hat3yaaz Yasmin Feitosa

Muitas vezes algumas pessoas se cansam daquilo que consideram inicialmente como suportável. Mesmo que sejam injustiças cometidas contra si, críticas, julgamentos, tradições ou relações. Uma hora, mesmo o mais simples ato rotineiro pode fazer com que sua paciência se esgote ou, quando isso não acontece, uma trilha ainda mais perigosa pode ser tomada. Um caminho tortuoso que é muitas vezes levado em silêncio até que se torne realmente insuportável. Então, nesse segundo limite é que a situação se agrava. Pois adiante dele há somente aflição, loucura, desapego e libertação. Podemos imaginar esse cenário como uma enxurrada súbita de uma represa. Onde a água que para todos é necessária, se acumula aos poucos e enfim se descontrola, invadindo e arrastando tudo em sua volta. A fim de evitar isso, muitos especialistas recomendam uma válvula de escape. Para relaxar, se harmonizar, e esquecer daquilo que tanto nos estressa. Seria uma boa ideia se o fluxo de pensamentos de todas as pessoas fosse exatamente igual. Mas essa não é a realidade. Afinal, qual a solução quando as válvulas não dão mais conta? Quando o seu máximo não é suficiente? Ou mesmo quando elas não podem ser abertas? A verdade é que não há solução. A represa explode de qualquer forma. O máximo que nós podemos fazer é deixar as válvulas sempre abertas, pingando, sem nos importar com o que outros digam sobre "racionamento". E, claro, torcer para isso durar até que a água acabe.


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#drama #escape #liberdade #psicose #surto #378 #violência #loucura
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Capítulo Único

Sentada em meu quarto, eu me sentia perdida por não ter as respostas que procurava. Feixes de pensamentos passavam rápido em minha mente. Não conseguia mais me concentrar nos barulhos externos, somente naqueles que ecoavam em minha mente, tão rápidos quanto flashes de luz. Eu não acompanhava, não sabia para qual caminho seguir naquele labirinto.

Algo martelava em minha cabeça e instigava meus músculos.

Rendendo-me àquela aflição, eu fechei meus olhos e apertei minha testa com força, numa vã tentativa de me manter concentrada. Era como se eu estivesse presa numa encruzilhada multidimensional. Eu precisava analisar a situação, mas claramente não estava em condições pra isso.

O quarto permanecia fechado e escuro, com as cortinas sobre a janela. Somente a fraca luz da luminária iluminava o aposento, incidindo-se sobre uma folha de papel rabiscada em cima da mesa. Ainda que inquieta, eu não fazia quase nenhum barulho, isso porque nós estávamos com visitas em casa e eu não queria ser notada. Minha mãe havia saído para trabalhar, mas meu pai e mais três de seus colegas estavam na casa, provavelmente reunidos, conversando na sala ou comendo seu churrasco na varanda. Se divertindo normalmente num dia de folga. Diferentemente de mim, que permanecia contorcida na cadeira, abraçando as próprias pernas, com a testa franzida e os olhos trêmulos. Agoniada com a situação que aparentemente só eu enxergava.

Então, em meio a um turbilhão estroboscópico de imagens, momentos e suposições, eu encarei o nada por alguns segundos e me decidi. Já era hora de tomar alguma iniciativa.

Aquilo era o melhor, pensei.

Mas a decisão ainda me remoía. Nos instantes seguintes, eu comecei a pensar em tudo minuciosamente. Teria que terminar antes que minha mãe chegasse. Ela não poderia ver aquele tipo de coisa.

E, conforme o plano ia se remontando em minha cabeça, meu corpo lentamente relaxava e minha mente começava a clarear.

Eu não queria que meus pais sofressem por mim. Então aquela certamente era a melhor escolha. Sim.

Já tendo recuperado totalmente o foco, me levantei séria e concentrada no objetivo. Passos confiantes, porém silenciosos. Minhas mãos tocaram na maçaneta fria e abriram a porta lentamente. Promovendo nenhuma expressão, saí do quarto em direção ao quintal. Passando pelo corredor, pude ver que o céu começava a clarear na medida em que meus passos ficavam para trás. O vento soprava uma brisa calma, esvoaçando meus cabelos de forma quase tétrica. Chegando ao umbral da varanda eu avistei um dos visitantes.

Ele estava sozinho, sentado numa cadeira de plástico, olhando para a churrasqueira e de costas para mim. Não havia me visto chegar.

Eu continuei caminhando calma e silenciosamente até ele. E, quando finalmente notou minha presença ao seu lado, eu já havia puxado a arma do coldre em sua cintura. Sendo colegas de trabalho de meu pai, ou seja, policiais como ele, eu sabia que estariam portando suas armas mesmo naquele dia.

Minha expressão estava imutável. E eu não hesitei, destravei o cão da arma imediatamente e posicionei-a com rapidez. No susto, o homem virou-se pra mim e encarou a pistola já virada para seu rosto.

Um tiro seco, ele desabou da cadeira para o chão de terra.

Um segundo de silêncio e eu pude ouvir os outros se alarmarem. Agindo rápido, deslizei pela varanda até o corredor para sair de perto do corpo. Entrei na sala e vi meu pai, ele me pediu para sair dali e buscar proteção, não havia visto a arma em minha mão. E quando se aproximou, eu também só levantei a arma para sua cabeça.

Ele não teve tempo para dizer ou demonstrar nada. Só caiu inerte sobre o sofá, sujando o estofado. Seria melhor assim.

Da porta frontal, mais um homem surgiu. Ele vinha correndo para acudir meu pai sem prestar muita atenção em mim mas, ao se aproximar mais, pareceu sacar minha intenção. Era tarde demais. O homem bruscamente parou e tentou voltar para se proteger mas levou um tiro pelas costas, caindo próximo à porta. Aproximei-me em passos cautelosos, no chão ele tentava alcançar a própria arma, mas parecia debilitado demais para isso. Livrando-o do trabalho, eu apontei a arma novamente, e desferi o tiro de misericórdia.

Levantei meus olhos ainda em silêncio e fitei os cantos e saída possíveis do local. Faltava mais um e ele não parecia estar incauto. Naquele momento, eu já não pensava nas coisas que me perturbavam antes, somente os alvos tomavam minha atenção. O plano estava em andamento. O último homem era o foco principal.

Saí pela entrada frontal e caminhei até o quintal. O portão parecia intacto e, como os muros eram altos, imaginei que ele não pudesse ter fugido. Percebi então que o último provavelmente já sabia sobre mim e se escondia em algum lugar, esperando para me pegar de surpresa caso entrasse novamente em casa.

Isso significava que eu precisaria encontrá-lo primeiro.

Antes de começar aquele jogo, assegurei-me que as travas da arma estavam desativadas e segurei-a nas duas mãos com firmeza. Eu não possuía muita perícia em armas de fogo mas minha mente e meu corpo se moviam instintivamente, como se já soubessem exatamente o que fazer.

Ainda mais furtiva, tracei meu caminho por fora da casa, abaixando-me nas janelas e checando cada uma com cautela. Algumas, inclusive as do meu quarto, estavam fechadas, mas com um jeitinho eu conseguiria abri-las sem muito ruído. Em uma delas, porém, somente uma cortina fina esvoaçava. De longe ela era avistada por ser a única com aquela característica, minha intuição apitou. Eu quase podia ver a luz que me guiava para aquele buraco na realidade.

Abaixada, eu me esgueirei até o local e fui abraçada pela sombra que a grande árvore do jardim fazia no local. Olhando de soslaio pelo vão da abertura, eu finalmente o vi. Ele estava de costas para a parede, esperando que eu passasse pelo corredor interno. Inquieto, o homem não tirava a atenção da porta, por mais que também tentasse vigiar seus lados.

Vendo-o com dificuldades de observar a retaguarda, pensei nas variáveis e calculei um momento adequado. Assim, quando seus olhos se viraram para a porta do corredor, meu corpo deslizou pela janela com rapidez, caindo sobre os dois pés como uma pluma. Dali eu imediatamente deitei atrás da cama, fazendo um esconderijo perfeito para a aproximação.

Por debaixo da cama eu sentia a dificuldade do homem em acalmar a própria respiração. Ele estava confuso, assustado, sem saber direito o que fazer. E eu estava mais calma do que nunca, centrada, superior. Parece que o jogo havia virado.

Já impaciente, o homem suspirou uma última vez e saiu do aposento, passando pela porta armado, pronto para atirar em qualquer coisa que aparecesse em sua frente. Mesmo que fosse uma menina com metade do seu tamanho.

Quando o homem saiu completamente do quarto, eu rolei para fora da cama e segui seus passos. Levemente abaixada e em completo silêncio. Cuidadosamente caminhei até estar próxima o suficiente para que o tiro fosse certeiro. Fiz a mira na cabeça e silenciei minha respiração. Não soube dizer o que mas algo no ar deve ter chamado a atenção do homem e ele de repente se virou.


Atirei.

E ele também.


Não sei exatamente como o alvo pôde ter me notado, mas a ação foi suficiente para que ele conseguisse sobreviver ao ataque. O meu tiro, no entanto, lhe acertou no braço direito, fazendo-o largar sua arma pouco depois dela ter atirado ao vento.

Aquela seria minha sorte. Ou meu azar. Pois no momento que se sucedeu, o homem, cego pela dor do ferimento e pela raiva da situação, apanhou um objeto próximo e arremessou-o em minha direção. Um ornamento em vidro de minha mãe. Um vaso que ela realmente prezava.

Mesmo atenta, nada pude fazer diante da rapidez daquela ação. O objeto acertou minha cabeça e se espatifou, fazendo-me cair pesadamente no chão. Ainda consciente mas com a visão deveras distorcida, eu ergui a arma e atirei sem mira várias vezes. Agarrada à um súbito de desespero e confusão eu perdi completamente minha seriedade e urrei alto. Naquele momento, minha voz competiu com o barulho dos tiros.

A maioria dos disparos somente arrebentou os armários de vidro do outro lado, mas um deles, talvez dois, conseguiram acertar o alvo. O homem caiu mas os tiros mais uma vez não o mataram. Ele ainda conseguiu tempo para se arrastar até um canto da parede afim de se proteger dos demais. Felizmente, também para longe de sua arma, que havia escapado para longe de nossa visão.

Ainda confusa e dolorida, me levantei cambaleante. Estava coberta de cortes mas meu corpo parecia não se importar com nenhum deles. Passei a mão na minha testa. De um rasgo no supercílio escorria um rio de sangue, mas nem isso meu corpo parecia notar.

Do quarto, a voz do homem ecoava rouca, por vezes se engasgando no próprio sangue. Vendo-se sem saída, ele começara a praguejar. Mas eu estava pronta para terminar aquilo.


Ainda tentando manter certa seriedade, eu entrei no quarto e o encarei novamente.

— Por que? — Perguntou ele, enquanto se arrastava. — O que você está fazendo? Pare com isso! — Eu o observava já com certa irritação, ele estava sujando o chão que minha mãe havia acabado de limpar.


Levantei a arma e apontei para o alvo novamente.

Então, testemunhando minha face enfurecida – e deveras perturbada – em conjunto com a imagem decadente de minha aparência, o homem desistiu dos questionamentos e começou a me insultar realmente.

Ele me atacava com nomes absurdos, mesclando acusações sobre minha sanidade, sobre vergonha e família, sempre engasgando e soluçando em cada palavra. Ele estava completamente desesperado e, naquele momento, eu também.

Ele havia me quebrado.

Já com as lágrimas escorrendo copiosamente do meu rosto, eu acertei o último tiro e calei-o para sempre.

Não havia mais alvos. O plano estava seguindo, mas eu já estava fora da linha.

Após poucos segundos eu me joguei prostrada no chão e olhei em volta, meu foco estava desaparecendo. Completamente desanimada mas ainda tentando me agarrar àquela ideia, eu rapidamente comecei a traçar um novo plano de limpeza: Pegaria as almofadas dos sofás, tiraria o tapete, tamparia com terra a mancha lá fora...

Mas e esse?

O estado do chão estava muito complicado naquele lugar e provavelmente demoraria mais do que o planejado pra limpar tudo. Além disso, ainda haviam milhares de cacos de vidros no chão e quatro corpos para me desfazer.

Olhei o relógio na parede, minha mãe já devia estar chegando.


Espera... Por que eu havia feito isso?


Os pensamentos voltavam.

Imediatamente larguei a arma, me levantei aos tropeços e corri até o armário. Sem raciocinar direito, apanhei qualquer peça de roupa, voltei correndo para o lugar onde estava e comecei a esfregar a poça no chão desesperadamente.

O estado que eu estava antes, aquela perturbação incessante na minha cabeça, começava a voltar. E eu continuava me martelando:


Por que? Minha mãe não vai gostar de ver isso.

Então qual a saída?

Essa não era a melhor decisão! Não pode ser verdade!


Eu esfregava e esfregava, mas era impossível devido à quantidade de sangue. Já completamente suja de suor, sangue e lágrimas, eu não conseguia me acalmar, meu corpo se movia com uma rapidez incontrolável e as dores dos cortes começavam a aparecer. Não havia mais esperanças, eu começava a entender isso. Deste modo, eu teria que tentar algo, era a única coisa que eu poderia fazer.

Larguei o tecido encharcado e hesitei por alguns segundos, minhas mãos tremiam e pingavam sangue a cada movimento. Eu então deitei no chão sujo, abracei as pernas e fechei os olhos.


Eu tenho que voltar!


Eu sabia o que deveria fazer. Eu precisava dormir para não ter que responder com o resultado daquilo tudo. Mas havia muita coisa na minha cabeça no momento. As imagens e consequências continuavam. Os flashes voltavam com força, fazendo minha testa franzir novamente.

Levantei. Daquele modo eu não conseguiria nada. Olhei para o relógio, eu estava correndo contra o tempo. Não saberia como agir se minha mãe chegasse, era um deadline pra mim. Eu precisava me apressar.

Me ergui do chão e minhas pernas tremeram. Com certa dificuldade, consegui correr para o meu quarto e me jogar na cama, como fazia todos os dias. Sem mais me importar com a sujeira, peguei meu edredom, deitei-me de bruços e me cobri, relaxando completamente os músculos.

Por estar coberta de sangue, eu sentia um leve frio, mas isso não me incomodou tanto. Naquele momento, nem mesmo a ardência dos cortes foi suficiente para me impedir de cair no sono.


Eu dormi, finalmente.



* * * * * * * * * *



Meus olhos se abriram na escuridão.


Eu estava em meu apartamento, deitada de bruços sobre um colchonete e congelando por causa do ventilador incidente.

Me forcei a levantar a cabeça e sentar na cama. Desliguei o ventilador. Estava exausta, como se aquele sonho tivesse realmente estressado meus músculos ao limite. A sensação era de que eu havia permanecido somente alguns minutos de olhos fechados para então abri-los novamente naquele lugar. Mas tudo não havia passado de um sonho. Um que muitos até considerariam um grande pesadelo, especialmente pelas lembranças e sensações tão vívidas. Provavelmente era verdade, afinal, eu nunca teria coragem de fazer algo do tipo, por mais "excêntrica" que eu pudesse ser considerada. Felizmente eu tinha uma boa relação com meus pais e acho que isso era o suficiente para não me preocupar no momento.

Vendo que não conseguiria voltar a dormir, levantei-me completamente e caminhei em direção à cozinha. Um café provavelmente me faria bem. Olhei pela janela, a escuridão não me incomodava e eu até a preferia. Lá fora a cidade podre dormia mas o ar sujo das ruas não se dissipava. E nem iria.

Sentei-me à mesa com minha caneca genérica em mãos e apoiei a cabeça sobre o punho relaxadamente. O ar quente da bebida já esquentava a pele e acalentava a mente. As falhas na parede eram alvos de uma contemplação silenciosa. Em poucas horas eu deveria estar acordando para ir trabalhar. Levantar e continuar seguindo uma lamentável rotina de vida, assim como muitos outros daquela cidade. Aquilo normalmente era triste e desanimador mas, naquela madrugada, eu me peguei olhando para os céus com um sorriso no rosto.


Daquela vez eu queria vê-lo clarear.












6 de Abril de 2020 às 21:22 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Yasmin Feitosa A da direita sou eu e a da esquerda também. Mas a que mais sou eu é a do meio, que é a mistura das duas. Não se preocupe comigo. Nos corredores escuros eu jamais estarei sozinha. Caminharei até que eu alcance a porta final. Se eu morrer antes? Então espero que minha consciência vague eternamente pelos corredores. Livre e imortal. Se começou a ler isto pensando que seria uma descrição pessoal, tenho a dizer que você acertou, é realmente uma descrição pessoal. Oras...

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