lolladebeaute Lolla de Beauté

"Estou trancada em meu próprio corpo. Uma prisão eterna, sem centelhas de fuga ou rebelião. É o pior que poderia ter acontecido comigo. Eu deveria estar acostumada a isso, estou aqui a tanto tempo. Acho que esse sempre foi o plano dela, não é? Ela planejava isso, desde o começo. A cela criada por minha mente é escura. Não há janelas, paredes cinzas, uma cama pequena com um colchão velho e duro, o chão frio de concreto. A vista por fora da grade é um breu arrepiante, e às vezes sinto como se alguém estivesse ali, me observando. A sensação era diária, mas ainda gelava minha espinha dorsal. [...]"


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#depressão #ansiedade #psicose #confinamento
Conto
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Confinamento

Estou trancada em meu próprio corpo. Uma prisão eterna, sem centelhas de fuga ou rebelião. É o pior que poderia ter acontecido comigo.

Eu deveria estar acostumada a isso, estou aqui a tanto tempo. Acho que esse sempre foi o plano dela, não é? Ela planejava isso, desde o começo.

A cela criada por minha mente é escura. Não há janelas, paredes cinzas, uma cama pequena com um colchão velho e duro, o chão frio de concreto.

A vista por fora da grade é um breu arrepiante, e às vezes sinto como se alguém estivesse ali, me observando. A sensação era diária, mas ainda gelava minha espinha dorsal.

Não havia noção de tempo ali, afinal, era minha própria psique. Eu passava meus dias, ou como quer que eu pudesse chamar, sentada no frio chão, debruçada em minhas pernas.

Barulhos de corrente ecoavam sem parar, como se alguém estivesse acorrentado e tentando andar; a atmosfera pesada dificultava a respiração. Eu estava constantemente me afogando no seco, congelando no quente, me queimando onde não havia fogo; e eu não podia fazer nada sobre isso.

Algumas pessoas chamariam de ansiedade, pânico, fobia, psicose. Para mim, era apenas eu e minha mente, mesmo um tanto quanto duvidosa.

Eu já havia estado lá fora antes, nem sempre estive trancada nesse amargo inconsciente. Eu me divertia, sorria, brincava… Entretanto, as pessoas ao nosso redor não pareciam gostar de mim. Talvez eu fosse diferente demais.

Então, ela me trancou.

E, das primeiras vezes, eu ainda conseguia escapar e sentir o mínimo gosto da liberdade. Logo, era trancada novamente.

Grades mais grossas.

Fechaduras mais resistentes.

A cada fuga se tornava mais difícil de sair.

Ainda sonhava com o momento em que eu e ela viveríamos em juntas, em harmonia.

Acreditava que ainda pudesse acontecer, mas nunca acontecia.

As lágrimas desciam pelo meu rosto sem cessar. Eu gritava, mas eu sabia que ninguém me ouviria… A não ser ela.

Ela sempre aparecia, sempre com o mesmo vestido preto, se misturando com escuridão do ambiente. Carregava uma bandeja prata, que parecia ter sido tirada do mais fino jogo de jantar de uma família do século XIII, e nela sempre o mesmo conteúdo: remédios.

Era um ritual. Ela destrancava minha cela, eu levantava e ia até o portão, recebendo um copo de água e outro com incontáveis pílulas. Eu as tomava e podia senti-las rasgarem minha garganta.

Eu devolvia os copos vazios. Ela sorria — um sorriso que eu conhecia.

O meu sorriso.

Ela também era eu.

Eu mesma era minha própria carcereira dentro de uma prisão que eu criei.

Ela acariciava meus cabelos e sussurrava aos meus ouvidos que ficaria bem, que tudo se resolveria. Eu não entendia, mas aceitava. Era o único momento em que eu me sentia amada.

Ninguém me amara desde meu primeiro sopro.

Me questionava sobre tudo aquilo. "Por que não posso ser livre?", "Por que você não me deixa sair?"

"É melhor assim." A voz em minha cabeça me respondia.

"Eu quero sair!" Eu gritava, sacudindo as grades.

"As pessoas não nos entendem!" ela dizia.

Silêncio.

"Eu estou morrendo…"

"É melhor assim."

Quem deixaria a si mesmo morrer? Quem deixaria sua essência definhar em troca da apatia social?

Eu, eu deixaria.

Eu era meu pior demônio, e me odiava por saber disso.

A cada momento que olhava para minhas mãos elas estavam menores, mais finas, e mais ossudas.

Enquanto os dias passavam lá fora, minha cela diminuía, o ar ficava mais pesado.

Havia mais pílulas.

Os sorrisos eram maiores.

Até que em um momento, um fatídico momento, aconteceu.

Ela apareceu, como de costume. O vestido voando no negro da cena, a bandeja brilhando e os copos de vidro.

A cela foi aberta, eu não consegui ficar de pé àquela altura. Andei com passos lentos e pesados, com as mãos trêmulas apanhei o copo de pílulas.

Virei-o em minha boca, esperando a sensação costumeira e dolorosa em minha garganta, mas a dor foi outra.

Uma faca. Em meu estômago.

Ela sorria enquanto acariciava meus cabelos.

"É melhor assim".

Minha visão escureceu até o momento em que não pude ver mais nada.

"É por meio deste documento que afirmo que a paciente está com sua condição psicopatológica controlada e está apta para continuar seu tratamento medicamentoso em sua residência, assim como voltar a exercer suas atividades de costume."

Eu segurava a folha branca com uma assinatura mal feita enquanto o médico me dizia coisas que eu sequer podia ouvir.

Eu havia conseguido.

Eu havia matado minha essência.

1 de Abril de 2020 às 03:03 12 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Lolla de Beauté Uma garota que se aventura nas entrelinhas vazias e dos versos imperfeitos

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CM Camila Moraes De Sá
eu nunca li algo tão verdadeiro e ao mesmo tempo ilusório, parabéns
January 24, 2022, 20:21
Ruana Aretha Ruana Aretha
Hello Lolla, tudo bueno? Nossa, honestamente, respirei fundo em cada passo do seu personagem , eu entrei com um salto de nadador olímpico no seu conto e mergulhei em cada martírio. Obrigada por me fazer sentir na pele a sensação desse personagem, afinal isso é um dom.
August 24, 2021, 11:46
Lunéler Elias Lunéler Elias
Estava navegando pela plataforma, em busca de algo que me levasse ao mais profundo abismo. Então esbarrei no seu texto. Ainda estou tentando "digerir" a carga emocional do enredo. Fazia tempo que não lia algo tão profundo e intenso. Fiquei curioso para saber suas inspirações para conceber essa obra. Parabéns pela excelente trabalho de construção. Sua escrita é impecável.
August 03, 2021, 16:26
Leonardo Janeczko Leonardo Janeczko
Confesso que fiquei levemente intrigado no começo e quase parei de ler, porém, algo me segurou... o mistério que envolve cada linha me trouxe até as linhas finais. Um final que trouxe uma agradável surpresa e um desfecho surpreendente para essa história.
June 27, 2021, 18:23
Isís Marchetti Isís Marchetti
Olá, Lolla! Tudo bem com você? Faço parte do Sistema de Verificação e venho lhe parabenizar pela Verificação da sua história. Cara, eu ainda estou no chão com cada linha lida nesse texto. No começo eu conseguia me identificar com a personagem em alguns aspectos, mas conforme eu fui chegando mais próxima do fim eu fiquei paralisada com o choque de realidade que me tomou ao me dar conta de que esse conto é tão real como o fato de precisarmos do oxigênio para continuarmos vivos, entende?! A parte de mim que é extremamente ansiosa se sentiu abraçada em alguns momentos, mas a verdade é que eu não tenho a mínima vontade de chegar a ser tratada assim, prefiro eu mesma conviver com meus defeitos e eu mesma lutar contra muitos outros lados que as vezes me assolam. Bom, vamos lá. A coesão e a estrutura do seu conto estão maravilhosas. A narrativa está simples, mas perfeita ao seu modo, uma leitura simplesmente encantadora e melhor do que isso é que ela é altamente reflexiva. Acredito que seu texto vai ajudar muita gente ainda. Quanto à personagem principal, eu espero que após sair daquele momento aterrorizador que ela passou, ela tenha conseguido lidar com a sua vida de uma maneira melhor e mais saudável. O que mais me impactou foi a fala final de que ela havia se livrado de sua essência e eu não soube como interpretar aquele término. Quanto á gramática, seu conto está muito bem escrito e desenvolvido. Ele é maravilhoso de inúmeras formas, tanto que seria praticamente impossível apontar uma a uma. Abraços.
March 14, 2021, 18:02
Douglas Melo Douglas Melo
Valeu cada segundo lendo esse texto
January 20, 2021, 17:17
Douglas Melo Douglas Melo
Incrível
January 20, 2021, 17:17
Karina Zulauf Tironi Karina Zulauf Tironi
Caramba, Lolla! Que conto intenso, com um final surpreendente. Adorei cada palavra! Parabéns pela escrita maravilhosa <3
November 26, 2020, 18:25
SS Sueli Salles
Que história intrigante! De tirar o fôlego... Gostei do seu estilo e vou ler os outros textos. Bjs e, mais uma vez, obrigada pelas dicas.
November 22, 2020, 14:50
Kaline Bogard Kaline Bogard
Olá! sua história é muito interessante. Você escolheu abordar o tema de um modo mais subjetivo, que nos faz questionar e querer saber o que está acontecendo com a personagem. Cheguei a cogitar diversas hipoteses, entre elas, inclusive, uma espécie de tentativa de suicidio. E no fim... temos algo mais complexo que me surpreendeu. Gosto quando a história consegue isso: trazer uma "reviravolta" que quebra as expectativas que a gente cria, mas não de um jeito ruim. A surpresa foi ótima! Tão boa quando o seu portugues. Também destaco o modo como estruturou o texto, intercalando paragrafos longos com frases curtas de impacto, que tiravam a fluencia da leitura, como se a mente do leitor estivesse navegando pelas palavras e se depara com um muro que o faz prestar atenção de modo mais contundente, porque são frases e palavras que sinalizam uma mensagem importante sobre o que está, de fato, acontecendo. Parabéns.
April 07, 2020, 13:13

  • Lolla de Beauté Lolla de Beauté
    Olá! Muito obrigada pelo comentário! Fico feliz que tenha gostado do conto, me dediquei para tentar um estilo diferente, já que costumo usar muito essa temática. Me sinto muito inspirada em continuar escrevendo e, caso você sinta interesse, continue me acompanhado. Abraços! April 08, 2020, 02:42
  • Lunéler Elias Lunéler Elias
    Essa comentário descreve boa parte dos aspectos que observei no texto. Reitero-o. August 03, 2021, 16:21
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