zephirat Andre Tornado

Por causa da pandemia que obrigou toda a gente à quarentena em março de 2020, Mike Shinoda, dos Linkin Park, resolveu começar a fazer transmissões ao vivo do que fazia de manhã, fechado em casa, através da internet e das suas redes sociais. Assim distraía-se, convivia com os fãs, o tempo passava mais depressa. O que ele não contava, durante aqueles meses de confinamento, era receber uma visita totalmente inesperada que lhe iria proporcionar uma hora a mais na sua vida, roubada ao destino…


Фанфикшн Группы / Singers 18+. © Linkin Park não me pertence. História escrita de fã para fã.

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I - Uma presença totalmente imprevista


Espreguiçou-se de forma espalhafatosa com um enorme bocejo. Por um curto momento de pânico teve a impressão de que não tinha desligado as câmaras da live que terminara havia alguns segundos e estariam a vê-lo a estirar as costas como um gato, sem se importar como aquilo ficava muito mal e era um pouco desrespeitoso. Mas não, as câmaras estavam todas desligadas, confirmou.


Começara naquela brincadeira em finais de março, quando a pandemia causada pelo novo coronavírus, que toda a gente conhecia por covid19, estava a alastrar perigosamente pelo mundo. Entrara no Instagram, mostrara-se a construir uma música instrumental a partir de uma coleção de sons. A experiência fora tão satisfatória, fora tão bem acolhido pelos fãs que também estavam fechados em casa, como ele, que passadas umas semanas tinha criado um canal na plataforma Twitch, juntando-lhe uma série de jogos e um sistema de pontuação que fidelizava os espetadores. Por enquanto continuava a transmitir noutras plataformas, como o Facebook e o YouTube, mas naquela fase já pensava seriamente em ficar apenas no Twitch. A sua assistente Ana, que lhe moderava a caixa de conversa e geria a transmissão, estava a ver esse assunto.


Olhou para o relógio no ecrã. Passava pouco do meio-dia e meia. Naquele dia a live tinha terminado mais cedo, mas ele tinha conseguido finalizar a faixa que compusera e respondera a algumas perguntas dos fãs. A manhã estava, assim, completa. Seguia-se o almoço e dali a nada a Anna, a sua mulher, não confundir com a Ana, sua assistente, iria chamá-lo para juntar-se a ela e aos seus filhos à mesa. Fez um esgar – ele tinha uma certa propensão a criar padrões. Ou a encontrá-los. As mulheres mais importantes da sua vida eram Anas, os seus grandes amigos eram Daves…


Baixou os braços, coçou a barriga por cima da t-shirt preta. Pousou a mão no rato e pôs-se a movimentar o cursor pelos vários ícones que podia abrir, a tentar decidir-se o que fazer naqueles poucos minutos até a Anna aparecer no estúdio e perguntar-lhe, bem-humorada, se ele se tinha esquecido das horas. Porque ele esquecia-se sistematicamente das horas, mesmo que tivesse desligado a live e tivesse uma margem confortável de minutos que ele iria, certamente, desbaratar numa qualquer distração.


Abriu o programa do correio eletrónico. Fez um segundo esgar. Tinha um sem fim de mensagens para responder. Não lhe estava a apetecer, mas também não podia ir deixando de lado ou acumulava um número impossível de respostas para dar. Apoiou a cabeça na mão, suspirando. Bem, já tinha trabalho para o início da tarde… a não ser que se sabotasse e fosse inventar outra tarefa para si.


Coçou a testa.


– Ei, meu!


Saltou na cadeira com aquela voz nas suas costas. Uma voz masculina…


– Eh… isto está muito diferente… estiveste em remodelações? E não me contaste nada. O que é que o estúdio antigo tinha? Eu gostava bastante do teu estúdio antigo. Passámos lá bons momentos.


O timbre… A modulação… As pequenas nuances unívocas. Cada palavra daquelas frases sonoras era um tiro invisível que o atingia e lhe causava calafrios, que desciam devagar pelas costas, geladas e pegajosas. Ficou rígido, paralisado, desconcertado.


– Mike? Passa-se alguma coisa? Ei, meu, estou a falar contigo.


O seu nome foi uma chicotada. E o frio que lhe cobria o dorso converteu-se subitamente num calor que o deixou a suar em bica. Tentou engolir, mas tinha a boca seca… bastava alcançar a garrafa térmica, beber um gole de café e hidratar-se. Mas ele não se conseguia mexer.


– Mike?


O som estava muito próximo e vinha do exterior. Não estava dentro da sua mente, numa recordação vívida e, portanto, ardilosa. Era… alguém que acabava de entrar no estúdio e que o interpelava.


Abriu e fechou os olhos várias vezes. As lentes de contacto secas prenderam-se-lhe nas pálpebras. Esfregou o olho direito para aliviar o desconforto.


– Mike?!


Ele girou, finalmente, a cadeira de modo a ficar de frente para a voz. E com a voz estava quem ele esperava que estivesse. Gaguejou um pouco e depois desistiu de dizer alguma coisa. Uma apatia estranha abateu-se sobre si e ele ficou a contemplar o amigo como se estivesse a vê-lo num filme ou numa fotografia, impondo a distância sadia que o impedia de se desfazer em moléculas. Aprendera a lidar com a situação desse modo, usando uma armadura que o resguardava, mas que também filtrava aquilo que o podia magoar.


– Está tudo bem, Mike? Ficaste todo rígido aí na cadeira. Parecia que estavas a ter uma cãibra, ou assim…


A pergunta e a preocupação insistentes eram curiosas. Ele inclinou a cabeça para a esquerda e respondeu:


– Sim, está tudo bem comigo.


Ele estava mesmo a conversar com… o que ele via? Era totalmente concebível, já que o que ele estava a ver era tridimensional e concreto. Para ser uma alucinação era demasiado real e demasiado intensa.


Chester relaxou os ombros. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco. Espremeu a boca. A sua testa enrugava-se à medida que ele aguardava por esclarecimentos. Era uma característica muito própria dele – quando se inquietava e precisava que lhe acalmassem a ansiedade, o seu rosto franzia-se mais e mais.


Mike sabia que só podia estar a sonhar. Um sonho bastante lúcido, por sinal. Teria ele perdido os sentidos, tombado para cima da mesa e batido com a cabeça? Não se sentia exausto, nem com fraqueza. Naquela noite até tinha dormido bastante bem… Lançou um braço, agarrou a mesa; sentia-a sólida e igual a todos os dias. Ele estava a sentir a mesa e parecia tudo normal. Ele parecia que estava desperto também. Então o que era aquilo?


Continuava sentado e o outro continuava de pé.


– Passa-se alguma coisa? – ofegou Chester, verbalizando a sua crescente inquietação. – Tens a certeza de que não estás com uma dor esquisita?


– Eh… o que queres dizer? Não. Não se passa nada. Já te disse que estou bem. Não há cãibra nenhuma, nem dor. E tu… como estás…? – Acrescentou a pergunta e mordeu a língua. Que raio de pergunta para se fazer a… o que era aquilo? Um fantasma? Uma aparição? Não. Era um sonho. Um sonho, forçou-se a encontrar essa definição. Mesmo que se julgasse desperto, era um engano subtil da sua mente que criara um cenário plausível. Não queria crer que… estava a ser assombrado. Em plena luz do dia!


– Eu estou bem – respondeu Chester.


– Eu também… estou bem.


O outro olhou novamente em volta.


– O que fizeste ao antigo estúdio? Porque é que te mudaste para esta sala maior?


Demasiadas recordações. Pensou, mas não o disse em voz alta.


– A Anna… ela precisava de um escritório novo. Então, fizemos do primeiro escritório um quarto de brincar, para as miúdas, e do estúdio fizemos uma sala para a Anna estar mais à vontade com a escrita, que inclui a sua biblioteca. E eu… fiz este anexo, para ficar mais à vontade… também. Um estúdio maior, um escritório maior… Tudo maior.


– Ah… Eu gostava do teu antigo estúdio.


– Eu sei. Eu sei. – Arriscou chamá-lo: – Chester?


– Sim, Mike…


– O que… fazes aqui?


Ele sorriu-lhe.


– Vim fazer-te uma visita.


– Uma… visita?


– Porra, Mike! – irritou-se o amigo, impaciente. – O que é que se passa contigo? Dizes que está tudo bem e estás com essa atitude. Se não me queres ver, vou-me já embora. Estás aí com cara de idiota a olhar para mim, como se não me visses há séculos. Já não sou bem-vindo, é isso?


Mike levantou-se e agitou os braços.


– Não, não podes! Quero dizer – emendou, atrapalhado –, não te vás embora. Fica mais um pouco. Claro que és bem-vindo, serás sempre bem-vindo. Eu… eu estava a terminar e ia almoçar e…


– Ih, vim em má hora, então… Desculpa, não queria atrapalhar-te a rotina, nem quero ficar para o almoço. Aliás, nem tenho muita fome, nem nada. Não sei o que se passa comigo ultimamente… Ando sem apetite. Olha, então, vou indo. Pensei que tivesses alguma canção nova ou assim. Senti falta de trabalhar contigo, os meus dias têm estado tão aborrecidos sem a banda… Eu avisei que vinha, tu não me respondeste, pelo que achei que não te importavas se eu aparecesse na tua casa.


– Onde tens estado, Chester?


A pergunta apanhou o outro desprevenido. A sua boca torceu-se e empalideceu um pouco. Mexeu a cabeça e fez um ruído estranho com a garganta. Mike sentiu-se mal por ter perguntado aquilo a alguém que… não tinha estado, simplesmente, durante três anos.


– Não me lembro – murmurou.


– Não te lembras onde tens estado?


– Não.


Chester encolheu-se e estremeceu. Os seus olhos acusaram uma certa preocupação. Mike não o queria deixar encurralado. E se ele, tão de repente como aparecera, desaparecesse? Está bem que aquilo tudo era só um devaneio idiota da sua mente, mas estava a gostar da experiência, por ser tão palpável e coerente. Nunca tinha sonhado daquela maneira antes, com muitos pormenores e tudo no seu devido lugar.


– Queres… queres ficar aqui… comigo? – convidou em jeito de sugestão. – Podes ficar aqui. Usaste sempre os meus sofás, qualquer um deles, desde aquele do meu apartamento quando era um banal estudante de arte, sem eira, nem beira, até ao do estúdio.


– Do teu antigo estúdio. Era mais acolhedor. Esta sala é demasiado grande – queixou-se Chester, a resvalar para o amuado.


– Mas ainda tem um sofá.


– E olha só aquelas janelas… Tanta luz! Não te incomoda quando estás a usar o computador? Olhem só, até o computador é novo. Tens equipamento novo para condizer com o estúdio novo – acrescentou Chester com um certo desdém.


Mike espreitou por cima do ombro.


– Sim, mudei de máquina. Continuo com a Apple, contudo. Precisei de um computador melhor por causa das lives. Preciso é de mudar de rede. Os meus seguidores queixam-se que eu deixo de transmitir e eles deixam de me ver, com demasiada frequência. É embaraçoso…


Lives?


– Sim! – Mike sorriu, vaidoso. – Agora faço uns streams ao vivo. Componho canções. Estou a pensar desenhar também e jogar uns jogos. Como fazem os miúdos hoje em dia.


– Agora és um youtuber, Mike? – Chester riu-se com vontade.


– Não faço o meu pequeno espetáculo apenas no YouTube, faço-o também no Facebook e no Twitch. Está a ser uma boa entretenha, já que não podemos sair de casa.


– Não podes sair de casa? – admirou-se Chester. – Porque é que não podes sair de casa?


– Ninguém pode sair de casa, por causa da pandemia. Há um novo vírus com origem na China que é bastante perigoso para quem tem problemas respiratórios, como eu e as minhas filhas. É potencialmente… mortal.


– Não. A sério? E por que razão nunca ouvi falar disso?


Porque não estás cá desde 2017 e estamos em 2020. Outro pensamento amargo que guardou para si. Tocou-lhe no braço e emocionou-se ao sentir calor. Curiosamente ainda não tinha conseguido sentir o cheiro dele, mas seria bastante intrusivo se ele se pusesse a inspirar profundamente junto ao pescoço do Chester.


– E esse vírus… também me pode matar a mim?


– Em princípio… não, Chester.


– Porquê? Eu consigo ficar doente do nada.


– Em princípio não – repetiu Mike.


– E mais ninguém pode sair de casa, ou só as pessoas com problemas respiratórios?


– Está toda a gente em casa. O governador… uh… contrariando as ordens do presidente mandou fechar tudo. Lojas, centros comerciais, restaurantes, barbeiros e cabeleireiros, qualquer negócio que atenda público. Os concertos, peças de teatro, os eventos desportivos, o cinema… está tudo cancelado e fechado. Estamos todos de quarentena, em confinamento.


Chester recuou um passo, assustado.


– Ninguém pode sair? E como é que eu saí?


Mike pestanejou.


– Eh… Há pessoas que saem. Dão uma volta de carro, vão… vão ao parque…


– Visitar amigos está incluído nessa quarentena?


– Tu vieste visitar-me, não vieste? Então, está tudo bem. Está incluído – mentiu.


– Mas eu continuo a não me lembrar a razão de estar aqui a visitar-te! E ainda por cima vim numa hora péssima. Não gosto de me impor, Mike, tu sabes disso. É hora do almoço e até parece que vim aqui para te cravar a refeição. Foi mesmo sem intenção… Se calhar hoje acordei tarde e apeteceu-me vir até aqui. Se calhar, foi isso.


– Disseste que sentiste falta de trabalhar comigo…


– Eu disse isso? – Agora foi a vez de Chester pestanejar. Desfez-se num sorriso amistoso. – Sim, sim, pois disse. Sim. Tens alguma coisa nova?


– Tenho algumas coisas novas… – confirmou sem grande convicção.


Chester olhou em volta, mais uma vez, analisando a sala, impertinente e zangado.


– Gostava mais do teu antigo estúdio. Aqui… estamos demasiado desprotegidos.


Mike resolveu ignorar aquela insistência. O outro estaria confuso… porque não passara pelo processo de ausência. Estava ali imediatamente depois a ter deixado de estar. Que sonho tão estranho! Precisava de despertar. Muito provavelmente iria despertar quando a Anna se acercasse dele e lhe picasse o ombro porque ele estava atrasado para o almoço e os miúdos estavam à espera dele. Por outro lado, não queria despertar. Apesar de a conversa estar a acontecer aos solavancos, falar com o Chester enchia-o de um prazer único, de uma alegria que há muito não sentia. O seu coração batia feliz.


– Tenho uma música nova, ‘Open Door’, que enviei para um concurso que está a decorrer na internet. Quero uma segunda voz e quero que seja um dos fãs. O concurso está a acontecer no Twitter.


– Podias pedir-me a mim – observou Chester magoado. – Eu seria a segunda voz dessa canção. Que canção é essa? Tens um novo projeto a solo? Está bem, se tens um novo projeto em que a banda não entra, tens todo o direito de trabalhar nele, mas ao menos que me tivesses contado.


– Desculpa, Chaz. Aconteceu tudo demasiado depressa.


– Sim, ok.


Pois aconteceu. Tu… tu saíste da minha, das nossas vidas, eu tive de me reerguer, os fãs precisaram do meu consolo e eu do deles, tanta confusão que se seguiu à tua saída, tinha planos e veio a pandemia. O que queres que te diga, Chester? Será que precisas da verdade? Mas quem precisa da verdade dentro de um sonho?


Chester sentou-se no sofá. Abriu os braços sobre o encosto.


– Hum, bastante confortável. Queres mostrar-me ou estás a fazer segredo?


– Mostrar-te o quê?


– Essa canção, ‘Open Door’.


– Eh, sim, claro… Tenho-a aqui. Espera um pouco.


Mike reocupou a cadeira. Respirou fundo. Pousou a mão no rato e foi buscar a pasta certa no computador. A sua mão direita tremia levemente.


– Quando voltar a casa vou registar-me no Twitter com um outro nome, vou criar uma conta falsa – provocou Chester. – Vou também concorrer ao concurso para essa segunda voz na tua canção.


– Como é que vais fazer isso? – Mike riu-se. – As pessoas estão a enviar vídeos das suas prestações a cantar ‘Open Door’ para que eu as possa avaliar. Tu também terias de me enviar um vídeo, amigo. E toda a gente veria que eras tu… O que é que acontecia depois?


– Isso seria problema teu, Mike.


– Chester Bennington a concorrer para a segunda voz de ‘Open Door’! – Mike emocionou-se ao dizer aquilo. Pigarreou para desimpedir a garganta e guardar os seus sentimentos dentro do cofre inviolável da sua alma, porque ele jamais concedia em mostrar-se vulnerável. – Acho que, se concorreres, vou ter de te desclassificar. Tu fazes parte da casa e estaria a ser injusto se te considerasse como um dos concorrentes, pois eu abri a canção para ter a participação dos fãs. Não irei aceitar cantores… profissionais. Por uma questão de igualdade. Quero um desconhecido. Ou vários. Depende das participações. Se gostar de várias, por que não ter mais do que uma voz a cantar comigo? Existem tantas vozes talentosas.


– Sou um dos teus maiores fãs, Mike.


– Eu sei, amigo. Ouve… Ainda é uma versão demo.


Mike carregou no botão virtual do play e a música passou pelas colunas altifalantes. Ficou de costas durante algum tempo a olhar para os dedos que tamborilavam no limite da mesa, ao ritmo da canção e a sua cabeça oscilava também. Deu por si a murmurar a letra de olhos semicerrados. Depois calou-se. Teve medo de se voltar e de não encontrar ninguém sentado no sofá. Beliscou a pele da mão direita com as unhas da esquerda. Acordado estava, porque não se viu a despertar estremunhado e confuso.


Então… fora uma ilusão e não um sonho?


Voltou a cadeira devagar, pescoço dobrado, a contemplar os próprios joelhos onde pousara as mãos. Reparou no fino e duplo sulco que as suas unhas tinham provocado na pele branca. A sua voz enchia o espaço, mais a harmonia e a batida. A canção falava sobre portas abertas, novidades, uma forma de escapar do banal. Descolar e nunca mais parar de correr…


Levantou devagar a testa, enchendo-se de terror e de arrepios.


Chester estava sentado no sofá. Continuava ali, para sua alegria, remorso e espanto. Mas o que lhe estava a acontecer? Tanto tempo passado em casa e tinha começado a perder o juízo? Passou a mão pela barba, repuxando-a no queixo, um pequeno tufo que enrolou na ponta dos dedos. Um gesto seu que indicava que ele não estava à vontade.


Observava Chester a escutar a sua canção, que ele escrevera no início daquele ano. O amigo tinha os cotovelos apoiados nas coxas e segurava na cabeça entre as mãos, a olhar para o espaço aberto entre as pernas. Mexia-se numa cadência repetitiva, a acompanhar a música, como era seu hábito sempre que escutava algo de novo. Estava muito concentrado e tentava absorver o máximo de elementos possível, a letra, a harmonia, o ritmo, as sequências onde podia dar o seu contributo.


Os olhos de Mike humedeceram e ele fungou para recolher as lágrimas.


Estava a ser como era antes, quando… antes de… Mordeu os lábios, incomodado com a sua fragilidade. Julgava-se curado daquela mágoa. Acreditava que tinha ultrapassado a tragédia. Mas ter o amigo ali, no seu estúdio, no seu sofá, empurrava-o para o passado.


A canção terminou. Chester quedou-se naquela posição durante alguns segundos. Depois encarou-o fixamente.


– Hum… Vais desculpar-me, Mike. Mas essa canção está a implorar pela minha voz. Escreveste isso a pensar em mim.


– Escrevi? Não… Sim, estive… Talvez – sentenciou. – Talvez.


– É para o teu projeto a solo, já percebi isso – cortou Chester. – Mas pode também ser uma canção dos Linkin Park se eu entrar e se falarmos com o Brad e com o Joe. Tens de parar de ser tão individualista. Às vezes penso que ficavas melhor sem a banda… parece que te atrapalhamos… Está bem, não te defendas, já discutimos essa questão demasiadas vezes nestes últimos vinte anos.


– Sim… vinte anos. Mas, olha, a canção já foi divulgada nas redes sociais. Não vou retirá-la quando já tenho fãs a mandar-me os seus vídeos. Não vai ser uma canção dos… da banda.


– Como é que eu não vi isso nas redes? – perguntou Chester intrigado e coçou o alto da cabeça. Estava com o cabelo curto, rapado, como da última vez que o vira naquele dia em que cantaram dentro de um carro e se divertiram tanto…


– Não sei.


E aquele ‘não sei’ era também o Mike a falar para si próprio que não sabia o que estava a acontecer-lhe… Talvez se tivesse um segundo par de olhos para verificar se viam o mesmo que ele estava a ver…. A Anna podia… Ou a Ana. Ligava a câmara e mostrava à sua assistente e amiga o estúdio, imagem fixa no sofá. Não! Nada de testemunhas! Aquele momento era só dele! Pelo menos até à uma da tarde era seu, em exclusivo e ele não o queria partilhar com mais ninguém.


Chester estalou a língua.


– Pois… eu vou concorrer. Só para me divertir. Para onde é que se enviam os vídeos?


Mike inspirou fundo, a tentar conter o pânico e a ânsia.


– Estou a pedir no Twitter. Os fãs gostam de interagir comigo por aí. Não tenho atualizado tanto as outras redes.


– Certo! – Chester piscou o olho. – Vou já gravar o meu vídeo e vai ser no teu estúdio. Podias passar ‘Open Door’ outra vez? Para eu perceber o refrão… vou entrar aí, mas vou escrever uma letra diferente, para fazer contrapeso à tua. Se tu abres as portas, eu vou fechá-las. Deixa-me só…


Soergueu-se e levou a mão à parte de trás das calças. Ficou sério.


– Merda…


– O que foi, Chester?


– O meu telemóvel… não estou com o meu telemóvel. – Apalpou os bolsos do casaco, aflito. Levantou-se, inspecionou o sofá enfiando as mãos por dentro das almofadas do assento, não fosse o aparelho se ter metido numa dessas frestas. – Perdi o telemóvel. Porra! Como é que perdi o telemóvel? Que estúpido. Liga-me aí…


– Ligo… para ti?


– Sim! – insistiu inquieto. Começou a roer as unhas. – Pode ser que tenha caído pelo caminho e, se me ligares, oiço o toque e sei onde ele está. Merda, não posso estar sem o meu telemóvel… Que cara é essa, Mike? Tu tens aí o teu. Liga-me.


Mike agarrou no telemóvel com as duas mãos. Ainda conservava o número do Chester, escondido sob um nome encriptado para não levantar suspeitas. O seu número mais pessoal, aquele que ele não partilhava com ninguém a não ser a família mais chegada e os amigos realmente próximos. Nem todos da banda tinham aquele número, o Rob e o Joe não o tinham, por exemplo. Os outros números, tinha-os apagado como parte da terapia.


– Liga-me, Mike. Vá lá… ajuda-me. Parece que é de propósito, para que eu não participe no teu concurso. Não foste tu que me roubaste o telemóvel, pois não?


– Não sejas idiota – murmurou, com o telemóvel nas mãos, ainda relutante.


– Podias tê-lo feito… para proteger o teu concurso. É só encontrar o telemóvel que eu vou escrever a letra e gravar o meu vídeo. Espera só… – Chester olhava para todos os lados, escrutinando os recantos, à espera de ver aparecer o objeto que ele procurava com tanto afã.


– Qual é o número? – perguntou Mike para ganhar tempo. E se ligasse para o antigo número pessoal do Chester? O que é que acontecia? Quem iria atender? Sabia que a Talinda conservara alguns dos telemóveis dele, mas nem todos… Provavelmente estaria desligado. Mas também podia não estar e ele tinha de lidar com um telefonema esquisito e teria de se explicar.


– Qualquer um da tua agenda, amigo – respondeu Chester. – Os meus números estão todos reencaminhados.


– Está bem.


– Que merda. Onde estava eu com a cabeça para ter perdido o telemóvel e não ter dado por isso? Eu tinha-o, eu sei que o tinha comigo… claro que o tinha comigo, estava até a conferir a minha agenda. Havia aquela sessão de fotos… e havia uma notícia também que eu estava a ver, não me lembro qual. Liga-me aí, dude.


Passos na escada.


O sangue fugiu-lhe do corpo e Mike saltou da cadeira, largando o telemóvel na mesa que saltitou sobre o tampo. Agarrou na manga do Chester e puxou-o. Entraram os dois na cabina de som. Empurrou o amigo.


– Anda ver isto.


– Ver o quê, Mike? O que foi?


Agachou-se junto a um conjunto de pedais. Como continuava a segurar na manga do amigo, este agachou-se com ele.


– Muito interessante. É isto que me querias mostrar?


– Eh… sim, Chaz. Comprei-os antes da pandemia. No Natal. Foi uma prenda que me dei. Precisava de…


– Tens aqui um piano.


– E uma bateria. Tenho andado a praticar com mais frequência.


– Queres despachar o Rob? – Chester riu-se.


– Mike?


A Anna acabava de entrar no estúdio. Mike levantou-se. Chester ia fazer o mesmo, mas ele passou uma perna por cima dele e pôs-se às suas cavalitas. Para mantê-lo acocorado no chão da cabina, colocou a mão sobre a sua cabeça. Chester protestou.


– Ei!


– Chiu… Sim, Anna? – gritou para se fazer ouvir através da divisória de vidro. A mulher parou à entrada do estúdio, sensivelmente a três passos do sofá. Não havia qualquer cheiro e ela não iria desconfiar de nada. O Chester debateu-se para se soltar, mas ele apertou a pinça que fazia com as pernas.


– O almoço está pronto, Mike… O que fazes aí dentro?


– Eh… Estava a ligar uns cabos. Vou já sair.


– Pensei que estavas ainda na live, ouvi-te a conversar.


– Sim? Não, já estou despachado da live há algum tempo. Vou agora. Prepara o meu prato, queres?


– Preparar o teu prato, Mike Shinoda? Mas temos aqui alguma mania da grandeza? Não te vou servir, querido.


– Boo, por favor. Eu estou a ir, deixa-me só terminar isto.


Dobrou as costas e lançou os braços para a frente, mas estava preso ao amigo e não alcançou nada. Chester debateu-se entre as suas pernas.


– Mike… que merda! Deixa-me cumprimentar a Anna.


– Ela está atrapalhada com o almoço. E tu disseste que não queres almoçar. Se ela te vê, vai convidar-te para que te juntes a nós e tu vais sentir-te mal – sussurrou Mike.


– Oh, sim… Talvez tenhas razão.


Chester amoleceu e Mike libertou-o. Sentaram-se os dois na alcatifa. O amigo parecia-lhe melancólico.


– Ei, Chaz… está tudo bem. Queres ficar no estúdio? Eu volto daqui a pouco, tenho uns emails para ver e podemos falar sobre canções. Tenho montado alguns sons durante as minhas lives e os fãs estão a pedir-me que as divulgue.


– Vou-me embora.


– Podes ficar…


– Queria ver os teus filhos. Posso ver…?


– Está tudo bem com eles. Eles agora… estão a ter aulas à distância. As escolas fecharam todas, para conter o coronavírus. A tal pandemia, sabes…


Chester alarmou-se.


– Como é que eu não sei de nada disso? Não me lembro, porra! O Tyler também deve estar em casa a precisar de apoio nos seus estudos e eu aqui, em visitas sociais e inapropriadas. Vou-me mesmo embora. Onde estava eu com a cabeça para ter saído?


– Eu gostei que tivesses… saído.


De onde é que ele tinha vindo, afinal? Era tão gótico e decadente considerar que ele tinha saído do… do túmulo… Cerrou os dentes, amargurado com esse pensamento disforme, que lhe remetia a noites de lua cheia e sombras geladas. Nem sequer havia um túmulo, para começar.


– Não, não gostaste – murmurou Chester triste. – Não ficaste feliz quando apareci. Nem chegaste a dar-me um abraço.


– Posso abraçar-te agora…


– Não, muito obrigado.


Chester saiu da cabina de som apressado. Mike esfregou a cara, atarantado. Estava a tremer, a suar e a ofegar. Um estalo no cérebro sacudiu-o e ele levantou-se também, indo atrás do Chester numa corrida. Mas como fora ele deixá-lo sair do estúdio… atrás da Anna?


Subiu as escadas que levavam ao piso superior, ao nível do chão – o seu novo estúdio de gravação situava-se num desnível, nas traseiras da propriedade – mas já não apanhou o Chester. Ou a Anna. Chegou à cozinha aflito. As filhas olharam para ele, rodando a cabeça ao mesmo tempo, num reflexo uma da outra. Eram as únicas sentadas à mesa. A Anna estava a terminar de guarnecer a travessa com o puré de batata que iria ser servido com salsichas grelhadas. Otis, o filho, passou por ele e foi ocupar o seu lugar.


– Ei, pai. Estava a acabar os trabalhos de ciências. Depois podias ajudar-me? Tenho dúvidas num exercício. Os professores estão a passar trabalhos muito complicados e hoje tive outra vez problemas com a rede.


– Sim, sim… claro.


– Mike, podes sentar-te – pediu a Anna, franzindo uma sobrancelha. Deixou a travessa do puré junto ao das salsichas. – Temos de tratar da rede, eu hoje também não consegui fazer a reunião até ao fim com o meu editor. És tu com as lives, os miúdos com a escola. O nosso contrato de fornecimento já não se adequa a todas as exigências desta casa.


– Claro… Sim.


– Michael, larga a porta e vem sentar-te.


Ele endireitou as costas. Amarrotou as pontas da t-shirt. Sentia-se tenso e ligeiramente desarticulado. Espreitou por cima do ombro.


– Michael?


– Quando a mamã trata o papá por Michael… não é um bom sinal – informou Otis e as irmãs acenaram afirmativamente.


– Viste… alguém? – perguntou à mulher.


– Se vi alguém? – A Anna servia os copos das filhas com a água de um jarro de plástico que já estava em cima da mesa. – Quando?


– Eh… não sei.


– Mike, estás com febre? Não estás a dizer coisa com coisa.


Deu meia volta a dizer que ainda tinha de ir lavar as mãos. Fez uma breve inspeção à casa silenciosa. Nada, ninguém, um vazio, compartimentos em sossego. A sua casa, à exceção da cozinha, onde se concentrava a sua família, parecia congelada no tempo, como o mundo, que estava suspenso no meio de uma pandemia que atravessava o mundo carregando medos, dúvidas e sofrimento. Nada, nem ninguém. Mike não lobrigou um vulto furtivo, uma silhueta suspeita ou uma presença deslocada. Ele era o único que existia naquele espaço.


Regressou à cozinha e procurou mostrar-se animado. A mulher fez-lhe uma série de perguntas para despistar alguma eventual desorientação, doença súbita ou mal-estar. Mike assegurou-lhe que estava tudo bem e combinou um jogo de tabuleiro para o final da tarde, uma atividade para fazerem todos juntos.


Mais tarde, se tivesse disposição para tal, logo iria analisar o que lhe tinha acontecido. Mais tarde, se considerasse importante, podia até conversar com a Anna. A verdade, todavia, é que nem sabia como começar essa conversa.


Convenceu-se de que tinha sido a imaginação a pregar-lhe partidas. Demasiada tensão derivada de tudo o que estava a acontecer, dentro e fora do seu reduto pessoal, algumas noites mal dormidas e um qualquer desequilíbrio químico que ele precisava de suprir com ajuda de umas vitaminas e esqueceu a questão.

2 декабря 2020 г. 17:21 0 Отчет Добавить Подписаться
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