zephirat Andre Tornado

No fim do verão de 1966, o realizador Richard Lester convida John Lennon para fazer parte de um filme que está a realizar e cujas filmagens, em parte, se irão desenrolar no Sul de Espanha. O ano é especial – os Beatles tinham acabado de anunciar que iriam parar com as suas digressões e havia rumores na imprensa de que o grupo iria separar-se. John Lennon encontra-se numa encruzilhada de sentimentos…


Фанфикшн Группы / Singers 18+. © The Beatles foram um grupo britânico que revolucionou a música nos anos 60 do século XX. Esta história é escrita de fã para fã.

#Surreal #Música #Filme #Spain #Espanha #How I Won The War #Fab Four #Strawberry Fields Forever #John Lennon #Beatles #Mistério
Короткий рассказ
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Capítulo Único


Agarrou no auscultador do telefone.


Era negro e pesado, um aparelho antigo, o típico modelo clássico dos primeiros aparelhos telefónicos, reminiscências do início do século. Olhou para os algarismos do disco, pensou mentalmente no número que queria ligar. Uma ligação internacional, de um país para outro país. Ouvia-se o apito grave proveniente do auscultador, tuuuu…, que indicava que existia linha disponível para que ele fizesse a chamada e por estar há tanto tempo com o auscultador na mão passou para um apito intermitente, o sinal de linha impedida. Tut-tut-tut…


Imaginou-se a discar o número, imaginou os estalidos que definiam o caminho entre linhas telefónicas, de ali para além, o cruzar de fronteiras com essa facilidade, sem necessidade de apresentar qualquer passaporte, a liberdade desse simples gesto de telefonar a alguém num país ou continente diferente.


O auscultador pesava-lhe na mão e ele não se decidia a levá-lo à orelha. Estava simplesmente suspenso, o apito intermitente perfeitamente audível.


O sorriso foi melancólico… Estava demasiado exausto para dissertar sobre liberdade, espíritos indomáveis e revoluções. Fisicamente tinha um excelente aspeto – cortara o cabelo, emagrecera para um peso razoável, passara finalmente a usar os óculos que lhe corrigiam a miopia. Era um homem saudável de vinte e cinco anos. Por outras palavras, não exteriorizava o tumulto que lhe assaltava a alma contorcida por todas as dúvidas que reunia naquele instante em que se afastara do seu mundo natural. Estava exausto por dentro.


O mundo natural da música, os seus amigos.


Vivia naquelas últimas semanas naquele país estrangeiro porque não suportara ficar em casa. Encontrava-se de férias, uma pausa que lhe fora concedida e tinha de ocupar o seu tempo livre com alguma coisa que o distraísse da evidência que lhe caía em cima como uma tonelada de cascalho, soterrando-o, abafando-o. O que fazer da sua vida quando os Beatles terminassem? Sim, porque o fim iria acontecer, algures. Ou ele saía do grupo ou os outros expulsavam-no. E o que seria dele sem aquela realidade que o acompanhava por quase uma década?


Devia telefonar… Confessar que se sentia terrivelmente sozinho. Ouvir uma voz conhecida, aquele sotaque inconfundível… O Ei tão característico e depois dizer uma piada qualquer para que se rissem os dois…


O auscultador era mesmo pesado.


Ele não pensava seriamente numa alternativa à banda famosa que ele integrava, com os outros três rapazes. Todos eles, meros rapazes… O palácio era demasiado confortável para que ele o abandonasse levianamente e o que existia no exterior era assustador. Mas haveria um fim, certo? Agora que tinham decidido terminar com as digressões, o que era um grupo musical sem as apresentações ao vivo? O mais normal era que definhasse e morresse, que o público se esquecesse deles. E depois, o que existia para lá dessa fronteira? O que havia depois do fim? Era só uma pergunta que volitava na sua mente, como um pássaro selvagem engaiolado que embatia nas grades da sua prisão teimosamente, numa aflição para se soltar. Era só uma dúvida… O que existia depois dos Beatles? O que existia para ele?


Desistiu e pousou o auscultador. Um tinido quando este regressou ao descanso. O telefone ficou completo com todas as suas partes, sobre a pequena mesa, debaixo de um quadro com temas florais.


Não iria falar com Paul. Provavelmente Paul não iria compreender a sua necessidade ou sequer a sua carência. Iria ser inútil e cansativo.


Puxou de um cigarro, prendeu-o entre os dentes. Seguiu cabisbaixo pelo corredor.


Na realidade não estava totalmente sozinho. Neil Aspinall, o assistente pessoal dos Beatles, o motorista dos primeiros tempos da banda, fazia-lhe companhia. Já tinha pensado em aceitar o conselho dele e chamar a mulher e o filho para Espanha, mas ele desejava a solidão que repelia com o desencanto que o irritava, naquele momento – e na maior parte dos momentos.


Fazia parte do elenco do filme realizado por Richard “Dick” Lester, o mesmo realizador dos filmes dos Beatles, com o título How I Won the War e por isso viajara até Espanha, mais exatamente até Almería que se situava na província da Andaluzia. Sul, mar Mediterrâneo por perto. Depois de ter ficado num apartamento junto à costa durante alguns dias, pediu mais privacidade e arrendaram-lhe uma villa discreta chamada Santa Isabel, para a qual se chegava através de caminhos de terra batida disfarçados numa paisagem árida. Desempenhar um papel num filme pareceu-lhe uma boa ideia para tentar descansar o espírito, mas em breve descobriu-se apático nas longas horas de inação que mediavam a filmagem de cada cena. Arranjou uma guitarra acústica, comprada a um cigano local, e mergulhou na música. Compunha arranjos que tentava embrulhar numa canção e escrevia bastante também. Toda essa atividade, porém, parecia-lhe vã e minúscula quando anoitecia e a solidão carregava um dedo esquelético sobre o seu coração inquieto.


Saiu para um dos imensos terraços da villa. Acendeu o cigarro e começou a fumar. Deu algumas voltas pelo pavimento de ladrilhos. De dia o calor era intenso, mas de noite havia muita humidade trazida pela proximidade do mar. Vestia uma blusa de manga curta, não se sentiu incomodado. Tinha a pele dos braços queimada pelo sol e a frescura noturna acalmava-lhe os escaldões. Ele era demasiado frágil para aquele clima, demasiado inglês…


No silêncio encostou-se ao gradeamento que delimitava o terraço e pôs-se a contemplar a magnífica lua cheia. A sua imensa luz branca iluminava a paisagem com tons argênteos fortes. Era como se um farol fixo estivesse aceso no céu negro.


Viu-a nos jardins, vogando devagar como uma assombração. A princípio assustou-se e endireitou as costas, apoiando as mãos na balaustrada de ferro forjado, a ponta do cigarro incandescente entre os dedos. Tentou sossegar, a seguir, sorrindo com a sua reação. Provavelmente era uma das empregadas que faziam parte do pessoal que prestavam os seus serviços na villa, nas matérias domésticas, que lhe tratavam da roupa e das refeições, dessas coisas imprescindíveis à vida humana confortável a que ele se habituara demasiado depressa. Não era nenhum fantasma, embora achasse estranho que alguém quisesse passear àquela hora da noite. Era tarde, passava da meia-noite… Ele vira as horas, de relance, no relógio barulhento pendurado na parede do corredor.


Reparou na leveza dos passos dela, na movimentação vaporosa da sua saia comprida, os braços às ilhargas, as mãos de dedos compridos. No pulso esquerdo usava um adorno que refletia os raios lunares. Algo alvo também, redondo e pequeno. Quatro peças semelhantes. Búzios, talvez… Esteve sempre de costas para ele, os longos cabelos negros e encaracolados a roçar nas costas.


Acabou o cigarro. Deu meia-volta e foi para o seu quarto, onde se estendeu vestido. Teve o cuidado, no entanto, de descalçar os sapatos. A fixar o teto com uns olhos muito abertos, a pensar em ondas coloridas sem nexo vogando no firmamento que engoliam a gigantesca lua opalina, deixou que o sono viesse e adormeceu.


No dia seguinte, a rotina prosseguiu. Foi no seu Rolls Royce negro, de janelas opacas, para o local das filmagens. Aguardou na sua caravana que o chamassem, aproveitou o tempo para decorar as suas falas. O soldado Gripweed, era o nome do seu personagem... Um nome que se prestava a alguns trocadilhos. Agarrava amiúde na sua guitarra e tocava canções. Havia uma que ele queria escrever, uma espécie de sessão de autoconhecimento… Contar quem ele era ou o que ele achava que ele seria, naquele mundo aborrecido em que o obrigavam a ter paciência e esperar, quando ele queria era fugir, caminhar, avançar pelo mundo sem estações intermédias.


E como em todos os dias, o tempo de filmagem fora curto. Algumas cenas, repetição de cenas e estava feito. Pelo menos os filmes que protagonizara enquanto um Beatle eram mais rápidos de realizar. As cenas ficavam sempre boas e nunca se repetia nada.


Quando regressou a casa quis tomar um banho e foram levar-lhe toalhas lavadas ao seu quarto. Sentia-se bem-humorado e murmurava a melodia que ele estava a compor como parte do exercício de psicanálise. Desabotoava a camisa e recordava-se do que Neil lhe contara sobre o seu automóvel. Por ser todo preto e por lembrar um carro funerário tinha a alcunha, entre os locais, de “carruagem da morte”. Neil dissera-lhe também que se contavam histórias medonhas sobre o carro e que havia a superstição de que ninguém se podia cruzar com o automóvel ou aconteceria um azar qualquer.


Então, ela entrou no quarto e ele imobilizou-se, a segurar nas abas da camisa aberta, expondo o peito, marcado pelas queimaduras do sol com o desenho da blusa de alças que usava durante as filmagens.


A assombração da noite anterior.


Um arrepio gelado desceu pelas costas suadas de John Lennon. Invocava no pensamento as crendices das gentes de Almería, criadas à conta do seu Rolls e ela… o fantasma, entrava.


Trazia-lhe as toalhas. Passou por ele cabisbaixa, sem dizer palavra, e pousou-as numa cadeira. Ele marcou-lhe os passos e os gestos com os olhos, na mesma posição estupidamente imobilizada. Era uma mulher bonita, uma beleza exótica do sul de Espanha. Tez morena, pestanas enroladas, boca expressiva de lábios grossos, um queixo forte, pescoço comprido. A figura era esbelta, com curvas bem preenchidas, seios fartos, ancas largas. Não lhe conseguiu ver o torneamento das pernas, escondidas nos panos da saia comprida que se arrastava num farfalhar pelo chão. Mas notou a pulseira com as quatro conchas no braço esquerdo.


Engoliu em seco quando ela tornou a passar por ele. O perfume dela, natural, agreste, invocava as ervas mediterrânicas que cresciam entre os pedregulhos que juncavam a paisagem desértica. Tomilho, alfazema, esteva.


Não lhe disse nada e ela saiu sem nada lhe dizer. Olhou para as toalhas, olhou para a porta. Correu até à saída do quarto, agarrou no umbral, espreitou pelo corredor, mas já não a viu. Silenciosa, furtiva, ela sumira-se.


No outro dia voltou a pedir toalhas e ela voltou a aparecer. Mas ele esperava-a e já não reagiu com espanto. Quedou-se a contemplá-la, a fixar os detalhes, a colar-lhe um poema. Ela andava devagar, majestosamente apesar de ter a cabeça baixa numa posição de humildade e de timidez. Continuava a cheirar muitíssimo bem e nunca, nem por uma única vez, olhou para ele. De todas as pequenas perfeições que ele encontrava nela, gostava especialmente da pulseira. Quatro conchas brancas e redondas, quatro búzios unidos, enfiados num fio de couro escuro.


Quis saber mais sobre ela. Perguntou a Neil quem era, discretamente. Havia outras empregadas na villa, claro. Umas mais velhas, outras mais jovens, mas ela era de certo modo especial porque só a via somente se pedisse toalhas… Nunca a encontrava noutra parte da casa, nem quando fora perguntar por laranjas à cozinha. Havia também dois homens, um jardineiro e um mordomo que orientava as mulheres num tom rude e implicativo. Os seus gritos em castelhano divertiam-no, porque adivinhava que alguém estivesse a fazer alguma asneira para ele as admoestar assim.


Mas Neil não sabia quem era ou não lhe respondera com a exatidão que pretendia. Por seu lado, ele também não quis dar a entender que estava interessado. Tinha tido alguns casos extraconjungais, mas naquela fase confusa não lhe estava a apetecer esconder-se numa aventura sexual.


Numa noite voltou a agarrar no auscultador e voltou a desistir. Pensava, O Paul está ocupado, deixa-o em paz… Talvez se quisesses ligar ao Ringo…


O George não era uma opção, viajara para a Índia para seguir um apelo qualquer que ouvira quando tomara ácido. Falara nos Himalaias, uma treta dessas esotérica… O George devia estar na mesma situação. À procura de respostas, à procura de um caminho, de um propósito… Ele e George eram muito parecidos, apesar de toda a gente julgar que a sua alma gémea era Paul porque compunham canções juntos.


E então viu-a no fundo do corredor, deslizando entre uma porta e outra. Correu para lá, mas não a encontrou. Abanou a cabeça, chamando a si próprio de estúpido.


Tu não queres comê-la, então para quê tudo isso?


Ou talvez quisesse…


Foi para a sala, sentou-se com a sua guitarra cigana, um instrumento curtido pelas andanças nómadas do seu anterior dono. Velha, cheia de vícios, cheia de amor. Começou a tocar uma canção e deixou-se ficar de olhos fechados, deixando a melodia invadir-lhe o sangue. Pôs-se a murmurar, quase hipnotizado pelos seus próprios acordes:


- Is there anybody going to listen to my story… all about the girl who came to stay… She’s the kind of girl you want so much that makes you sorry...[1]


Ao entreabrir as pálpebras ela postava-se na sombra. Gritou assustado.


- O que fazes aí? – perguntou-lhe agressivo.


Ela encolheu-se com um estremecimento. Apertava as mãos uma na outra, a pulseira das quatro conchas retorcia-se no seu pulso. Mexeu a cabeça e recuou. Ele arrependeu-se de a ter afugentado. Saltou do sofá e, com a guitarra na mão esquerda, agarrou-a com a mão direita. Sentiu as conchas debaixo dos dedos.


- Espera, onde vais? Eu… Como te chamas?


Ela mordeu o lábio inferior. Olhava-o através das pestanas, transida de medo.


- Não percebes o que te estou a dizer? Não falas inglês… Só falas espanhol? Español? Chica?... Hum?...


Não valia a pena tentar uma conversa com ela. Ele levantou-lhe o pulso e observou a pulseira. Passou um dedo pelas conchas macias, polidas, joias marítimas singelas. Eram quatro. Puxou a mulher consigo e sentaram-se os dois no sofá. Recomeçou a dedilhar as cordas da guitarra a olhar para ela e, milagre, ela encarou-o também.


- Gostas de música? Toco para ti…


Não se sentiu à vontade para lhe mostrar as canções dos Beatles, numa versão acústica e particular. Pareceu-lhe tão inútil como entabular uma conversação com ela. Quis ser uma pessoa diferente com aquela mulher… Alguém novo. Começou a improvisar acordes e a murmurar uma letra que ele ainda não tinha elaborado. Ela não se moveu durante aquela pequena atuação, nem sequer para soltar um suspiro inesperado. Escutava-o numa placidez esfíngica, tão tranquila como um lago congelado à superfície. Ela não o conhecia, era evidente, ou estaria a derreter-se delambida e corada porque John Lennon lhe estava a fazer uma serenata. A situação conseguia ser caricata e enternecedora, ao mesmo tempo.


Despediram-se quando ele lhe confessou que estava cansado e recostou-se no sofá, esfregando os olhos ao enfiar os dedos debaixo dos óculos que descaíram para o nariz. De repente, ela já não estava ali e ele não se importou. Passado pouco tempo, Neil regressava de um vilarejo onde fora beber uns copos com um técnico da equipa de filmagens. Trazia-lhe marijuana e os dois fumaram umas ganzas, gargalhando sobre como aquele lugar se situava no fim do mundo. Ficou tão pedrado que dormiu no sofá, a roncar alto.


Não a voltou a ver nos dias seguintes, nem quando pedia as toalhas. Estas apareciam na cadeira do quarto, uma pilha branca e imaculada. Ele, desinteressado e deprimido, tomava banho e depois ia jantar com Neil.


- Ei, Paul… Como estás?


Naquela noite, finalmente, tinha tomado coragem para fazer o telefonema.


- John! Que surpresa agradável! Pensava que tinhas sido engolido por alguma fenda que se abriu no meio da terra… Estive a ver fotografias desse lugar, é mesmo um deserto cheio de pedras. Há tanto tempo sem notícias! O filme está a correr bem?


- Yeah… Não queres vir conhecer o fim do mundo?


- Sabes que não posso, amigo… Estou ocupado com a composição daquela banda sonora, tu sabes… The Family Way. Também me meti no negócio cinematográfico. Está a dar mais trabalho do que esperava mas o Martin está a ajudar-me. Gosto dos conselhos dele… Aliás, preciso dos conselhos dele!


- Pois…


- Está tudo bem contigo?


- Sim, Macca… Tudo bem.


- Estás a sentir-te sozinho, John?


- Não. O Neil está comigo. A Cyn virá em breve e vai trazer o Julian. Foi o Neil que insistiu e… pronto. Acho que ela devia vir para cá, o lugar dela é ao meu lado. O puto também. É um bom lugar para ele brincar. Estamos numa vivenda com um grande jardim.


- Estás sozinho…


- Não, realmente não.


- Posso falar com o Ringo. Acho que a Maureen queria ir para um sítio quente.


- Aqui faz calor…


- Falo com o Ringo, ok?


- Está bem…


- Está mesmo tudo bem contigo?


- Sim, claro que sim.


- A sério?


- Yeah


Ela olhava-o no fundo do corredor quando ele desligou o telefone. Não suportou o silêncio da mulher e virou-lhe as costas. Foi para o terraço fumar um cigarro. Nessa noite desenvolveu-se uma tempestade medonha. Muita chuva e trovoada, as estradas transformaram-se em lameiros. Rios castanhos corriam pelas veredas e arrastaram muitos destroços para o mar. Barracas mal construídas, armações das hortas, coisas que estavam soltas em terrenos que pareciam abandonados.


A chuva prosseguiu no outro dia e as filmagens foram adiadas. Lester, o realizador, convidou todos os que faziam parte da sua equipa, produtores, atores, técnicos, respetivos assistentes, para irem fazer uma primeira visualização do filme no cineteatro de Almería. John disse a Neil que não queria ir e ficaram os dois na villa a comer tomate e pimentos em conserva caseira com pão, iguarias locais que o segundo tinha ido comprar numa mercearia da cidade naquela tarde e regressara encharcado. Ficaram a beber vinho tinto, outro produto local, a fumar erva e a curtir os longos espaços vazios sem conversa.


Neil queria sair com o Rolls e assustar os tipos de Almería. Isso acontecia quando rodavam pelo sítio com o sistema de som ligado, que permitia que se escutasse no exterior a música que eles ouviam dentro do carro, naqueles dias eles escutavam Bob Dylan e o seu devaneio eletrónico. John disse-lhe que não queria, os relâmpagos estavam a cair muito próximo. Neil riu-se, a fumar uma passa do seu charro.


John levantou-se e foi até à cozinha. Agarrou num copo, abriu a torneira, encheu-o de água. Um trovão ribombou por cima do telhado da casa, após um disparo de luz particularmente intenso. Levava o copo à boca seca, a marijuana e o vinho combinados tinham-lhe deixado a garganta arranhada, quando a viu. Estava a olhar para uma janela e era um vulto quieto, recortado na penumbra iluminada pelas réstias de luz do relâmpago. John deixou cair o copo que se estilhaçou a seus pés, salpicando-lhe a bainha das calças.


Ela rodou o pescoço e ele viu-lhe o perfil. Levantou um braço, os dedos ajeitaram uma madeixa de cabelo atrás da orelha, a pulseira descaiu e as quatro conchas bateram umas nas outras. John inspirou fundo.


- Estás aí… Tens medo dos trovões?... Ah, pois... Não percebes o que te estou a dizer... Ok… Se quiseres, estamos na sala. Bem, tu sabes que estamos aqui. Desculpa lá pelo copo, mas é melhor limpares os vidros... Alguém se pode cortar nisto.


Regressou para junto de Neil. Sentou-se no sofá. Estava zonzo e não era só por causa da marijuana. Enfiou os dedos nos cabelos suados. Precisava de confessar a sua impressão de acossamento, o seu desnorte, a sua solidão, as interrogações que lhe mordiam a alma desassossegada, tudo exacerbado pelo barulho terrível e medonho da tempestade.


- Aquela mulher…


Os olhos inflamados de Neil pousaram-se nele. Bufou e riu-se, um riso descontrolado, sem intenção de troça, mas riu-se e John não gostou.


- Que mulher? Estamos sozinhos… Já se foram todos embora. Estás a falar do pessoal?


John abanou a cabeça.


- Yeah


- Não fica cá ninguém depois de uma certa hora. E como está a chover mandei-os para casa mais cedo. Sabes? Têm as suas famílias, têm as suas rezas para cumprir, esta gente é muito religiosa. Não queriam ficar com os ingleses malucos durante esta tempestade. Os ingleses malucos do carro funerário. Amanhã de manhã logo voltam… Precisas de alguma coisa? Foste à cozinha. Não foi?


- Nada… Tudo bem.


Recostou-se no sofá, mãos frias em cima da testa quente, cotovelos espetados para o lado, como uma armadura que o protegeria dos ataques do mundo. Duas lanças feitas com as articulações e os ossos dos seus braços. Estava cheio de calor.


Quem era ela?


Não era ninguém, raios… Ninguém. Ele não queria comê-la! A Cynthia estava quase a chegar…


- Nothing is real… and nothing to get hung about...[2] – murmurou.


E repetiu essas palavras até se deixar dormir.


No dia seguinte, ele acedeu à travessura de Neil e andaram pelas estradas enlameadas com o Rolls preto, as janelas fumadas fechadas, portas trancadas, com os altifalantes a berrarem a música revolucionária de Bob Dylan. O Apocalipse chegava e um dos quatro cavaleiros percorria a terra montado no seu corcel negro… A “carruagem da morte”… O automóvel escuro e misterioso.


Depois tudo regressou à rotina quando o sol também regressou ao céu para crestar a paisagem novamente, com os seus raios inclementes. Luz e calor, secura, deserto, dias metidos na caravana, a guitarra do cigano em acordes súbitos e impacientes.


Living is easy with eyes closed... Misunderstanding all you see...[3]


Os versos do poema formavam-se na sua cabeça. Ligou outra vez para Paul, Ringo atendeu-o fingindo que era o mordomo da residência. Ele dissera-lhe que a imitação estava péssima e que não enganava ninguém. O baterista prometeu-lhe que chegaria na próxima semana.


- Estás muito sozinho, pá! O sol da Espanha está a fritar-te os miolos.


Estavam num jantar na casa de McCartney, contava Ringo, havia ácido. Ele haveria de gostar de estar ali. John fingira que ficara animado. Sim… Sim… Falava por monossílabos carregados de entusiasmo falso. Estava a ser um bom ator… Aprendia a ser um bom ator. Podia fazer uma carreira nos filmes. Depois dos Beatles… Criava umas canções nos bastidores, nos intervalos, nos longos momentos de tédio. Lançava um disco de vez em quando, com essas canções, enquanto viajaria para os festivais de cinema onde os seus filmes seriam elogiados. Um excelente ator! Muito natural, sofrido… Um talento único…


It’s getting hard to be someone… but it all works out...[4]


Mais versos.


Eram os portões da villa que o inspiravam. Uns portões trabalhados em ferro forjado, como as balaustradas dos terraços, imponentes e antigos, iguais aos portões que davam acesso ao orfanato onde ele brincava quando era uma criança, em Liverpool.


Strawberry Field… Strawberry Fields Forever...


Regressou ao quarto exaurido. O telefonema fora longínquo, fora esmagador. Ela saía do quarto ao lado. Fechava a porta com cuidado, cabisbaixa, silenciosa, etérea. Inexistente.


Encheu-se de raiva. Alcançou-a, puxou-a por um braço e levou-a para o seu quarto. Empurrou a porta com um pontapé, esta bateu com estrondo, um som alto que reverberou pela casa inteira, que lhe fez tremer os alicerces. Fechados, os dois, no compartimento. Num impulso violento abraçou-a, esmagou-a nos seus braços. Quis senti-la, saber, ter a certeza que ela estava com ele, naquele quarto, naquele lugar, naquele ponto minúsculo do vasto Universo, naquele plano físico. Todos os indícios informavam-no que ela era apenas uma fantasia e ele estremecia de assombro e de pavor. Que fantasia?


- Quem és tu? Quem és tu?


Nothing is real…


Soçobrou naquele abraço. Encostou o queixo na curva do pescoço dela, aspirou-lhe todos os perfumes, o nariz enredado nas madeixas profundamente negras do cabelo dela. De olhos fechados viajava por outras paragens. Não a largava, não a queria largar. Era tão real, tão concreta. Memórias… Sozinho no jardim do orfanado… Mãe


Olhou-a no rosto. Belo e trigueiro. Exótico. Nunca tinha conhecido ninguém como ela. Uma beleza sulista. Espanha e os seus encantos. Tão aprazíveis para um rapaz do norte frio da Inglaterra. Pestanejou. Ela não se dissolvia. Ela era verdadeira, de carne e osso, nos seus braços.


A mulher passou-lhe os dedos macios pela face. Os lábios dele descolaram-se e achou que devia falar. Mas dizer o quê? Nada era real… E não existia nada para que ficasse preocupado… Olhou de esguelha para o pulso que vinha com aquela mão carinhosa. A pulseira. Agarrou o pulso dela com as duas mãos. O fio de couro e as quatro conchas. Todas separadas, deslizavam tresmalhadas pelo fio. Ele juntou-as com um dedo, uma por uma. Quatro búzios. Juntos. Era bonito…


Ela saiu do quarto e ele sentou-se no chão, a fixar a porta aberta.


Na caravana, lia o roteiro, lia o seu personagem. O soldado Gripweed. O mosqueteiro Gripweed. Estava concentrado, mas a lembrança fugia-lhe muitas vezes para o abraço que dera à mulher no quarto. Fora só um abraço? Sim, só um abraço. Não quero comê-la. Lennon, estás a perder qualidades...


Eu não quero mais ser um Beatle... Mas sou um Beatle.


O que existiria lá fora se ele saísse do palácio?


Um mundo demasiado grande.


Leu em voz alta, fazendo trejeitos:


- I knew this would happen. You knew it would happen too, didn’t you? I never said a word to you before I was dying... mate.[5]


Dramático. Seria capaz de representar a sua própria morte no campo de batalha daquele filme? Suspirou ao deitar a cabeça no encosto da cadeira, ao mirar o teto da caravana. Precisava de tratamento contra a ferrugem, de uma pintura. Talvez… iria empenhar-se. Era um rapaz empenhado. Gostava de acreditar no que fazia. A música, o cinema. Qualquer coisa.


Nunca mais vira a mulher. Desaparecera.


But you know I know when it’s a dream.[6]


Talvez o propósito da mulher na villa Santa Isabel fora apenas consolá-lo naquele abraço. Ele sentira-se efetivamente consolado. Cynthia entretanto tinha chegado, com o pequeno Julian. Ringo viera a seguir, com a mulher Maureen. Michael Crawford, o ator principal do filme, e a sua esposa também se instalaram na villa e a propriedade transformou-se numa festa permanente. Uma casa cheia de vida, de ruído, de alegria. E ele sentiu-se menos sozinho.


A mulher, todavia, não se fora embora sem o abandonar totalmente. Sobre uma pilha de toalhas brancas ele encontrou a pulseira das quatro conchas. Quando a ergueu à altura dos olhos, admirado e comovido, percebeu que os búzios estavam colados e que nunca mais iriam deslizar perdidos pelo fio de couro, nunca mais se iriam afastar uns dos outros.


Lia o roteiro e a sua voz tornou-se mais pausada:


- I’m not a thief, really. I never found anything worth keeping.[7]


No fim da estadia em Almería, Espanha, seis semanas, John Lennon estava sentado na praia com Neil Aspinall. Na guitarra do cigano tocou a canção que tinha estado a compor. Chamou-lhe “Strawberry Fields Forever” e era uma invocação de si próprio. Era ele que estava ali, num pasmo, num autorreconhecimento. Uma exortação também, para uma viagem… Neil disse-lhe que era maravilhosa. Ele achou que era simplesmente uma canção.


No pulso da mão esquerda que criava os acordes usava a pulseira das quatro conchas.



[1] Existe alguém que queira escutar a minha história… Tudo sobre a moça que veio para ficar… Ela é o tipo de moça que queres tanto que depois arrependes-te…

[2] Nada é real… E não existe nada para que fiques preocupado…

[3] Viver é fácil de olhos fechados… Confundem tudo o que vês…

[4] Está a ser difícil ser-se alguém… mas tudo sairá bem…

[5] Sabia que isto iria acontecer. Vocês também sabiam que isto iria acontecer, não sabiam? Nunca te disse uma palavra antes de estar a morrer… camarada.

[6] Mas tu sabes, eu sei, quando é um sonho.

[7] Não sou realmente um ladrão. Nunca encontrei nada que valesse a pena tomar para mim.

15 марта 2018 г. 15:05 2 Отчет Добавить Подписаться
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Об авторе

Andre Tornado Gosto de escrever, gosto de ler e com uma boa história viajo por mil mundos.

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Diana  Borges Diana Borges
que texto intimista e reflexivo, adorei querido amigo, beijos

  • Andre Tornado Andre Tornado
    Oi Vica! Muito obrigado pelo teu comentário. Beijo! April 01, 2018, 20:00
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