vanessag1408 Vanessa G.

Uma garota encontra uma foto que mudará sua vida para sempre.


Conto Todo o público.

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Foto de Família


Havia me deitado há pouco. Em noites quentes como aquela, demorava mais a pegar no sono. De súbito, fui despertado pelo barulho das sirenes e, logo, um intenso cheiro de madeira queimada começou a dominar a atmosfera. Corri em direção à janela da sala da frente e pude vislumbrar a cena: a casa do velho lenhador estava em chamas. Morava em uma pequena vila do interior, os recursos eram escassos, não havia hospital. O corpo de bombeiros mais próximo ficava a uma hora dali. Àquela altura, não havia muito o que fazer.

Andei em direção ao aglomerado que se formava perto da casa, mas minha maior preocupação era a filha do lenhador. Chamava-se Alana, devia ter agora quinze anos, era uma menina tímida, de longos cabelos castanhos, que sempre os trazia trançados ou impecavelmente alinhados num rabo de cavalo. Senti um alívio quando pude percebê-la a distância, olhos vidrados, o cabelo todo remexido, como se tivesse saído às pressas. Estava em um canto e observava tudo com atenção. A luz dançava em seu rosto, brincando com as sombras, e pude notar o esboço de um sorriso.

Sim, Alana sorria. Sua casa estava sendo consumida pelo fogo e ela estava sorrindo. As pessoas se movimentavam ao redor dela, uns soltando gritos de horror, outros se perguntando se o velho lenhador ainda estava dentro da casa ou se havia conseguido escapar. Os bombeiros faziam seu trabalho, controlando a pressão da mangueira de água. E, finalmente, restava apenas madeira retorcida, cinzas e alguns pedaços de objetos, tão enegrecidos pela fumaça que pouco podia se distinguir. Uma ambulância encostou e de dentro desceram dois paramédicos trazendo uma maca. Os bombeiros pediram para que as pessoas se afastassem, e, minutos depois a maca voltava, mas não estava mais vazia.

...

Eu trabalhava como vendedor no único comércio local. Por se tratar de uma vila interiorana, o comércio, na verdade, funcionava como um armazém, onde se podia encontrar desde produtos básicos de mercearia até artigos de primeira necessidade para as atividades no campo. Conhecia o lenhador apenas de vista, porque, geralmente, ele mandava sua filha fazer as compras semanais. Ela falava pouco, olhava por baixo, algumas vezes respondia a meus cumprimentos. Na maioria do tempo, estava concentrada, como se estivesse sempre remoendo pensamentos sombrios. Pegava os produtos da prateleira de maneira automática, colocava na cesta e pedia para anotar na conta de seu pai.

Sempre a achei uma moça bonita, mas eram outros os motivos que me despertavam o interesse. Por um longo tempo, contemplei de modo velado sua personalidade incomum. Admirava-a, de certa forma, pois era uma incógnita. Esforcei-me para tentar descobrir qual era aquele mistério que a fazia se perder dentro de suas próprias meditações.

Naquela última semana, ela estava diferente. Me cumprimentou, apanhou um galão de gasolina e me perguntou quanto era. “Vinte reais”, respondi. Ela me entregou a nota e saiu com o galão. No outro dia, veio buscar mais dois galões e, notando minha cara de curiosidade, comentou que seu pai tinha muita lenha para cortar, que depois de tanta chuva finalmente a madeira havia secado e que, agora, ele estava com muito serviço acumulado. Pagou os quarenta reais e disse que voltaria depois para pegar o outro galão, pois só conseguia levar um por vez. Me ofereci para ajudar, ia ser uma longa caminhada de ida e volta. Ela parou, pensou por um momento e pôs o galão no chão. Tirou um envelope do bolso da calça e me entregou. “Você pode guardar para mim? Tenho medo de perder no caminho. Depois eu pego com você, pode ser? ”. Fiquei surpreso, pois, por algum motivo, ela confiava em mim.

Alana não voltou mais, não veio buscar o outro galão, tampouco se lembrou do envelope. Alguns dias se passaram desde sua última visita, então comecei a desconfiar que ela houvesse deixado o envelope para mim. Resolvi abri-lo. Dentro, uma foto mostrava um homem de mais ou menos uns trinta anos abraçado com uma garota que parecia não passar de dez. Ela se parecia muito com Alana, com a diferença de que seus cabelos eram mais escuros e o nariz, um pouco mais arredondado. Mas o homem era muito semelhante ao seu pai, na verdade, era igual a seu pai, só que mais novo. Guardei a foto no envelope e fui para casa.

...

Em noites quentes, costumava deitar cedo, porque o calor atrapalhava meu sono. Naquela noite, porém, o sono demorou mais ainda, porque aquela foto não saía da minha cabeça. Toda vez que fechava os olhos, a imagem ressurgia e me deixava mais intrigado. Comecei a lembrar de coisas que os moradores comentavam a respeito do lenhador. Sua esposa havia se suicidado quando Alana ainda era muito nova e ele era um homem de hábitos reclusos, “não se misturava”, como eles gostavam de dizer. “ Como um homem pode aguentar tanto tempo sozinho? ”, se perguntavam. Diziam que ele nem frequentava as “casinhas” da região (e por “casinhas” os homens queriam se referir a pequenos bordéis que ainda existiam ao redor da vila). Sempre finalizam essa discussão insinuando coisas feias, incestuosas. Enquanto minha mente viajava, adormeci. E acordei com o som das sirenes.

...

O corredor de rostos lamentosos ia se desmanchando à medida que a maca voltava para dentro da ambulância. As portas do veículo foram fechadas, os bombeiros recolheram seus equipamentos e as pessoas começaram a voltar para suas casas. Apenas Alana se mantinha imóvel, com a mesma expressão no olhar. Parecia distante de tudo, e assim estivera enquanto tudo acontecia. Então, ela virou o rosto e me fitou, e o sorriso desapareceu. Havia ali agora um semblante de alívio. Deu alguns passos na minha direção e quando chegou à minha frente, respondeu como se lesse as dúvidas em meu olhar: “Você é um rapaz jovem, mas acho que entende um pouco a vida. Muitas noites tive que trancar a porta do meu quarto, muitas vezes tentei fugir. Nunca entendi porque minha mãe me abandonou tão cedo, porque tirou a própria vida. Até que encontrei aquela foto. Era uma foto dela, com seu pai. Meu pai. Ela não poderia aguentar olhar para mim, depois de tudo que passou. Agora, finalmente, estou livre e ela também pode descansar em paz. ”

Podia entender muitas coisas agora, seus motivos, sua personalidade, seu modo de olhar. Só não entendia por que ela havia me escolhido para dividir aquele segredo.


1 de Março de 2020 às 20:52 2 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Vanessa G. Amo o Cinema, a escrita e a arte de inventar histórias. Longa vida ao rei Stephen King!

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Karimy Lubarino Karimy Lubarino
Olá, autora. Faço parte do Sistema de Verificação e estou aqui para parabenizá-la por sua história ter sido classificada como "Verificada". É um conto bastante intrigante e genuíno, com palavras singelas, mas que muito dizem. Gostei bastante da leitura. Apesar da boa gramática, porém, gostaria de aconselhá-la a revisar o uso dos porquês, principalmente para perguntas indiretas.
March 04, 2020, 14:10

  • Vanessa G. Vanessa G.
    Muito obrigada pela dica, Karimy! Revisei o texto e fiz as correções necessárias. March 06, 2020, 19:54
~