. E Muito.
— Por que você voltou? — Madara perguntou pela terceira vez.
— Que bicho mordeu você? — Naruto voltou a ficar irritado. Sabia que Madara em circunstâncias normais nem lembraria seu nome. Comparou o que ele queria fazer com o que alguns homens faziam quando ficavam presos em penitenciárias por muito tempo; sexo com outros homens. Ter algo mais ou menos quando não se podia ter algo melhor. Estava se sentindo usado e nenhum pouco bem com isso.
— Quando disse que queria se demitir, pensei em negar o pedido, mas então falou que gostaria de nunca ter me conhecido. Por isso deixei você ir. — disse ele — Não queria que tivesse ido embora. No entanto, mesmo eu tendo sido um cretino, você voltou. Fez mais por mim do que eu merecia. Por qual motivo?
Naruto relaxou um pouco. As palavras de Madara soaram sinceras. Talvez ele não tivesse desejado ser um completo babaca naquela época, talvez fosse algo que não pudesse evitar.
— Não havia ninguém que eu me importasse, e ninguém para retornar. Se você morresse, eu jamais teria como encontrar um pouco de paz nesse inferno.
— Você me traz paz. — Madara ergueu a mão cegamente para tocar o rosto dele. Naruto se inclinou para a mão morna, apreciando aquela sensação antes de beijá-la. Era só carinho. O menor grão de areia numa praia infinita. — Quero ficar contigo.
Naruto sentiu uma pontada no peito. Uma mistura um dor e contemplação pelo que o mundo fizera com eles. Eram fortes com seus corações rasgados. Diziam o que sentiam porque a morte estava bem ao lado segurando suas mãos, tentada a agarrá-los. Se permitiam fazer coisas que no velho mundo jamais fariam porque qualquer migalha de felicidade era valiosa.
— Por que quer ficar comigo agora?
— Gratidão, eu acho.
— Não quero sua gratidão.
Mas se não pudesse ter felicidade verdadeira, Naruto não a quereria.
— Eu sei. — Madara fez uma pausa, encostando nele com um pouco mais de intensidade, parecia agradá-lo a soma do calor causticante dos corpos deles — O fato de te achar muito sexy quando corta a cabeça de um zumbi está pesando bastante na minha decisão. Jamais faria algo do tipo por gratidão.
Foi a vez de Naruto rir.
— Já é um começo.
— E hora de sair daqui. — Madara se apoiou nas prateleiras para se levantar. A madeira estalou com o peso. — Céus, minhas pernas estão tão dormentes que acho que mal consigo ficar em pé.
Naruto levantou sentindo a mesma coisa e afastou Madara para o lado, ignorando as milhares de agulhadas nas pernas.
— Então vou na frente.
— Ei — Madara o tocou no ombro antes dele abrir a porta — Estou falando sério sobre querer ficar com você.
A mão de Madara deslizou do ombro para a mão de Naruto. Então ele virou para Madara e depositou um beijo suave sobre o rosto dele. O que sentia por aquele homem ia além de devoção. Por muito tempo, reprimiu tudo o que sentia, tentou esconder, fingiu que não existia e que não o afetava, por isso não parecia real essa aproximação repentina.
— Espero que mais tarde não se arrependa de ter dito isso. — sussurrou. — Não me dê falsas esperanças, não preciso de uma mentira conveniente.
— Eu não mentiria sobre isso.
Com cautela, eles saíram do pequeno depósito. O ar frio trouxe consigo o cheiro de cadáveres, sangue e morte. Era reconfortante estar com Madara nesse momento. Ao lado dele, sentia que podia atravessar o inferno e permanecer vivo.
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