karimy Karimy Lubarino

Cento e vinte e três anos tinham se passado desde a primeira Iniciação. Através dessa cerimônia, as crianças nascidas no Brasil eram testadas para ver se eram dignas o suficiente para se tornarem cidadãs brasileiras. Entre esses Canarinhos estava Cátia, uma garota sonhadora e amante da pátria, que faria de tudo para estar entre os escolhidos... Ao menos era assim que ela pensava antes de perceber a verdade.


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#distopiabr #distopia #brasil #futuro #futurístico
Короткий рассказ
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Gaiola Invisível

Notas Iniciais:

Olá, pessoas! Tudo certo?

Eu tava simplesmente doida pra participar do desafio #DistopiaBr e já estava ficando com medo de não conseguir, porque a ideia não surgia de jeito nenhum! Imaginem o desespero da criança! Porééééémmm surgiu a ideia de escrever esta história e, apesar de ela não ter ficado como eu realmente queria, fiquei muito feliz por ter ao menos conseguido produzir algo para participar.

Eu espero que vocês gostem da leitura.

Beijos!

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Cátia fechou os olhos e respirou fundo. O dormitório feminino costumava ser barulhento depois do almoço, no entanto, naquele dia, todas as Canarinhos estavam tensas com os resultados dos testes finais aplicados no dia anterior, e não era diferente com ela; afinal de contas, havia ficado sete dias naquele lugar, estudando dia e noite, assistindo a palestras e compreendendo melhor como sua vida mudaria quando a Iniciação estivesse completa. Compreendendo o que aconteceria se fosse considerada uma Desigual e não passasse nos testes.

Está tudo bem, pensou consigo mesma, Vai ficar tudo bem. Levantou-se da sua cama de beliche, apoiou os braços cruzados na cama de cima e sorriu, olhando para a amiga que fizera no primeiro dia em que chegara ali — a melhor amiga que encontrara em toda sua vida.

— Vamos embora, Marcinha. Até quando vai ficar escrevendo nesse diário?

Márcia estava mordendo a língua, concentrada, mas fechou o diário com um baque e jogou as pernas para fora da cama, balançando-as ao lado de Cátia. As duas garotas eram completamente diferentes uma da outra: Cátia era negra, com cabelos cacheados e cheios batendo nos ombros, olhos pretos grandes e intensos, e quase um metro e oitenta de altura, enquanto Márcia era loira, os cabelos finos e ralos descendo até a cintura, os olhos azuis e estreitos, e apenas um metro e meio. Ela havia se mudado de Carlos Chagas com os pais havia menos de um mês.

— Como acha que vai ser a cerimônia de encerramento? — perguntou Márcia, o sotaque mineiro forte. — Lá onde eu morava todos os encerramentos eram diferentes. Aqui é assim também ou tem algum padrão?

— Pelo que pesquisei, todos são diferentes, em todos os lugares do Brasil. Agora, desce logo daí e vamos pra sala de reuniões. Quase todo mundo já foi.

Cátia pegou a bolsa que estava jogada em sua cama e a colocou nos ombros. No dormitório, além delas, havia apenas mais três Canarinhos, e uma ainda vestia apressadamente o uniforme composto por blusa social amarela, saia drapeada azul, meião e tênis brancos. Márcia pegou as coisas dela e desceu da cama com um pulo, e as duas se puseram para fora do local.

Apesar de estar tentando aparentar calma, as mãos de Cátia suavam sem parar, não importava o quanto as limpasse na saia. Havia crescido esperando ansiosa por aquele momento, sonhava e até brincava com as outras garotas da rua, imaginando como seria fazer quinze anos e passar pelo processo de Iniciação, se tornar uma Canarinho, fazer os testes e então virar um membro vital para a sociedade.

Na interseção que havia entre a sala de cinema e a sala de reuniões, um grupo imenso de garotos vestidos com calça azul, blusa amarela e tênis branco surgiu. Elas se apressaram, pois não queriam acabar sendo empurradas no meio deles.

Havia três grupos de fileiras de cadeiras separadas por corredores e, à frente, um palco em mármore branco. O grupo de cadeiras da direita era das meninas, o da esquerda era dos meninos e no meio era onde os orientadores e os pais se sentavam. Antes de ocupar um lugar ao lado de Márcia, Cátia procurou pelos pais no meio da pequena multidão, porém não conseguiu encontrá-los.

O burburinho de conversas lembrou a ela os dias de apresentação de teatro da escola; até mesmo o jeito como as pessoas se encaravam, parecendo querer esconder o nervosismo, ajudava a trazer à tona essa impressão. A diferença era que, nos dias de teatro, as pessoas ficavam nervosas por vergonha, por medo de passar algum vexame ou coisa do tipo, enquanto ali elas ficavam com medo de não ter conseguido alcançar pontuação suficiente nos testes para serem consideradas cidadãs brasileiras e terem que ir viver nos Campos de Correção.

— Olá. Testando — começou a prefeita Joana, uma mulher alta, rechonchuda e muito elegante, no palco. — Um, dois... Ah, ótimo.

Ela analisou alguma coisa em seu tablet. Enquanto fazia isso, os adultos da fileira do meio ficaram em silêncio absoluto. Seguindo o exemplo deles, muitos dos jovens Canarinhos também se calaram à espera do início da reunião.

— Silêncio, por favor — pediu a mulher, para quem ainda falava. — Obrigada. Daremos início à centésima vigésima terceira Iniciação do município da Serra, no Estado do Espírito Santo.

Aplausos se ergueram do meio do salão, espalhando-se por todo o local. A prefeita sorriu, a satisfação mais do que clara em seu rosto. Nesse mesmo momento, percebeu Cátia, todas as portas de saída foram fechadas e seguranças armados com teasers se prostraram diante delas. Alguém baixou as luzes, a sala mergulhou em silêncio aos poucos, e uma imagem surgiu na parede atrás de Joana — uma cena catastrófica, com homens e mulheres se atrofiando enquanto focos de incêndio podiam ser vistos mais ao fundo.

— Há cento e vinte e nove anos atrás, nossa nação conheceu o verdadeiro caos — começou Joana, a voz agora tão profunda que foi capaz de arrepiar Cátia. — A fome e a miséria se alastraram pelo país por causa de uma administração frouxa e corrupta. — Ela se virou de lado, dando espaço para que todos vissem com maior propriedade a nova imagem que surgiu na parede.

Um grupo de seis crianças posava sorrindo para a foto. Eles se encontravam em uma rua suja, com uma casa em ruínas atrás deles. Nas mãos mirradas tinham armas; o mais alto de todos e que se encontrava no meio mostrava uma arma de fogo, enquanto os demais tinham facas e facões. O menor deles devia ter cerca de três anos, mas os olhos já demonstravam esperteza e malícia que Cátia dificilmente encontrava em alguém, mas não eram essas as coisas que mais chocavam na imagem. Não. O que mais chocava era a magreza das crianças, os ossos salientes, a visão da barriga funda, das covas nas bochechas, da sombra abaixo dos olhos fundos — pareciam mortos-vivos.

— Inevitavelmente, levantes começaram por todo país — continuou a prefeita, e uma outra imagem surgiu, mostrando uma multidão aglomerada em frente ao antigo Palácio Anchieta.

As pessoas da foto carregavam cartazes com pedidos de impeachment, com insultos destinados ao prefeito do Estado e toda uma sorte de coisas que Cátia não conseguiu entender. Entretanto, ela não precisava ler cada cartaz da fotografia para saber o que acontecia ali: uma das primeiras manifestações do povo contra a gestão da época.

As primeiras manifestações foram pacíficas na maior parte do Brasil, no entanto as coisas foram mudando de figura com o passar do tempo, com o aumento da fome. Aqueles governantes deviam achar que, se enfraquecessem os brasileiros, acabariam de vez com a vontade deles de lutar, mas estavam muito errados.

A situação foi se tornando insustentável até que focos de guerra civil se espalharam pelo país. Como o Brasil sempre foi uma nação grande, a guerra demorou bastante para chegar em alguns Estados, ainda assim, cerca de um ano e meio depois das primeiras manifestações, a nação inteira lutava. Até que um dia o noticiário informou a morte do presidente.

Até então os livros não chegavam a um acordo sobre o que havia de fato acontecido; se ele havia se matado ao perceber o avanço das tropas populares ou se havia sido assassinado. Meses depois, uma nova eleição aconteceu e o Brasil jamais seria o mesmo.

Enquanto a prefeita continuava o seu discurso, explicando sobre o avanço da guerra, Cátia esticou o pescoço para frente, tentando encontrar seus pais mais uma vez. Suspirou, trêmula de alívio, ao avistar os cabelos cheios da mãe. Só de vê-la de longe já se sentia melhor, a pressão da Iniciação se dissipando. Seus pais eram o maior exemplo e motivo de Cátia acreditar tanto no Sistema e querer tanto obter boas notas nos testes. Eles eram o exemplo de que o Brasil era o melhor lugar do mundo para se nascer e se viver.

— Foi depois de todo esse caos que Roberta Camargo foi eleita.

O rosto de Cátia se iluminou ao ver a foto da presidente que mudou o país surgir na parede. Roberta usava os cabelos em um coque apertado, estava vestida com terno e gravata, as duas mãos pousadas solenemente no peito, o olhar perdido no que Cátia imaginava ser o futuro que ela via para a nação.

Aquela mulher havia transformado o país em quatro anos. Os livros relatavam as mudanças como a transformação mais árdua e mais rápida de todos os tempos, mas ela não trabalhou sozinha para que o Brasil se tornasse uma potência mundial logo após um período de tanta destruição: Andreia Gonzada, esposa dela e engenheira robótica, foi essencial para o que o país havia se tornado.

— Nem todo mundo compreendia as mudanças que estavam sendo feitas — continuava Joana. — Algumas pessoas acusaram a presidente de autoritarismo e tentaram derrubá-la inúmeras vezes do poder, mas ela resistiu e persistiu, até que, no último ano do primeiro mandato, ela apresentou ao país os Chips Telepáticos.

A imagem de uma propaganda da época surgiu na tela: três pessoas bem-vestidas olhando com confiança para o horizonte, as mãos pousadas com louvor nos peitos estufados; atrás delas, a bandeira do Brasil tremulava e, na frente de tudo, a frase que estava gravada até hoje nos corações dos brasileiros: Interligados pelo crescimento da nação.

No começo, os Chips Telepáticos foram aplicados apenas em uma pequena parcela da população, mas, depois de dois anos, com a presidenta Roberta já em seu segundo mandato e após uma árdua votação popular, foi aprovada a aplicação generalizada do Chip em pessoas acima de quinze anos. No mesmo ano, os chamados Campos de Correção foram feitos para aqueles que não se adaptaram à nova sociedade e para aqueles que não aceitaram os Chips.

Para que tudo isso desse certo, o país também precisou mudar drasticamente a política de imigração. Apesar disso, o Brasil continuava sendo um lugar acolhedor: aceitava todos aqueles que se dispunham a passar pelos testes, desde que eles assinassem a clausura de cidadania, que era bem clara ao explicar que, se os resultados não fossem alcançados, eles seriam considerados Desiguais e passariam o resto da vida em Campos de Correção, no entanto, se passassem, viveriam como cidadãos plenos da nação.

— E hoje estamos aqui para celebrar a Iniciação. A partir de hoje, pais e mães, os filhos de vocês serão listados oficialmente como cidadãos brasileiros — avisou a prefeita, e uma salva de palmas correu pelo salão e depois de alguns segundos se extinguiu. — No entanto, como todos sabem, aplicamos testes ao final da Iniciação e nem sempre todos os Canarinhos alcançam a pontuação necessária para o recebimento do Chip.

Algumas pessoas começaram a cochichar nesse momento, e Cátia sentiu seu coração bater mais rápido. A prefeita deu um tempo para que todos se acalmassem, bebendo um gole d’água levada por uma assistente de vestido amarelo-ouro com florezinhas azuis.

— Muito bem — continuou a prefeita. As luzes se acenderam. — Direi os nomes dos Desiguais agora. Se ouvir o seu nome, fique de pé, e um assistente irá te buscar e te orientar.

“Sei que essa é uma etapa soturna e assustadora para todos os Canarinhos, mas também sei que vocês compreendem a importância de separar o joio do trigo. Precisamos lavar todas as impurezas da nossa sociedade para que ela funcione como deve, e mesmo os Desiguais entendem isso.”

Quatro pessoas subiram ao palco com sorrisos gentis no rosto. Cátia viu que dois deles foram instrutores das Canarinhos meninas e imaginou que os outros dois haviam trabalhado com os meninos.

— De pé, por favor, Vitor Firmino de Andrade.

Um alto soluço ecoou pelo salão, vindo da ala das cadeiras dos Canarinhos. Um rapaz branco e magro se ergueu de uma das fileiras do meio, o corpo meio encurvado, lágrimas escorrendo pelas bochechas. Imediatamente, um dos instrutores desceu do palco e foi até ele, pegando-o pelo braço e praticamente o arrastando por uma das portas, logo após o guarda abrir passagem para os dois.

— De pé, por favor, Juliana Machado da Silva.

— Não entendo. Como alguém reprova em testes psicológicos? — cochichou uma menina da frente.

Cátia teve vontade de cutucá-la e repreendê-la. Sim, a grande maioria dos testes eram psicológicos e outro era genético, para testar a possibilidade de doenças crônicas — apesar de havia muito não existia eliminação por causa disso. Eram raríssimos os anos em que não havia um reprovado por causa dos testes psicológicos e Cátia achava até mesmo difícil entender como funcionava a classificação; os testes davam medo justamente por parecerem muito subjetivos. Julgar mal quem não passava não era certo, pelo menos pensava assim.

— De pé, por favor, Ângela Souza Pereira... De pé, por favor, Márcia Augusta Costa Lima.

O coração de Cátia parou.

— Não! — murmurou Marcinha, incrédula.

Cátia virou para o lado, onde a amiga sentava, os olhos perdidos rolando para todos os lados, como se tentasse compreender o que acontecia. A garota, trêmula e ofegante, se ergueu da cadeira com dificuldade. Por mais que Cátia quisesse dizer algo para a amiga, continuou calada, sem saber como agir naquela situação.

— Por favor — balbuciou Márcia. — Por favor!

Contudo, uma instrutora se materializou ao lado dela e a pegou pelo braço. A mulher disse algo no ouvido de Márcia, que assentiu, atônita, e foram em direção a uma das portas, desaparecendo em seguida.

Cátia olhou para as fileiras de cadeiras no meio do salão, tentando identificar os pais de Márcia, no entanto todos os adultos, apesar de estarem sérios demais, permaneciam quietos encarando a prefeita no palco, como se nada tivesse acontecido.

É pelo bem da nação, pensou Cátia. É pelo bem...

A reunião continuou e, depois de um tempo, uma das enfermeiras que participaria da aplicação do chip no dia seguinte subiu ao palco para explicar como seria o procedimento. Cátia sabia que deveria estar prestando atenção, que aquilo era importante, mas não conseguia parar de pensar em Márcia. A única pessoa que jamais imaginou que não conseguiria passar nos testes era ela, pois sua amiga certamente era uma das pessoas mais inteligentes e criativas que já conhecera.

Ela queria ser escritora, lembrou-se, o coração triste.

Quando o hino nacional começou, marcando o fim oficial da reunião e da Iniciação, todos de pé com as duas mãos no peito, Cátia tentou afastar Márcia de sua mente, mesmo sabendo que não conseguiria realmente fazer isso. Tentou se focar no fato de que agora poderia enfim voltar para sua casa; havia entrado naquele local sozinha e como uma Canarinho e o deixaria ao lado de pais orgulhosos e como uma cidadã brasileira.

Todos aplaudiram ao fim do hino e algumas pessoas que se tornaram amigas durante a Iniciação se abraçaram. Cátia olhou de relance para o banco vazio à sua esquerda, o coração apertado, engoliu em seco e foi à procura dos pais, tentando ao máximo não pensar sobre os pais de Márcia.

— Parabéns, Cátia! — desejou Gustavo, o pai dela, que era pelo menos um palmo mais baixo do que a mãe. — Sabíamos que conseguiria.

— Minha menininha — disse a mãe, Júlia.

— Aposto que não suportavam mais a saudades — brincou Cátia.

— Não só a gente. O Anderson está esperando lá fora.

Cátia gelou ao ouvir isso da mãe. Anderson e ela estavam em um momento complicado do relacionamento, mas ela ainda tentava entender de fato o que estava acontecendo. Sabia que podia contar absolutamente tudo para os pais: fora ensinada, assim como a maioria das crianças brasileiras, que a honestidade abria portas para a felicidade, mas ainda assim queria aproveitar as últimas horas de privacidade que teria.

Caminharam conversando sobre os testes e as palestras ministradas durante a Iniciação. O estacionamento no subterrâneo estava apinhado de gente, mas ainda assim ela avistou Anderson sem muita dificuldade, apoiado com os braços cruzados no carro dos pais dela.

Anderson faria o aniversário de quinze anos apenas no final do ano, no meio de novembro — ela era quatro meses mais velha do que ele — e por isso só se tornaria um Canarinho no ano que viria. Ela pensou que ele devia estar cheio de dúvidas sobre a Iniciação e imaginou que talvez conversar sobre isso pudesse os aproximar de novo.

Os dois se abraçaram.

— Como foi a Iniciação? — perguntou ele, um pouco hesitante.

— Bom, estou aqui, não estou? — E abriu um sorriso para ele.

— Vamos para casa, meninos — chamou Gustavo.

Os dois se sentaram de mãos dadas no banco de trás. Anderson tinha a mesma altura que Cátia, mas parecia pelo menos um ano mais velho do que ela, com um ar de sabichão que ela adorava, no entanto naquele dia havia algo de estranho na expressão dele, algo que o fazia parecer uma criança assustada.

— Vamos pra praia depois do almoço? — perguntou ele.

— Não esqueçam o protetor solar de novo, por favor — ralhou Júlia. — O que a mãe do Anderson vai pensar de nós se ele chegar lá parecendo um camarão outra vez?

Cátia riu. Ainda não conhecia a mãe de Anderson, apesar de estarem juntos havia mais de sete meses — pelo que ela sabia, ele não se dava muito bem com a mãe, e o pai falecera quando ele ainda era uma criança —, mas não se incomodava muito com isso.

A casa estava toda arrumada e enfeitada com papel crepom com as cores da bandeira do Brasil e uma faixa imensa pendurada na parede da cozinha que dizia PARABÉNS, CÁTIA!

Eles comeram churrasco feito na churrasqueira elétrica, feijão tropeiro, arroz a grega e vinagrete. A sobremesa foi o doce preferido de Cátia: o muxá capixaba, que ela comeu até se sentir estufada a ponto de explodir. Para fugir das louças que estavam na pia, chamou Anderson para ir na praia logo depois de terminar a sobremesa.

Ela morava em Carapebus e o balneário ficava a vinte minutos de bicicleta da sua casa. Como Anderson tinha ido de ônibus, ela deixou que ele guiasse a bicicleta com ela sentada no quadro, os ombros encurvados para frente e as pernas cruzadas para não o atrapalhar a pedalar.

Durante o trajeto, ela tentava se lembrar a letra de uma música nova que havia ouvido antes do período da Iniciação começar. A bem da verdade, ela estava tentando de tudo para não se recordar do olhar apavorado de Márcia ao descobrir que havia sido reprovada e iria para um Campo de Correção.

Fazia quase um mês que o relacionamento de Cátia e Anderson estava meio estranho. Eles brigavam por besteiras e ele estava sempre ocupado demais para conversar com ela como antes. Às vezes, chegava a pensar que ele poderia estar pensando em terminar, mas não entendia bem o porquê: normalmente, se davam muito bem um com o outro, tinham gostos parecidos, eram amigos e companheiros... tinham tudo para ser o par perfeito! Mesmo assim, ela sentia a tensão que irradiava dele, como se ele estivesse fazendo todo um esforço especial para que não brigassem naquele dia, e ela sequer conseguia pensar em um motivo que o deixasse com vontade de discutir!

Não havia muita gente na praia, até porque era o dia de encerramento da Iniciação e a maioria das pessoas estava em casa, parabenizando os filhos, sobrinhos e netos que haviam se tornado enfim membros efetivos da sociedade. O sol não estava tão quente como de costume e um vento forte e cheio de maresia soprava os cabelos cheios de Cátia para trás.

Eles deixaram a bicicleta jogada na areia da praia, perto dos matinhos que a ligavam ao meio fio. Cátia ainda vestia o uniforme de Canarinho, porém agora estava sem as meias e de chinelos. Eles caminharam até a beira da água, molharam os pés e se sentaram ali, as marolas batendo nas canelas deles e recuando de volta ao mar.

— Amanhã então — sussurrou ele. Estava com um pedaço de folha de mangueira nas mãos, observando-a como se fosse a coisa mais interessante do mundo.

— Você vai comigo?

Ele fez que não.

— Por quê? É perto e nem vai demorar muito. Além do mais, amanhã é domingo.

Ele não disse nada. Em vez disso, olhou para frente enquanto picotava a folha que estava segurando. É agora, pensou Cátia. Ele vai terminar comigo. Até porque ele costumava não fazer nada de especial aos domingos, então o que custava ir com ela na Cerimônia de Implantação?

— Você vai achar um absurdo o que eu vou dizer agora — disse ele, e a encarou com profundidade —, mas eu não queria que você fosse amanhã.

Ela prendeu a respiração, a frase se repetindo na mente enquanto tentava desvendar o que ela de fato significava.

— Como assim, Anderson?

Uma onda maior e mais forte veio com tudo em direção a eles, carregando areia e molhando a saia azul de Cátia. Ela estremeceu de leve por causa da água gélida, mas não desviou o olhar do namorado.

— Eu preciso ir. Se eu não comparecer amanhã, vou ter meu nome retirado do Sistema e vou ser considerada uma Desigual. Você sabe disso.

Ele balançou a cabeça em uma negativa.

— E é isso o que você quer? Colocar um chip na cabeça?

— Do que você tá falando? — Agora, ela começava a ficar assustada. — Não é como se fosse doer ou coisa assim. Eles aplicam anestesia, sabia? O procedimento não dura nem cinco minutos.

— E aí você se torna uma zumbi para sempre. E aí eu perco você para sempre.

Ela franziu a testa, tentando entender onde ele estava querendo chegar, mas só conseguiu encontrar uma saída para aquelas besteiras que saíam da boca dele: Anderson devia estar se sentindo intimidado pelo Chip Telepático, com medo de que ela o largasse. Afinal de contas, após implantar o Chip, encontrar um parceiro para toda vida se tornava extremamente fácil: você tinha acesso a tudo na mente das pessoas ao seu redor, portanto encontrar alguém compatível com você era bastante simples. Ele devia estar com medo de que ela se apaixonasse por alguma mente interessante... Agora, as coisas faziam muito mais sentido olhando-as desse ângulo. Percebeu que as brigas entre os dois começaram justamente no dia em que a Iniciação fora anunciada na televisão e nas redes sociais.

— Eu não vou deixar de gostar de você de uma hora pra outra, se é o que está pensando. — Sentiu o rosto arder, encabulada. — Além do mais, ano que vem você também vai ser um Canarinho.

— Não. Eu não vou participar.

— Você está ficando doido ou algo do tipo? Sabia que, só de falar uma coisa dessas, já corre o risco de ser mandado pra um Campo de Correção e pode até perder o direito de fazer os testes?

— Campo de Correção? — Riu ele com amargura. — Você já viu um Campo de Correção? Seus pais já viram um? — Ele sacudiu a cabeça e murmurou quase inaudível: — Esse nome é uma piada.

Ela hesitou por um instante. Não era dessa forma que as coisas funcionavam, não dava para simplesmente ir visitar um Campo de Correção, mas ela já vira propagandas nas redes sociais, já vira fotos e filmagens das instalações: eram bons lugares para pessoas Desiguais aprenderem o valor de uma sociedade unida. Lá eles aprendiam a plantar, a colher, a trabalhar em grupo. Lá, eles conseguiam entender como era importante a conexão imposta pelos Chips Telepáticos, apesar de não receberem um. Não entendia o porquê dele estar caçoando daquilo.

— Anderson — murmurou ela —, eu vou fingir que não ouvi nada disso, pelo seu próprio bem.

— Você nunca vai acordar, não é?... O meu pai costumava trabalhar pro governo.

Aquilo a pegou desprevenida. De certa forma, todos os cidadãos brasileiros trabalhavam para o governo, mas, quando alguém dizia trabalhar efetivamente para o governo, isso costumava significar um cargo próximo aos governantes. E também tinha o fato de que Anderson nunca dissera nada sobre o pai além de que ele morreu havia muitos anos.

— Ele era o encarregado de um dos Campos de Correção. — Ele baixou a cabeça, a testa franzida. — Mas uma rebelião estourou no Campo e ele acabou sendo morto.

— Ah, não me venha com essas coisas absurdas! — Ela se ergueu, batendo a mão na bunda para tirar um pouco da areia que grudara na saia. — Isso que você está fazendo é muito ridículo. Não sabia que era um mentiroso tão idiota!

— Não é mentira, Cátia! Será possível que você não consegue enxergar o quanto todo mundo nessa merda de país é infeliz?

Ela prendeu a respiração. Ele estava delirando, só podia! Os índices diziam que a taxa de felicidade era imensa no Brasil. Era o único país onde não havia fome, onde não havia analfabetos, onde as pessoas podiam trabalhar no emprego que queriam. Até os índices de divórcio eram os mais baixos do mundo todo! O que ele dizia era blasfêmia pura contra todo um povo. E aquela coisa de rebelião... até onde sabia, nunca houve nada parecido com isso em um Campo de Correção.

Ainda assim, Cátia sentia que não podia sair dali antes de tentar colocar algum juízo na cabeça dele. Amava-o e doía pensar que ele poderia ser excluído da sociedade, esterilizado e ter de viver uma vida medíocre dentro de um Campo de Correção por dizer bobagens como aquelas.

— Eu não sei de onde você tirou isso — começou ela, e tornou a se sentar do lado dele, com mais cautela agora —, mas não é verdade. Os meus pais são felizes, os meus vizinhos são felizes...

— Cátia, por favor, presta atenção. — Ele pegou as mãos dela entre as dele com firmeza. — Vai me dizer que nunca percebeu como as pessoas que colocam o Chip ficam diferentes? Como elas de repente parecem ter sido abduzidas de seus corpos e substituídas por uma consciência parecida, mas robotizada.

— Mas é claro que elas ficam diferentes! Elas têm acesso a toda sabedoria e informação presente na mente de cada cidadão brasileiro. Como não ficar diferente depois de descobrir tantas coisas de uma só vez?

Ele fez que não, o rosto triste.

— Eu já estive em um Campo de Correção — sussurrou ele, e ela prendeu a respiração.

— Como? Civis não podem entrar lá, ainda mais você, que sequer é um cidadão ainda.

— Você está enganada. — Havia pesar no rosto dele. — Eu já fiz parte da sociedade e não faz muito tempo...

— Do que você está falando?

— Se você não quiser entender o que está bem na sua frente, não há nada que eu possa fazer, e eu não vou insistir. Eu só peço que considere tudo o que vou te falar, que pense fora da caixa pelo menos uma vez na vida.

A cabeça de Cátia pareceu girar e tinha certeza de que teria caído se já não estivesse sentada. Se o que ele estava falando era verdade mesmo, então Anderson não apenas aparentava ter mais do que catorze anos, ele tinha mais do que isso, provavelmente era até mais velho do que ela.

— Qual a sua idade? — perguntou ela.

— Dezessete. Fiz dezessete no mês passado.

Apressada, ela correu os dedos pela nuca dele, procurando pela pequena cicatriz que todo cidadão tinha por causa da implantação do Chip. Se ele tinha dezessete anos e estava ali, isso significava que Anderson já era interligado... mas, ao mesmo tempo, isso não faria sentido, pois seus pais teriam conseguido ouvir os pensamentos dele e saberiam que ele era um cidadão efetivo.

Um grito surdo escapou dos lábios dela quando ela sentiu uma cicatriz circular sob os cabelos dele. No entanto, continuou a tatear, percebendo que aquela cicatriz era irregular e áspera, diferente das dos pais dela, que eram lisas e quase planas na pele.

— O quê?...

Ele puxou a mão dela dali.

— Alguns meses antes de conhecer você, retirei meu chip.

— O quê?!

Ela tentou se erguer, sentindo-se tonta e enjoada. Se descobrissem o que ele tinha feito... Se soubessem que eles se relacionavam... ela podia perder o direito à cidadania e ser enviada a um Campo.

— Calma! — pediu ele, e a puxou para perto de novo. — As coisas são mais complicadas do que parecem, Cátia. Se me deixar falar, vai ver que estou tentando salvar você?

Me salvar?

— Você acha que vai ser fácil assim? Que você vai colocar o Chip, se tornar uma das pessoas mais espertas do mundo por ter acesso ao conhecimento acumulado de toda uma nação e não vai pagar nada por isso?

— Mas é assim que as coisas são.

Ele fez que não.

— As pessoas sempre falam como é incrível ser um brasileiro, usar um Chip Telepático, poder dividir com todas as pessoas do país aquilo que pensa, que deseja, mas a verdade é que todo mundo é infeliz, mas sequer conseguem falar sobre isso. — Ele a apertou ainda mais nos braços. — Não é tão simples. Quem dera fosse! Ao colocar o Chip, Cátia, você perde completamente sua liberdade, perde seu individualismo, seu direito de escolha.

— Se isso é mesmo verdade, então por que ninguém fala sobre isso? Por que não existem pessoas reclamando sobre o Chip?

— Por que não dá pra reclamar! — ele gritou.

De repente, foi como se até as ondas da praia tivessem se acalmado e o vento cessado. Ela olhou para frente e percebeu que um casal havia se virado para os observar. Eles estavam longe demais, porém deviam ter ouvido o grito de Anderson e pareciam um pouco preocupados. Cátia tentou sorrir para eles.

— Não podemos reclamar — sussurrou ele. — O Chip nos impede de fazer isso. Ele mantém um tipo de controle sobre nós.

— E como você conseguiu tirar o Chip se isso é mesmo verdade?

— Bom, não foi muito fácil. E na verdade, eu tive o Chip arrancado de mim.

— Arrancado?

Ele anuiu.

— Um mês depois de ter passado pelo procedimento, eu já não aguentava mais. Estava à beira da loucura, Cátia. Era realmente incrível sequer precisar falar pra poder me comunicar com as pessoas ao meu lado, era impressionante como eu podia apenas pensar sobre um problema para dividir ele com toda a população brasileira e, em seguida, receber diversas soluções diferentes, vindas de mentes diferentes. Mas também era assustador não conseguir bloquear algumas coisas... Até os nossos sonhos ficam expostos, Cátia. Não temos um pingo de privacidade. E... nem tudo o que as outras pessoas pensam são coisas boas. Existem monstros dentro da nossa sociedade, o tempo todo pensando sobre coisas nojentas e terríveis.

Ele balançou a cabeça numa negativa, como se estivesse se lembrando de algo aterrador, e Cátia sentiu seu corpo amolecer. Nunca havia parado para pensar nas coisas daquela forma: sabia que, ao colocar o Chip, estaria interligada a cada mente de cada cidadão do país, mas não tinha considerado os lados ruins disso.

— Ah, meu deus — sussurrou ela, ao perceber que, ao passar pela última etapa da iniciação no dia seguinte, seus pais saberiam absolutamente tudo sobre ela e ela saberia absolutamente tudo sobre eles. Parecia algo óbvio, mas havia coisas que ela não tinha considerado.

Ela seria capaz de saber até sobre os desejos sexuais deles; e eles, os dela. E não era algo que podia ser desligado. Uma vez com o Chip, tudo o que se passava pela mente dela era compartilhado com outras pessoas.

— E a cacofonia de vozes... Isso é enlouquecedor — continuou ele. — Você não faz ideia.

— Então por que não existem mais pessoas como você, que tiram os chips?

Ele arregalou os olhos como se estivesse esperando por aquela pergunta.

— Mas existem. E em todos os lugares do Brasil, não apenas aqui no Espírito Santo.

— Não podemos reclamar — sussurrou ela, lembrando o que ele havia falado antes.

Realmente não se lembrava de ninguém que um dia tivesse reclamado de algo feito pelo governo. Nunca. Nem mesmo no ano passado, quando todas as atividades comerciais e empresariais foram paradas no país por quatro dias seguidos para que uma simulação de ataque à nação acontecesse. Tiveram que participar de treinamentos cansativos e idiotas o tempo inteiro. Cátia reclamava o tempo todo, mas seus pais nada diziam sobre aquilo e ela pensava que eles só a estavam ignorando para tentar dar um bom exemplo.

— Como arrancaram o seu Chip? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

— Eu me recusei a ir trabalhar em um dia. Fui ameaçado a ser enviado para um Campo de Correção... e foi aí que eu acabei descobrindo o que os Campos realmente são e o motivo de ninguém ter permissão para visitar um.

“Os Campos são lugares de trabalho forçado. Aqueles jovens que, ao fazerem os testes, acabarem sendo considerados especulativos demais são enviados para esses Campos pra que não causem problemas para a população. Apesar de o Chip ter um certo controle sobre nossas mentes e sobre aquilo que falamos ou não, ele não é capaz de controlar nossos corpos — não em um nível elevado, ao menos, pode apenas impedir que retiremos o chip por conta própria, como um sistema de defesa —, então o governo não quer pessoas que possam dar trabalho por perto.

“Nos Campos, você só é útil enquanto pode trabalhar, enquanto tem forças para isso... o que não te dá muitos anos pela frente.”

— O que quer dizer?

— Você acha mesmo que o governo vai desviar verbas da nação perfeita pra alimentar um bando de Desiguais deslocados?

— Mas... — Ela pensou sobre as propagandas que via nas redes sociais. Nelas os Desiguais estavam mesmo sempre trabalhando, no entanto carregavam um sorriso no rosto, pareciam bem alimentados, fortes e estavam sempre com roupas limpas e novas.

— Quando um Desigual fica fraco demais, é sacrificado para abrir espaço para os novos que virão no ano seguinte... ou no mesmo ano, considerando que sempre existem pessoas como eu, que se recusam a participar do teatro do governo.

“O negócio é que nem todo mundo tem a mesma sorte que eu tive: no dia que eu resolvi me rebelar e não fui trabalhar, uma pessoa bateu na porta da minha casa. Minha mãe estava no trabalho, então eu logo imaginei que era alguém chegando para me punir pela minha insubordinação.

“Mas quando eu abri a porta, um cara simplesmente me empurrou com força contra a parede e meteu a faca no meu Chip.”

— Isso é loucura, Anderson!

— Eu sei. Eu sei. Eu fiquei apavorado com aquilo. Mas acontece que o cara conhecia o meu pai de quando os dois trabalharam juntos em um dos Campos. Quando houve a rebelião, ele acabou batendo a cabeça muito forte e o chip dele foi esmagado.

“Ao se ver livre da coisa, ele percebeu que aquela seria a única oportunidade que ele teria para escapar do governo. Cátia, ele pensou que estaria sozinho, que precisaria fugir e se esconder no meio do mato, como um louco, mas acabou descobrindo um grupo de pessoas que era como ele, que tinha conseguido, de alguma forma, se livrar do Chip.

“Ao ficar sabendo que eu seria repreendido, através de um espião como eu sou agora, ele foi atrás de mim, para tentar me ajudar.”

— E você vive com essas pessoas?

Ele fez que sim.

Aquilo tudo era estranho e louco demais, mas ainda assim Cátia conseguia acreditar em algo como aquilo acontecendo. Por que nunca havia pensado sobre os lados ruins de ter um Chip Telepático? Por que nunca tinha parado para pensar sobre como todos os cidadãos pareciam sempre vidrados em tudo relacionado ao governo, como ovelhinhas seguindo seu pastor?

— Eu não posso simplesmente largar tudo e...

O que aconteceria com ela se deixasse tudo para trás? Se abrisse mão de sua cidadania, se abrisse mão do conforto do lar de seus pais? Sempre acreditou no Sistema, mas, agora, percebia que devia ter uma chama de incômodo dentro dela desde sempre se remexendo, do contrário não teria acreditado em Anderson tão facilmente. Ou era uma pessoa assim tão manipulável?

Aquela história estava deixando-a com medo e desorientada, mas ao mesmo tempo não conseguia pensar em nada para contestar tudo o que ele tinha dito. O Brasil sempre se disse ser um país igualitário, justo, honesto e, acima de tudo, livre, mas onde estava a liberdade em ter que compartilhar cada pensamento e sonho seu com todos os cidadãos do país? A verdade era que os Canarinhos estavam e sempre estiveram dentro de uma gaiola.

— Como eu sou burra! Como não vi nada disso antes?

Ele riu.

— Você acha que é assim tão fácil? — Ele a segurou pelos ombros e a fez olhar nos olhos dele. — Somos condicionados, desde criança, a pensar que não existe invenção melhor do que o Chip Telepático, que o nosso país é o melhor que há no mundo, que somos sortudos só por termos nascido aqui. Enxergar a verdade é mais difícil do que se possa parecer.

— A Cerimônia de Implantação é amanhã.

— Eu sei. — Ele se ergueu e a puxou com ele. — Eu sinto muito.

— Pelo quê?

— Eu devia ter falado sobre tudo isso com você antes, e eu até tentei, mas você estava tão feliz porque era seu ano como Canarinho... Eu acabei me acovardando por ter que tirar essa felicidade de você.

Ela franziu a testa. Ainda se sentia confusa demais, porém conseguia entender o ponto dele.

— Não adianta — sussurrou ela. — Não quero uma alegria falsa.

Ele a abraçou de forma acolhedora e calorosa, e agora milhões de outros questionamentos surgiam na mente dela. Se as pessoas com Chip Telepático não conseguiam reclamar sobre nada relativo ao governo, deveria ter muito mais coisas erradas acontecendo naquele país. Muito mais.

— Você sabe de mais coisas? — perguntou ela. — Tem mais histórias sobre isso para me falar?

Ele fez que sim, mas pareceu hesitante.

— Eu fiquei pouco tempo com o Chip, então sei mais sobre algumas coisas que foram compartilhadas comigo por pensamento. Mas na resistência existem pessoas que viveram por anos com o Chip e sabem sobre coisas realmente terríveis. Assassinatos, estupros, pedofilia, roubos... tantas coisas que são jogadas para debaixo do tapete para manter a fachada de país e população perfeita e o sistema funcionando, que você vai ficar abismada.

Ela pensou sobre aquilo com o coração acelerado.

— Meus pais? Precisamos ajudar os dois também!

Ele fez que não e a segurou quando ela fez menção de ir em direção à bicicleta. Havia uma expressão de tristeza no rosto dele agora, um pesar profundo que a fez recuar um passo.

— Não podemos simplesmente ir até eles assim.

— Por que não?

Ele deu de ombros.

— Por mais que grande parte das pessoas queiram, de fato, se livrar do Chip, muitas outras já se conformaram com esse estilo de vida e têm medo de mudar.

— Todos têm medo de mudanças — ela murmurou, lembrando que seu pai sempre dizia isso. — Mas eu não posso simplesmente...

— Você deve! Pelo próprio bem deles.

Alguma coisa dentro dela dizia que ele estava certo. Amava aos pais, mas eles sempre fizeram o tipo de pessoa conformista, dedicados ao Sistema, empenhados em vê-lo funcionar.

— O que vai acontecer se eu for com você? Se eu acreditar em você...?

Ele pareceu surpreso com a pergunta, mas respondeu com um brilho de esperança nos olhos:

— Vai ser difícil. Vamos passar por algumas dificuldades. E você nunca vai poder procurar por seus pais; eles podem ser bem-intencionados, mas, ao verem você, vão denunciar sua localização mentalmente, mesmo sem querer, e você pode ser mandada para um Campo de Correção. Ou se eles apoiam o Sistema realmente...

— Eles poderiam me denunciar de forma intencional.

Ele anuiu.

— Vamos ter que trabalhar juntos pra tentar alertar os mais novos.

— E os Campos? — perguntou ela, afoita ao se lembrar de Marcinha, que tinha sido reprovada nos testes. — Podemos ajudar as pessoas dos Campos?

Ele fez que sim.

— Nem sempre, mas, sim.

Então estava decidido. Não por que era ele que estava contando tudo aquilo para ela, mas porque, se existia uma forma de viver livre de verdade, de ser feliz de verdade, ela buscaria isso para si. Buscaria isso para a nação que aprendeu a amar de todo coração e para que as gerações futuras de Canarinhos pudessem viver livres das gaiolas.

2 марта 2021 г. 19:13 11 Отчет Добавить Подписаться
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Об авторе

Karimy Lubarino Sou preparadora e revisora de textos literários, além de coordenadora da Embaixada Brasileira do Inkspired. Meu compromisso é cuidar do seu sonho garantindo intimidade entre seu leitor e seu livro por meio da língua portuguesa. Siga-me no insta e conheça mais sobre meu trabalho. @karimyrevisa

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Olá, Karimy! Primeiramente, gostaríamos de agradecer a sua participação no #DistopiaBr! Contar com seu apoio não somente nos bastidores, mas ter você, coordenadora da Embaixada, participando ativamente do desafio, seja com seus comentários individuais para cada autor participante ou a postagem da sua história, é algo que faz com que nós, seus filhotinhos, fiquemos com o coração ultra quentinho de admiração. Sua história nos deixa atados à trama desde a leitura da sinopse: o que seria a Iniciação e quais os seus impactos na formação dos que seriam verdadeiros cidadãos brasileiros? Quem eram, afinal, os Canarinhos e por que eram tratados como tal? Ao fim da obra não existem pontas soltas, e ela responde a todos os nossos questionamentos fornecendo abundância de informações, e, consequentemente, nos deixa cada vez mais angustiados ao fazê-lo. O Brasil de Geração Canarinho nos dá, de início, a impressão de uma utopia. Afinal, após ter consertado habilmente todos os problemas deixados pelo último governante, que havia praticamente devastado o país, ainda conseguiu colocar o povo em patamar de igualdade e trazer avanços tecnológicos inomináveis! Mas, assim que há menção sobre implantação de Chips Telepáticos, Campos de Correção e a divisão da nação entre verdadeiros cidadãos e Desiguais, a gente percebe que tem angu nesse caroço! E já que estamos usando essa expressão abrasileirada, o que dizer de todo cenário brasileiro construído em sua história? Os locais, a comida típica, o calor que não dá trégua… Geração Canarinho não falha, um segundo sequer, com o tema imposto pelo desafio #DistopiaBR. Por mais que seja um conto, o que configura uma história mais curta querendo ou não, é interessante ver como Cátia amadurece à medida em que Anderson abre seus olhos para a realidade do país. Antes disso, pode-se dizer que ela estava realmente alienada e disposta a se tornar uma cidadã exemplar, sem ao menos parar para pensar no que esse título realmente implicava. Tamanha era sua determinação que Cátia faz como pode para não se abalar diante da perda de uma amiga tão querida, pensando que ela teria uma vida boa entre os Desiguais. Ledo engano… As revelações de Anderson causam um impacto até mesmo na gente atrás da tela, revelando o outro lado da moeda do país que fazia o que podia para sustentar uma falsa imagem de perfeição. Os chips, as mentiras escondidas por debaixo do tapete, a transmissão de pensamentos, sejam eles bons ou não: o que antes parecia incrível até mesmo para os leitores se torna um verdadeiro pesadelo! No quesito de personagens, a história traz uma construção que revela o quão hábil é a mestra por detrás nela. Somos capazes de conhecer, nos afeiçoar ou nos apiedar de cada um dos personagens da trama. Nos méritos de ambientação, tamanha maestria da autora também é delineada: somos apresentados não somente à disposição geral de uma cena, como podemos conhecer em pormenores, por exemplo, as vestes trajadas pelos personagens e o clima em determinada cena, que nos ajudam a emergir ainda mais enredo. Sem contar todos os elementos descritos que nos remetem perfeitamente ao Brasil, sobretudo as comidas típicas que deixaram Cátia de bucho cheio, e fugindo da louça do almoço; quem nunca deu uma dessas que atire a primeira pedra. E é graças a todos esses elementos que a história se torna única, e podemos facilmente classificá-la como perfeita. Quanto a gramática, não é de se admirar que esteja impecável como sempre. A narrativa segue um fluxo constantemente tranquilo, excelente para quem está lendo não se perder ou ficar empacado em algum trecho por não estar familiarizado com a palavra ou tentando entender um fato citado ali. Como a embaixadora que sempre quebra nosso galho na escrita, não há o que falar. Esse conto, em momento algum, deixa a desejar nesse quesito. Karimy, é um fato que somos embaixadores abençoados por podermos contar com uma coordenadora tão maravilhosa quanto você: disposta a nos ajudar, ouvir e acalentar quando é necessário. É sempre gratificante poder participar de empreitadas e organizar desafios contigo, e não nos vemos sendo coordenados por outra pessoa se não você. Valorizamos muito todo seu trabalho, carinho e dedicação para com o Inkspired, e sobretudo te valorizamos muitíssimo como autora! A obra que você nos entregou foi incrível! Nas entrelinhas de seu conto há muito aprendizado, que vai nos influenciar tanto como autores quanto pessoas. Muito obrigada por sua participação, por todo o apoio que nos dá e por deixar claro que podemos sempre contar com você, faça chuva ou faça sol. Esperamos poder desenvolver muitos outros desafios como esse ao seu lado e continuar construindo memórias únicas e marcantes!

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    O meu coração é mole e vocês ainda fazem isso comigo hahahaha Amo vcs <3 March 16, 2021, 15:00
Kehillah Sanchez Kehillah Sanchez
Não sei se é apenas uma repulsa minha, mas odeio líderes que impõem suas ideologias aos outros como se o povo fosse robôs ou objetos para classificar como descartável aqueles que pensam, agem ou se portam diferentes. E o título Gaiola Invisível veio bastante a calhar com o enredo, visto que os personagens apesar de "livres" tinham sua liberdade de expressão vetada pelo patriotismo.
𝐏𝐒𝐘𝐂𝐇𝐎𝐂𝐀𝐓 . 𝐏𝐒𝐘𝐂𝐇𝐎𝐂𝐀𝐓 .
Pai amado! Me ensina como ter tanta criatividade e jeito com as palavras quanto você? Olha, nem parece que você disse estar tendo dificuldades para desenvolver sua história. O produto final foi simplesmente perfeito, e eu tô aqui, de queixinho caído, pensando em como vou poder colocar em palavras todos os sentimentos que foram aflorados com a leitura de Geração Canarinho. Karimy, para dizer no mínimo, sua história é impressionante! Superou todas as minhas expectativas e os achismos que eu tive em determinados pontos da leitura. Foi uma história que parecia, de início, retratar um Brasil utópico, com igualdade para o povo e avanços tecnológicos inomináveis, para pouco depois toda essa imagem de perfeição ruir quando descobrimos o que acontece por sob os panos. Claro, assim que mencionaram os Campos de Correção e os Desiguais, já dava pra saber que a coisa não era assim tão show de bola. Tu conseguiu entregar um texto único, cativante, e que nos deixa com um gostinho de quero mais: o que aconteceu com Cátia e Anderson após tomada a decisão? Márcia conseguiu ser resgatada? Como reagiram os pais de Cátia quando ela some antes de ter o chip implantado? Se Geração Canarinho fosse um livro cheio de capítulos e reviravoltas, eu o teria devorado em um só dia. Meus parabéns pela sua história e muito obrigada por ter deixado sua marca nesse desafio. Poder contar com seu apoio sempre é incrível. ♡
Max Rocha Max Rocha
Olá Karimy, primeira visita que te faço e quão surpreendido fiquei pela sua escrita perfeita e cativante. Pensei até que você pudesse ter um chip telepático implantado, dada a sua grande imaginação (rsrsrsr). Mas falando sério, uma distopia assustadora, criando uma "sociedade perfeita", composta por assassinato das individualidades e esmagamento de toda e qualquer dissidência. Como o gado ao matadouro, os brasileiros se enfileiram vítimas de regime totalitário e teoricamente possível. Arroubos de autoritarismo aqui e ali são vistos todos os dias, já há uns bons pares de anos por aqui, independentemente das posições ideológicas. George Orwell ficaria orgulhoso. Aplausos do Fantasma.
Alex Lorenzo Alex Lorenzo
Olá, Karimy! Curti demais seu texto com essa pegada forte distópica!!! Conquistar a cidadania a partir de testes e a possibilidade de perdê-la. Que sacada, hein? No Brasil atual, de modo geral, basta nascer em solo brasileiro que você já é cidadão, mas nesse Brasil distópico existem testes psicológicos e exames genéticos que nos levam a questões de separação, a ideia principal dos Desiguais. Daí, “merecerem” os Campos de Correção. E os Chips telepáticos? Imagina o quanto eles são invasivos? Que situação a da Márcia, hein? Será possível que Cátia e Anderson não farão nada por ela? Será que a condição da Márcia irá despertar algo neles? Quem sabe não começou a nascer a semente da contestação, da resistência? “A prefeita deu um tempo para que todos se acalmassem, bebendo um gole d`água levada por uma assistente de vestido amarelo-ouro com florezinhas azuis.” Sobre essa frase, dentre outras do texto, quero dizer que eu adoro quando os autores têm essa sacada, pois são cenas despretensiosas assim que dão realismo à história. Parabéns pelo seu trabalho! Está incrível! Se for dar continuidade, estarei seguindo. Abraços!
 Silva Silva
Caramba😲 Então moça, quando sai a continuação? Eu preciso saber o que vai acontecer com a Cátia e o Anderson, eles precisam salvar a Márcia 👀 Karimy, eu já tinha visto sua escrita maravilhosa em Mansolar e aqui foi tão incrível quanto. A sociedade distópica apresentada me lembrou Jogos Vorazes e o conceito do pensamento compartilhado me remeteu a Mundo em Caos (que vai ganhar filme esse ano) E todo o conceito sobre os canarinhos, a gaiola, a manipulação e a perda da privacidade... Wow! Que obra incrível, parabéns! #Continua
Alexis Rodrigues Alexis Rodrigues
Karimy do céu! EU TÔ NO CHÃO! QUE HISTÓRIA INCRÍVEEEEEEL ♡♡♡♡♡♡♡♡ caramba, eu amei tudo! O conceito é diferente do que já li por aqui, e o tempo todo eu fiquei pensando em Jogos Vorazes no que diz respeito ao absurdo que as pessoas são forçadas a engolir ;-; Queria tanto ler um livro inteiro dessa história! ;-; vc vai fazer uma continuação dela? Por favorzinhooo ♡ eu amei demais ♡ ficou incrível ♡

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Ai que amorrr! hahahaha Fico muito contente que tenha gostado, sério mesmo hahaha Eu queria muito escrever uma história que fosse desligada do contexto atual e realmente com uma premissa diferente e foi nisso aí que deu. Eu confesso que, desde que a ideia chegou na cachola, estou matutando sobre a possibilidade de fazer algo maior com ela. Quem sabe? Pode deixar que eu te aviso! Obrigada de coração pelo comentário empolgante *-* March 03, 2021, 18:45
Isís Marchetti Isís Marchetti
Oiee! Mulher, já ouvi dizer que com conversa se resolve tudo, agora dizer que uma conversa é que vai definir se você é uma Desigual ou não é a primeira vez! Haha. Apesar de esperar ver toda uma ação dela indo atrás dos Campos de Correções para achar Márcia, eu acabei gostando muito do final aberto, Anderson falou tanto sobre a verdade ali, que já dá para imaginar os dois sendo os cabeças da futura resistência. Parabéns pela sua participação no desafio. Bjs.

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Uuu, já pensou esses dois como líderes depois de um tempo. Ainda precisariam crescer um bocado, mas ficariam fofos hahaha Obrigada March 03, 2021, 18:43
~