ca_vini Caio Vinícius

O rapaz precisava comprar pão e cigarros. No caminho, havia o asfalto.


Короткий рассказ 13+.

#drama #contos
Короткий рассказ
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O asfalto

Eu estava com vergonha de ir até a padaria com os chinelos de cor diferente. Um chinelo amarelo que já foi branco e o outro esverdeado que já foi azul. Nem as marcas combinavam. A marca do chinelo interferia na pisada e eu sentia que andava diferente quando pisava com o amarelo. Por mais que eu não estivesse mancando de verdade, eu mancava psicologicamente e era ainda mais chato.

Fui assim mesmo. Depois das cinco horas, eu teria que ficar alguns minutos de pé na fila do pão com os chinelos de marcas e cores diferentes. Sempre tem uma pessoa pra reparar. E nem gosto de pão. O pão é pra enfeitar os três maços de cigarro; faz volume na sacola. Faz parecer que eu saí de casa por um motivo melhor que só os cigarros. Ao voltar pra casa com uma sacola cheia de pães, eu não me importava tanto com os chinelos... Nem com o cabelo bagunçado por ter dormido a tarde inteira... Nem com o meu calcanhar duro e escuro... Nem com a bermuda frouxa que quase caía por causa do peso das moedas. Tudo bem, eu estava na merda, mas ninguém poderia dizer que sou um largado da família. Ninguém compra dez pães quando está sozinho.


Eu já sabia, desde o momento que eu acordei, que eu teria que ir andando até a padaria com os chinelos escrotos. Deixei pra lá e continuei suportando o dia. A padaria estava no fundo da minha cabeça, me espetando toda vez que eu olhava meu maço de cigarros e percebia que logo teria que ir. E antes das cinco.


O cara da rádio no andar de cima nunca me deixou esquecer das horas. Uma empolgação ridícula. Ninguém que vai ficar sentado o dia todo e falando sem parar poderia estar tão feliz com as horas que não passam. Uma vez eu acho que ele arrotou na hora de dizer "Meio dia". Aposto que a barriga dele nem cabe debaixo da mesa.


Antes das cinco. Fiquei irritado. Queria ter dinheiro pra comprar logo seis maços e assim poderia só sair de casa daqui quatro dias. Seriam quatro dias com a padaria em plano de fundo nos meus pensamentos; mostrando o plano que eu iria ignorar intencionalmente para depois sentir como se fosse tudo um incômodo de surpresa. Quem sabe eu não lembrava de arrumar chinelos novos? E lixar meus pés, cortar o cabelo, trocar as moedas no posto do lado, no horário que trabalha o velho educado... Convidar algum amigo pra comer ao menos um pão dos dez que eu sempre compro. Um amigo que eu não tivesse vergonha de mostrar a casa bagunçada, no estilo "caverna de homem." Só que a caverna era a quitinete inteira.


De qualquer jeito, eu não tinha mais do que as moedas para os pães e as notas para os cigarros. Só três maços.


Parei de pensar em frente ao espelho e fui antes que eu começasse a procurar os ângulos que o meu cabelo fica ridículo. Bagunçado ou não. Seco ou molhado.


Eu estava na beira da pista, aguentando o sol de quatro horas que era o sol de duas horas no inferno. Olhava para o chão tentando poupar minha vista e me irritava outra vez com os chinelos. Será que eu tinha virado uma daquelas pessoas que eu mais detestava quando era criança? Tipo um sujeito deprimente da minha infância que se arrastava pela vida e, eu percebia de longe. Eu era criança e achava tudo lindo. Até encontrar aquele sujeito na saída da escola. O desgraçado passou por mim com os pés descalços e disse: "Eu já estudei aí." E daí? O que ele quis dizer? Foi uma maldição?

Eu era ele no passado e agora eu sou ele no futuro? Será que as pessoas que passam de carro na rua que me separa da padaria me acham deprimente? E se tivesse uma criança no banco de trás que achasse tudo lindo... Até quase quebrar o pescoço me encarando quando o carro passasse. Isso pode ter acontecido e eu nem percebi. Minha aparência é asquerosa como se minha pele soubesse que eu desisti.


"Quantas pessoas tem que morrer pra prefeitura colocar uma caralha de uma passarela aqui?"

Apareceu a mesma velha de dois dias atrás e ela reclamou a mesma coisa enquanto esperava uma brecha para atravessar. Só que da outra vez, ela chamou o prefeito de "Filha de um puto!" Qual é o problema dessa mulher? Além do suor debaixo dos peitos.

"É."

Fiquei torcendo pra velha não responder nada. Isso era ainda pior do que deprimir uma criança com sua existência. Se a velha falasse comigo de igual pra igual, e aí? Eu podia ser tão ruim quanto ou pior do que ela. Se ela se achasse inferior, não ia falar comigo daquele jeito porco.

Não. Comigo, a velha ficava a vontade.

A porca olhou para meus chinelos na hora que ia responder ao meu "É". Aí, ela respirou fundo e fez um barulho de escarro. Eu pensei que ela fritar o catarro no asfalto e depois finalmente dizer alguma coisa. Ela não disse nada! Só olhou para meus chinelos outra vez. Será que ela reparou no meu calcanhar também? A mulher desistiu de falar porque parecia que ela achava que não valia a pena falar comigo? Sem dúvida, ela estava me julgando por alguma coisa e desistiu de falar. A velha peituda não tirava os olhos dos meus chinelos escrotos.


Eu corri. Tinha acabado de passar um ônibus na pista do meu lado, no sentido contrário da outra. Eu corri naquela hora. Foi fácil calcular a distância da picape que vinha do outro lado, mesmo depois que o ônibus cobriu a visão da picape. Eu disparei. As moedas gritaram no meu bolso e eu quase fiquei pelado no meio da rua. Tive que segurar o bolso na hora de disparar na frente da picape. Melhor do que ficar do lado daquela mulher com os olhos apertados.

O susto que eu levei quando a picape frenou, foi tão grande que algumas pessoas que estavam na padaria olharam pra mim como se olha para um morto. O estouro veio logo depois. Não teve grito nem nada. Só o estouro e depois o som de um coco rachando no asfalto.

Alguém me perguntou se eu conhecia a velha. A mulher do balcão perguntou se eu queria ligar pra alguém, beber um copo de água e sentar. Eu disse que não. Não pra tudo. Ela veio atrás de mim porque quis. Cada um sabe o jeito que atravessa a rua.

O povo saiu não sei de onde para se juntar ao redor do corpo. Só a parte que o sangue descia pelo asfalto ficou livre de curiosos. Todo mundo estava pendurado no celular. Será que era feio pedir logo meu pão e cigarro e voltar pra casa? Ia ser mole atravessar de volta com aquele trânsito parado.



Acabei chegando em casa só depois das cinco. Fiquei lá mostrando que estava em pânico. Claro que eu estava. Mas, também queria ter saído logo. E só fiquei porque, com aquela confusão, ninguém ia reparar nos meus chinelos e no meu cabelo e no meu calcanhar. Na hora de pagar, e joguei as moedas sobre o balcão sem vergonha do barulho. Sem ficar puto com a lerdeza da retardada pra contar. Comprava com moedas sim, mas pelo menos estava vivo. Eu era o sobrevivente do dia. E meu rosto acabado era por causa do trauma e não por causa da minha vida.


No caminho de volta, eu fiquei lembrando do rosto das testemunhas. Seus comentários. Eu sou bom com rostos. Sei quem vai pra padaria naquele horário. Ninguém fala com ninguém. Só reparam, julgam e passam. Do jeito que faziam comigo e, se eu fazia com aquela velha, os outros também. Ou só olhavam e não davam nada por ela. Como na tarde que ela ficou sem quinze centavos pra inteirar manteiga e a retardada do caixa deixou a velha ir embora de mãos vazias. Se eu não tivesse com as minhas moedas contadas, quem sabe?


Voltei pra casa sem saber se me arrependia ou não de ter espiado o corpo da velha. Foram três segundos; no terceiro, eu já não suportava. A calcinha preta estava à mostra, pra fora do vestido florido. Seu corpo velho era horrível. E a morte foi escrota porque a deixou naquela situação humilhante como brinde pela tragédia. Era como dizer que sua vida não valia um desfecho de romance. Nem valia nada.


Voltei pra casa com os cigarros e os pães. E a morte na minha cabeça.


Eu não precisava daquele contato tão próximo com a morte em um momento tão inesperado, quando todas as minhas preocupações estavam concentradas nos chinelos e nas moedas. Eu já pensava sempre na morte sem passar por aquilo. Eu já entendia que a morte estava escondida em todos os lugares, que ninguém tem como fugir dela.


A morte é o ventilador de teto que balança demais na velocidade máxima; o portão quebrado do vizinho com os cachorros bravos; a árvore da minha rua que está tão alta quanto um pára-raios; o cinto de segurança que não encaixa; o copo que deixaram na mureta da varanda do décimo andar; a gambiarra do chuveiro; o ponto de tráfico na esquina da escola; o bêbado que confunde qualquer um com seu maior inimigo; a onda inesperada; o remédio equivocado; o buraco na calçada; a cortina perto do fogão e tudo mais que se mistura com a vida de todo mundo.



Dois dias depois, eu parecia outra pessoa. Cortei o cabelo, coloquei calças jeans para usar o tênis ao invés do chinelo e nem precisei me preocupar com o calcanhar. Troquei as moedas por uma nota de dois reais com o velho simpático do posto, não com os outros frentistas nojentos que tem olhar de manicure fofoqueira. Depois do atropelamento, eu passei a resolver os pequenos problemas que sempre adiavam e torturavam minhas saídas de casa. Não que tenha surgido uma motivação para valorizar minha vida, depois de experimentar a morte ao meu lado, me cumprimentando e dizendo "Te pego em algum lugar." Eu passei a me preparar para a minha tragédia particular.


Passei a usar cuecas, pentear o cabelo e sorrir para os idiotas na rua. E, se eu tiver que morrer tão inesperadamente, que as pessoas também lamentassem, do jeito que fizeram com a velha.


"_Ele era um rapaz tão tímido e meigo. Sempre prestativo, comprava pão para sua família na mesma padaria sempre. Alguém conhece a família dele? Só estava na hora errada, no lugar errado."

"E tinha uma bela cueca."

16 октября 2022 г. 16:32 2 Отчет Добавить 2
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Caio Vinícius Sigo buscando um espaço para dividir meus mundos. Seja bem vindo ✍️

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Wesley Deniel Wesley Deniel
Muito bom ! Amo essa pegada Bukowski. Me passou uma vibe de "O Grande Lebowski" também. Cru, divertido, cínico e ácido. No terror, quem manda umas histórias assim é Clive Barker e na vida marginal é Irvine Welsh. Portanto, gostei pra caramba de sua história ! Parabéns, companheiro ! Muito sucesso ! 🙂

  • Caio Vinícius Caio Vinícius
    Po, com essas comparações ganhei meu dia .. vou pesquisar mais sobre eles. Valeu😜 October 19, 2022, 10:36
~

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