guilhermerubido Guilherme Rubido

Quando Henry desperta de um sono mal dormido, descobre que está enterrado em uma profunda cova. Do topo de um gigantesco obelisco, uma besta em forma de chacal o observa com curiosidade. Na noite fria vigiada pela presença da Lua, homem e besta conversam sobre o obscuro, onde pecados são revelados e pagos.


Horror Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#edgar-allan-poe #288 #stephen-king #Franz-Kafka #terror #horror #medo #conto #português
Conto
7
4.4mil VISUALIZAÇÕES
Completa
tempo de leitura
AA Compartilhar

Acerto de Contas

Ainda meio embalado por uma noite mal dormida de sono agitado, Henry – que continuava com os olhos fechados – levou a mão direita ao peito, onde, ao que pareceram ser já alguns minutos, sentia uma leve e presente pinicada. No começo, esta presença era apenas um quase imperceptível palpitar; contudo, conforme prosseguia, uma dor vaga tomava forma aos poucos.

Apesar da dor, sua mão não se moveu. Continuou repousada onde estava. Sentindo seu peito tornar a palpitar, forçou-a outra vez, ainda tomado pelos movimentos automáticos de um corpo adormecido e, mais uma vez, nada ocorreu. Então, algo o fez emergir ao estado de consciência. De olhos fechados, Henry experimentou uma estranha sensação de sufocamento. Seu corpo parecia estar preso à cama; totalmente afundado no colchão de onde não conseguia se desvencilhar. Afundando cada vez mais. Súbito, o toque leve que sentia na região do peito irradiou-se de uma só vez, transformando-se em uma pontada brusca de dor. Tentou levantar o braço uma vez mais, agora ciente do ato e com mais determinação, mas não conseguiu. Sentiu apenas o deslizar frio de algo macio correndo pela superfície de seu braço e escorrendo pelos dedos como areia fina.

Assustado com o estranho toque gélido e molenga do que quer que fosse aquilo – em nada igual a segurança confortável do cobertor de seda em que se lembrava de ter dormido – e despertado pela dor intensa, finalmente abriu seus olhos para que, em uma torrente de diferentes informações, se deparasse com um cenário totalmente novo. Bizarro e real o bastante para que o fizesse duvidar de que fosse um simples sonho.

Absorvendo o mundo à sua volta, soltou um berro confuso. O dossel que envolvia sua cama desaparecera, assim como a cama e os travesseiros. Seus móveis já não existiam mais, sumiram com todo o resto. Na verdade, por mais louco que aquilo soasse, seu quarto inteiro havia desaparecido como se jamais tivesse existido. Estava muito escuro ali. Quase não se via nada. E a pouca – mísera, apenas um reflexo – luz vinha da lua que, escondida, dançava em algum canto do céu azul-negro que flutuava sobre a cabeça de Henry. Aos poucos seus olhos começavam a dar forma para as coisas, desvendando bem lentamente o ambiente à sua volta. O que chamava a atenção de Henry é que ele podia sentir uma leve brisa gelada vindo do alto...

Finalmente, algumas nuvens se dissiparam no céu e a luz da lua se despejou sobre Henry como um grande holofote fantasmagórico, revelando o cenário oculto para onde Henry fora tragado. Com horror, percebeu no mesmo instante que seu corpo estava enterrado até o pescoço. Ele estava em uma cova quadrangular e, pelo que a lua permitia ver, era absurdamente funda. A repulsa não lhe veio de imediato. Sua mente estava confusa e ele se esforçava para colocar as engrenagens para funcionar. Dessa vez, levantou uma das mãos e viu a terra se desfazer em sua palma. O toque macio e frio que sentira mais cedo. Estava enterrado até o pescoço. Apenas a cabeça e as mãos estavam livres daquela prisão molenga. Revirando os olhos, viu que alguns insetos rastejavam por sobre os flocos de terra que cobriam uma parte de seu peito. Mais uma vez gritou e se agitou. Debateu-se em vão sob o muro de terra que o prendia à escuridão. A experiência de não conseguir se mexer era terrível. E ele viu uma minhoca aproximando-se de seu rosto. Apesar de conseguir ver o céu, a região em volta da boca do buraco estava tomada por uma densa cortina de névoa.

Diabos, mas onde é que eu estou? Ele pensou, certo de que um pesadelo não poderia ser tão real.

Desesperado, Henry se debateu. Suas unhas arranhavam o cobertor de terra e as gigantescas paredes que o cercavam feito um animal acuado que tenta escapar de um buraco estreito. Seus berros agoniados ecoavam e escalavam as paredes desalinhadas da cova, ecoando e reverberando, sem aparentemente conseguir escapar para fora. Para onde alguém poderia escutá-lo, Henry pensou. Se é que tem alguém e, por Deus, que tenha! Para sua surpresa, uma risada tétrica flutuou até ele, vindo lá de fora.

Ao ouvi-la, Henry parou de gritar. A presença de um outro alguém fez com que ele recuperasse um pouco da razão. Levantou a cabeça – o pouco que a terra que o cobria permitia – e tentou olhar para o topo da cova. O buraco era enorme. Parecia abrir-se uns 25 metros chão adentro. Mesmo livre das nuvens, quando a luz que se despejava sobre ele alcançava o fundo da cova, já estava muito menos intensa. As garras prateadas da lua eram cortadas antes que pudessem tocá-lo, ofuscando apenas a visão do topo do buraco.

Como eu vim parar aqui? Perguntou-se confuso. Será que cai em um buraco enquanto voltava bêbado para casa? Bom, lembrava-se de estar comendo em algum lugar maravilhoso, sem sua mulher para importuná-lo e envergonhá-lo na frente de todos e... puff!, de repente, sem explicação alguma, estava ali.

Tentou alcançar com a mão livre o bolso do paletó para pegar o relógio e ver que horas eram, mas era impossível. O cobertor de terra parecia ficar cada vez menos maleável. De qualquer modo, era tarde. Provavelmente umas 3 horas da madrugada. Será que aquele monte de perfume e flores em meu quarto me drogaram? Ele pensou, lembrando-se dos frascos de perfumes e vasos de flores que se espalhavam aos montes pelo quarto.

Com a ajuda da brisa noturna que soprava lá de cima, a névoa se dissipou e Henry pôde ver além das bordas do buraco em que estava. À frente da cova, na superfície do mundo externo, fazendo o papel de uma estranha e exagerada lápide, um terrível obelisco cristalino se erguia eminente diante do corpo soterrado de Henry. A estrutura imponente – a altura deformada e ampliada exageradamente pela perspectiva – refletia para todos os lados a luz prateada que recaia sobre ela. Coroando a torre, uma cúpula de vidro aberta se equilibrava bamboleante na aparentemente frágil ponta do obelisco, que se erguia como se tentasse alcançar e perfurar o céu. Tudo na cena parecia impossível. Uma situação tão peculiar, com objetos tão diferentes se encontrando e se combinando de maneira tão estranha, que era quase impossível não perceber a característica onírica daquilo tudo. Um delírio louco da mais pueril e desgovernada fantasia. Singrando a realidade, algo de vago flutuava no ar. Uma fina película que protege a fragilidade dos sonhos. Mas, ainda assim, real. Real demais, ele pensou aturdido. Afinal, ele não sentira a viscosidade daquela minhoca que encostara em sua bochecha enquanto seguia caminho para algum recôndito da terra batida? E a brisa que acariciava seu rosto, não era real?

E, por fim, aquela risada que ouvira há poucos segundos. Sim, ele a escutara. Tinha certeza de que não fora imaginação. Ela estava ali, escondida lá no alto. Talvez caçoando dele. Ou talvez só um bêbado ou um mendigo que o encontrara caído enquanto caminhava pela cidade. Henry pretendia descobrir, e logo. Se fosse necessário, daria todas as moedas que levava consigo para que fosse ajudado. Ele só precisaria de uma mãozinha para alcançá-las no bolso da calça.

O tempo passou sem que ele conseguisse se desvencilhar de seu leito de terra. Ele gritou mais algumas vezes em vão, mas não houve nenhum sinal daquele riso sombrio outra vez. Apenas o sussurrar leve do vento.

— Isso não é real.... — Sussurrou Henry desalentado. Suas mãos latejavam por conta dos arranhões que desferira contra a terra que o cercava. Uma de suas unhas tinha caído no processo, e agora o dedo sujo de terra latejava sob o sangue encardido. Pulsando de dor. Fazia muito frio ali em baixo e seus lábios tremiam sem parar, pálidos como a luz que o iluminava.

E como fora esplendido aquele jantar! Ele pensou, esquecendo-se de sua situação por alguns momentos. Era a primeira vez em que conseguira sair sem a esposa ao seu lado, e isso o poupou de muitas coisas a que havia se habituado. É bem verdade que derrubei minha taça de vinho, e todos aqueles desgraçados zombaram de mim por um tempo. Mas, sem ela... Sem ela as coisas foram diferentes. Passei a festa toda sem quase pensar nela. Que maravilha! Ele se exultou com a nova mudança. Mas será possível que eu tenha me empolgado tanto assim?

— Devo ter passado dos limites no jantar. — Ele continuou, os dentes batendo de frio. —Acabei comendo demais e agora meu corpo me cobra. É-É... isso. É só um pesadelo...

Porém, ao falar, Henry percebeu que as palavras soavam reais demais. Tangíveis o bastante para que ele duvidasse do que estava dizendo. Assim, em uma mudança brusca de comportamento, começou a gritar por ajuda novamente:

— Ei! Alguém me ajude! Por favor, estou preso aqui! — As palavras flutuavam para fora de sua boca e dançavam sem sentido no ar frio da noite, perdendo-se pelas paredes da cova. — Sei que tem alguém aí! Eu ouvi você! Por favor, sou um homem abastado. Posso pagar qualquer quantia!

Sem resposta, berrou mais uma vez. Dessa vez um grito de ira. Em um ataque frenético e descontrolado, debateu-se sem parar. A terra chacoalhava, mas seu corpo não saia do lugar. Sentia que nem estava se movendo. Os insetos que deslizavam por cima dele saíram correndo do súbito terremoto. Alguns buscaram abrigo na ilha segura que era a cabeça de Henry. Com o canto do olho, viu uma centopeia escalar seu maxilar. Sem saber o que fazer, mas louco de repulsa, começou a remexer a cabeça o tanto que era possível e assoprar.

— Aaaaagh! — Grunhiu Henry, tentando se livrar daquela chuva de patinhas que lhe fazia cócegas. — Sai daqui! Merda, merda!

Foi quando a gargalhada soou mais uma vez naquela excêntrica noite.

Ignorando a centopeia por alguns segundos, Henry olhou para cima em busca do miserável que zombava de sua situação.

— Desgraçado! Está achando engraçado?! Me tire logo daqui! — E, lembrando-se de que a voz talvez fosse sua única esperança, completou: — Por favor, só me ajude! Pago o que quiser.

Lá em cima, a lua mais uma vez se avolumou. Era agora gigantesca. A pupila vidrada de um gigante insano. Flutuando no céu, assomava-se sobre a cova como um gigantesco meteoro paralisado em seu trajeto. A nova luz que esse fenômeno proporcionou permitiu que Henry vislumbrasse a fonte de sua loucura:

Encimando a cúpula que cobria o obelisco de cristal, uma estranha criatura se dobrava sobre as bordas do recipiente. A silhueta daquele ser deformava-se sob as luzes e sombras da noite, fazendo com que Henry pouco entendesse sobre o que via. O que sabia era isso: era um animal. Do fundo de sua cova, Henry achou que a figura empoleirada parecia uma cria grotesca de um chacal com uma gárgula de pedra que, esquecida pelo tempo, cobria-se inteiramente de um limo escorregadio e denso. Na face, uma sangrenta atadura, suja e carcomida, se estendia sobre os olhos do animal ou besta. Alguns pedaços ensanguentados do pano caiam pelo rosto do chacal, flutuando no ar feito flâmulas escarlates.

A criatura é cega, pensou Henry. Ou, o que é bem pior, não tem os olhos! Talvez os tivesse perdido em alguma luta com outros animais. Diante da novidade, Henry comemorou. Seria mais fácil enganá-la assim. Além disso, a cabeça de um chacal não devia conter um cérebro muito complexo. Surpreendeu-se com a facilidade com que aceitava os fatos que lhe eram apresentados, por mais absurdos e irreais que eles fossem. Achava, afinal, que isso se devia ao aspecto onírico de tudo aquilo. A constante impressão de que, no fim, tudo não passava de um sonho ruim. Então, Henry dançou conforme a música.

Decidido a sair, chamou o chacal:

— Ei, você! Aqui em baixo! Preciso de ajuda!

No primeiro momento, nada aconteceu. Sentiu-se um tolo por tentar fazer contato com um animal. Mas estava desesperado. E, além disso, insistiu ele, lembre-se que é tudo um sonho, Henry.

Por um momento, achou que ele não o tinha escutado. Estava, no entanto, equivocado. Em um movimento lento, o chacal girou a cabeça em direção ao fundo da cova. Henry encarou as vazias ataduras com seriedade, sentindo-se intimidado pelo olhar da criatura. O vento que soprava lá no alto balançava os pedaços pendentes de faixa e soprava os pelos da besta. O animal, embora cego, olhava fixamente.

Henry estremeceu e ficou imóvel. Mas, mudando a postura de repente, o chacal abriu um sorriso largo e cravejado de dentes agudos. Parecia a Henry que a criatura se surpreendera ao vê-lo ali.

O chacal se ajeitou por cima das bordas, curvando-se sobre o buraco. Vidrado, olhou para o buraco; para o fundo da terra onde os vermes rastejavam: olhou direto para Henry e falou:

— Ei, amigo! Como você foi parar ai em baixo?!

A voz era horrorosa. Tão esganiçada que nem mesmo a distância e as paredes do buraco eram capazes de detê-la. Um tom de troça e zombaria que chegava a ser palpável.

— ...sonho! É só um sonho ...corda, Henry. Acorda! — A voz de Henry oscilava entre os sussurros e meros sopros de ar.

— Está ficando louco, homem? Pensa que não sou real?! — Dessa vez, a voz esganiçada se tornou o sopro implacável de um demônio. A voz era horrível de se ouvir. Deslizava e se afundava em seus tímpanos como baratas excitadas.

Henry parou e se encolheu. O corpo tremia de frio e medo. Tomou coragem e olhou para cima. O chacal o observava. Lá do alto, Henry parecia como uma criança assustada no berço.

Hesitante, Henry perguntou:

— Qu... Q-Quem é vo-você? — Henry tentou não gaguejar, mas agora sua boca balançava como um chocalho, os dentes se chocando uns com os outros.

Com uma risada, o chacal falou:

— Ah, muito bem! Muito bem! Então sabe falar, não? Vejo que, lá no fundo, ainda é um homem! Meu nome é Sibuna — o animal falou e, equilibrando-se na borda de seu leito, fez uma reverência exagerada —, o andarilho do deserto e guardião da travessia. Seu povo me conhece por outro nome. E outros povos guardam em suas lembranças mais outros mil nomes. Meu caro, sabe por que está aqui?

Remexendo-se sobre as bordas de seu estranho poleiro, os arqueados pés do chacal derramaram sobre a cova algo que Henry ainda não havia percebido no cenário. Dentro da cúpula de vidro, uma grande quantia de terra preta era armazenada. Uma terra escura e densa.

Deitado na escuridão, Henry fechou os olhos para se proteger da poeira e dos nacos que agora caiam lá de cima.

Quando a chuva de terra cessou, Henry abriu os olhos e respondeu:

— Não sei. Mas isso me parece muito um sonho. Custa-me acreditar que você seja real. Um maldito chacal falante? Pff... — Henry deixou o ar sair de sua boca como quem diz “Ah! Por favor, né?!”. — Apenas me tire daqui, fazendo o favor.

Tsc, tsc, tsc — lamentou-se o chacal, levando a pata ao rosto em sinal de negação. O movimento fez com que uma boa quantia de terra balançasse e despencasse sobre a cabeça de Henry. — Acha mesmo que isso aqui é um sonho? Henry, por caso esse monte de terra que tá aí parece de mentirinha pra você?

— Bom — Henry pensou e falou —, para ser sincero, não me importo se estiver dormindo ou se, por algum motivo de que não me lembre, eu tenha caído nesse buraco fétido. Em ambos os casos, só quero que me tire daqui. E quero que me tire agora!

O chacal começou a gargalhar. Era uma risada tenebrosa que tomava a noite e se estilhaçava feito cacos de vidro no ar em um som estridente, deslizando cova abaixo e fazendo com que Henry se sentisse sufocado por aquela presença aterradora. Interrompendo as risadas e voltando a olhar para ele, o chacal continuou:

— Deve ter sido uma queda e tanto, hein, Henry? Sim, sim. Acho que consigo de tirar daí. Pra isso, só preciso que me conte algumas coisas — falou e sorriu.

Só pode ser brincadeira, Henry pensou. O que aquele maldito chacal quer? Já disse que tenho moedas para lhe dar. Está é zombando da minha cara.

— Contar? E contar o quê?! Droga, já não lhe disse qu...

— Basta! — A voz do chacal trovejou. — Não vê que não dou a mínima para suas posses? Se não quer a ajuda de Sibuna, tente a sorte sozinho. Vamos, vá em frente! — O animal se animava, saltitando no mesmo lugar. — Jogue uma moeda de ouro na terra e torça para que nasça uma escada ou qualquer coisa do tipo. Não... não é isso que quero. — As últimas palavras soaram sérias e sombrias.

— Tudo bem — Henry falou sem opção. — E posso saber o que quer que eu conte?

— Nada de mais — Sibuna falou com aquele paredão de dentes amarelados à mostra. — Apenas alguns segredos, que tal? Me parece um preço razoável dada a sua situação. Mas, se não quiser, tudo bem para mim... — deu as costas e começou a se afastar, desaparecendo no fundo da cúpula.

— Não, espere! — Henry se debateu na cama de terra, usando todas as forças que tinha para que sua voz alcançasse o animal. — Vou contar, só me diga o que em específico!

Sibuna voltou a surgir pela borda do vidro, sorrindo como sempre.

— Ora, Henry. Qualquer coisa! E não adianta mentir, meu faro é bem eficiente, Henry.

Juntando as mãos – o máximo que podia com os braços enterrados até o pulso –, Alan começou a falar. Primeiro engatinhando e, depois de algumas palavras, sentindo-se mais confortável. Do alto, Sibuna o encarava com seriedade.

— Bem... é... Não ria! Isso é sério.

— Não vou rir, prometo — a criatura falou, assentindo com a cabeça.

— Bom, sei que é estranho, mas... Quando vou tomar café com os amigos em alguma dessas cafeterias de esquina e, bem... vejo todos eles bebendo e apreciando aquele gosto amargo e horroroso do café puro como se não fosse nada, dou um jeito de sair da mesa, dizendo que vou ao banheiro ou qualquer coisa do tipo, só para poder alcançar a garçonete antes que ela deixe o balcão para que eu consiga colocar açúcar na minha xícara sem que eles vejam de onde estão sentados. É verg...

— Poupe-me de suas inseguranças idiotas! — Sibuna falou. — Quero saber de seus segredos. Seus segredos reais. Aqueles que te fazem ficar se remexendo na cama sem que consiga dormir pensando neles. Um que a mera ideia de alguém descobrindo faça com que você fique branco.

— Mas se meus amigos descobrem que...

— Chega! — Falou Sibuna com uma voz ameaçadora que não permitia desafios. — Por que não me conta da sexta-feira passada, quando você roubou aquela garrafa lacrada de vinho do seu amigo Marlo, bem na casa dele? Você certamente poderia ter comprado uma de qualidade parecida ou até superior. Mas não era isso que te incomodava, era Henry? O que te incomodava era o fato dela ser única. Ter sido feita especialmente para Marlo. E você não podia suportar isso. Conte-me, Henry, como foi a sensação de roubar um amigo bem na casa dele?

— Não é bem ass... — Henry protestou, mas parou antes de terminar. — Espera um pouco. Como você sabe dessas coisas? Você não estava lá. Quem é você, afinal?!

Isso provava que tudo aquilo não passava de um sonho, Henry concluiu. Afinal, como aquela criatura poderia saber do que acontecera? Ninguém mais sabia. Apenas Henry.

— Já disse, Henry. Eu sei de tudo sobre você. Como falei antes, meu nome é Sibuna. Mas, também, de alguma forma, eu sou você. — Falou o chacal e começou a rir loucamente, babando sem parar e derramando terra para todos os lados.

Meu deus! Eu só quero acordar logo! Será que falta muito para o nascer do Sol?

— Então, se já sabe de tudo como diz, por que quer saber?! — Henry gritou lá para cima. — Apenas deixe-me aqui até que eu acorde. Não quero mais sua ajuda, besta infernal.

Sem obedecer às suas ordens, o chacal continuou com seu interrogatório.

— E sua esposa, hein, Henry? — A criatura perguntou de forma maliciosa, a longa língua deslizando por entre os dentes. — Ouvi falar que estão procurando por ela. É verdade?

Desgraçado! Henry pensou, agora furioso demais para manter a postura. Como ousa falar disso?

— Ela está desaparecida, sim — explicou Henry. — Já comuniquei às autoridades e expus tudo o que sabia. Certa manhã ela saiu para passear pelos jardins de nossa casa e, sem que nenhum criado desse falta, ela simplesmente sumiu.

— Verdade, verdade — concordou Sibuna sem conseguir conter os rios de baba que escorriam pelos lábios brilhantes e negros. — E você a odiava, não é verdade? Nós dois sabemos como era horrível a sensação de ir às festas com ela. Aqueles olhares de pena virando-se em nossa direção. Como a pele branca de Mirla ficava ainda mais clara e doentia sob os lustres amarelados dos salões. Você ficava vermelho de raiva e vergonha. Tsc, tsc, tsc — o chacal fez aquele barulho irritante outra vez.

Incomodado com as palavras do chacal, Henry se remexeu no túmulo improvisado. Nos últimos minutos, intrigado como estava pela conversa com Sibuna, acabara se esquecendo de onde estava. Agora, voltava a se lembrar.

— Era aquela maldita doença dela que os médicos nunca conseguiam identificar ou amenizar. Tão magra! Um fantasma descarnado que rondava para lá e para cá atrás de mim. Mas eu a amava, juro que sim!

— Acredito, acredito — o chacal falou com uma voz compreensiva. — Mas isso mudou com o tempo, não é mesmo, Henry? — Disse e sorriu para ele. — Depois, quando ela ficou doente e feia, não era amor que você sentia; era nojo! Então resolveu se livrar dela, certo? DIGA, ALAN! Deixe-me ver essa língua de verme contar suas mentiras! DIGA!

As palavras retumbaram no céu como portentosos trovões. Henry se encolheu o máximo que podia, experimentando um terrível estado de medo e vulnerabilidade. Não havia mais brincadeiras ou conversas fiadas. Sibuna estava furioso com ele. Suas palavras desciam como relâmpagos acusatórios sobre Henry, derrubando quantias enormes de terra que começavam a soterrar Henry por inteiro.

— Estou ficando sufocado! — Henry gritou para o chacal. E estava memo. Pois os flocos de terra que caíram se esgueiraram por dentro de sua boca e prenderam-se à sua garganta. O nível da terra à sua volta havia subido muito de repente, de modo que sua face se transformara em uma pequena ilhota pálida em meio ao lamaçal, onde só se viam seus olhos esbugalhados, o nariz e a boca arfante. O resto estava totalmente coberto, perdido sob o escuro.

— Então diga, Henry! Diga, seu filho da puta miserável! Onde está sua esposa de quem você sentia tanta vergonha?! Onde você a escondeu?!!

Não havia para onde escapar. Sentia-se encurralado, preso em um beco sem saída de um emaranhado labirinto. Sentia-se tão pequeno ali em baixo. Frágil e doente.

— Não fiz anda com ela, eu juro... — As lágrimas escorriam dos olhos e eram absorvidas pela terra que se aproximava.

— DIGA!

O mundo parecia estremecer em volta de Henry, como se um intenso terremoto assolasse a superfície terrestre. A terra das paredes da cova começava a se desprender e desabar em blocos pesados e maciços. Lá do alto, o chacal gritava e o amaldiçoava, possuído por uma cólera insana direcionada a ele.

É só um sonho, Henry! Diga a ele! Que importa? É só um sonho... Henry estava chorando, soluçando feito um bebê. A terra misturava-se em sua boca com o choro e ele começou a se engasgar. Se fizer com que tudo isso acabe, então está ótimo... Diga a ele.

Tossindo e sem conseguir puxar o ar necessário, ele gritou já soterrado nas profundezas:

— Ali! Eu a matei! Agora me tira daqui, pelo amor de DEUS! ME TIRA DAQUI!! Por favor!

Henry apontou e Sibuna sorriu. Um sorriso triunfante que sinalizava que o interrogatório estava finalizado. Assentindo triunfante, Sibuna falou suas últimas palavras e, com um último sorriso, deixou o resto da areia cair dentro da cova, cobrindo a cova até a borda.

Com uma voz ofídica, o chacal sibilou suas palavras finais em um sussurro. Mas havia muito barulho, e Henry não ouviu.


***


A criada fechou a porta do quarto de Henry e, descendo a escadaria atapetada, correu para a porta da frente, onde alguém batia na aldrava. Era o inspetor da polícia civil. O homem viera para fazer só mais algumas perguntas a Henry antes de suspender – por enquanto – o processo de investigação que buscava encontrar Mirla Sanley, viva ou morta.

Nancy abriu a porta e pediu para que o homem vestido em um sobretudo marrom entrasse. Ele acenou e avançou. Henry sabia que o inspetor Brum viria visitá-los por volta das 9h da manhã, no entanto, ele ainda dormia.

— O senhor Henry ainda está dormindo. Vou chamá-lo agora mesmo — Nancy falou e andou até a escada. Quando deixara o quarto para atender a porta, percebera que o senhor Henry estava se mexendo muito, como se sonhasse sonhos intranquilos. Deve ser algum pesadelo, ela pensou.

— Não tem problema, eu espero aqui. Muito obrigada, senhorita Nancy — o inspetor Brum falou e, quando ia retirando o chapéu para se sentar no sofá da ampla sala, ouviu gritos vindo lá de cima, do segundo andar da casa.

Os dois se olharam e, sem que precisassem dizer alguma coisa, correram pelos degraus, arrastando-se para cima ansiosos com o que ouviam. Chegaram ao pavimento superior e, sem cerimônia alguma, percorreram o corredor até a porta do quarto de Henry. Sem pedir licença, Nancy abriu a porta de uma só vez, revelando os gritos apavorados que ouviram do primeiro andar da casa.

Henry estava sentado na cama. Seus olhos estavam arregalados, quase saltando para fora das órbitas, e o corpo tremia por inteiro, como se estivesse tendo uma convulsão. O inspetor Brum conhecia aquelas feições muito bem. Já a tinha visto muitas vezes: a feição de pavor de um covarde culpado. As cobertas embolavam-se nas pernas de Henry, envolvendo-o como em um casulo. Com a mão trêmula e o dedo indicador levantado, ele apontava para algo diante da cama: era uma parede preenchida com um imenso retrato pintado do busto de sua esposa, da época em que ela ainda era bela aos seus olhos.

Olhando para ela, ele chorava:

— Ali! Ali! Atrás do quadro, droga! Ela está ali! ME TIRA DAQUI! — Ele gritou em desespero, até que suas forças foram se exaurindo e, com a mão agarrada ao peito, tombou desfalecido da cama.

Nancy odiava o cheiro que o quarto do patrão obtivera nos últimos dias. Uma mistura de diversos perfumes, colônias e flores mortas que deixavam o ar do quarto enjoativo e, ela suspeitava, inebriante. Mas agora sabia o motivo daquela cortina de perfumes que Henry fizera.

Deus! Como ela não percebera aquele cheiro de podridão antes?

Atrás do quadro estava Mirla.

6 de Dezembro de 2020 às 16:44 3 Denunciar Insira Seguir história
7
Fim

Conheça o autor

Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

Comente algo

Publique!
Wesley Deniel Wesley Deniel
Salve, irmão ! Mais um ótimo conto, contundente, claustrofóbico, e que se utiliza de uma das leis que mais acredito : A Lei do Retorno. Nada fica emcoberto para sempre. Ele me lembrou muito do ótimo conto do mestre Poe,"O Coração Delator". A própria consciência do malfeitor trabalhando contra ele para que seu crime venha à tona ! Sucinto, muito bem escrito como sempre. Nunca me decepciono ao ler suas obras. Elas tem algo a ver com o que escrevo (embora, ao contrário de contos, tenho me especializado em novelas e em breve alguns romances que já estão bem avançados (alguns não tem muito o que escrever, eu já tenho demais. Começo com uma idéia de, sei lá, 20 páginas, e termino sempre com 50, 100 e ate 200, como é o caso de uma inédita minha "O pântano tem olhos", que se passa em Nova Orleans, Louisiana. Tenho tanto com quem gostaria de conversar às vezes, sobre minhas coletânea, idéias... A mente da gente não para, nem durante o sono. Mas o.munfo do escritor é sempre meio solitário.
January 26, 2021, 08:06

  • Wesley Deniel Wesley Deniel
    Converso com minha esposa, com uma amiga dela que estuda linguística e o resto de meus fantasmas, ficam presos aqui dentro. Queria ter mais tempo para completar tudo o que está em andamento, meu sonho é ter uma base de leitores, é conseguir viver de minha escrita. Espero que o irmão também consiga. Estarei sempre prestigiando-o e divulgando. Infelizmente, tem alguns que pouco se importam com seu público (o que é locura, já que eles são nossa força motriz ! Mas você, não. Sempre sua carismático, conversa numa boa e, só tem a ganhar com isso ! Se quiser, posso recomendar algumas de suas histórias no Conto um Conto. O professor Marcelo Fávaro é um cara excelente, e ter um conto narrado é uma experiência incrível ! January 26, 2021, 08:14
  • Wesley Deniel Wesley Deniel
    Mas é isso : parabéns de verdade ! Somos nós por nós ! Fique com Deus, meu irmão ! E até breve ! Grande abraço de seu amigo Wesley Deniel (E desculpe pela demora de novas histórias, é que são novelas enormes que vivi para revisar, diagramar e tentar criar algo único. Mas espero poder compartilhar coisas novas em breve. Tem muuuuita coisa vindo por aí ! Qualquer coisa é só chamar. Se houver dúvidas ou então precisar de uma leitura beta, ficarei feliz em ajudá-lo. Temos de ser uma família, criar uma base de leitores. Este é o mercado de hoje. Esteja em paz. Namastê 🙏 January 26, 2021, 08:20
~