Era uma vez um garoto num mundo de papel.
Via-se fraco e emocionado, e se perguntasse sobre sua idade, diria que parecia ser mais novo que seus amigos, mesmo tendo a mesma idade. Meu corpo não possui características de um homem em formação, explicaria.
Suas emoções complicam seus relacionamentos, adicionando a incerteza da impulsividade em suas ações, os arrependimentos posteriores a certas atitudes, ou a demonstração assustadora e boba do amor e do ódio. O apego e os ataques explosivos iam se tornando mais intensos conforme o tempo. Até que, por fim, toda sua insegurança o fez fugir do pequeno vilarejo, dos amigos, da família, e de uma paixão não correspondida em direção ao clã Mardak, tornando-se aprendiz de piromaníaco e queimando todas as ideias que poderiam crescer naquele planalto frutífero de laudas.
Mardak, conhecido como o homem mais viril da tribo, impunha respeito através do medo, atravessando aldeias - ideias escritas nas laudas da terra -, e as incinerando, caso seus criadores não se prostrassem a seu favor.
O garoto cumpriu muitas missões e ganhou prêmios. Tornou-se reconhecido pelos seus ataques de fúria, pelas labaredas de fogo que fazia dançar acima da imaginação dos habitantes daquela terra. Herdou terras forradas de papéis branquíssimos, sem nenhuma gota de tinta, ideais para a diversão de um incinerador que nem ele. Os títulos que seguiam seu nome muitas vezes se tornavam cansativamente impronunciáveis; e seus colegas respeitavam sua carranca inexpressiva e suas cicatrizes fugazes.
Apesar de tudo isso, o garoto não se sentia diferente, e matutou a respeito enquanto faiscava pederneiras. Sentou numa rocha e assistiu uma grande ave descansar na única árvore há quilômetros de distância. A faísca das pederneiras brilhava durante o pôr do sol, e a ave que claramente o encarava nada temia. O garoto, por fim, levantou-se e ateou fogo na árvore. A ave ainda continuou lá, determinada a encará-lo, levantando voo só depois que as chamas ameaçaram engoli-la também. Os olhos do mais renomado piromaníaco do clã Mardak acompanhou o animal até o fogo ofuscar sua visão no horizonte, e depois voltou a sentar na rocha, a assistir o fogo produzido com seu espírito destrutivo dançar na noite que se iniciava.
Ele não se sentia diferente. Por que não me sinto diferente? Por que ainda penso que não cresci, que todos esses títulos foram dados a uma criança?
Olhou para suas mãos de dedos grossos e unhas sujas, para a pele calejada pelo fogo, sentiu a sensibilidade que a noite fria impunha às cicatrizes e percebeu que, apesar de todos aqueles atos que prometiam fazer dele um homem, ainda sentia-se o mesmo garoto magro e emocionado, arrependido de cada decisão impulsiva sua, e que só tinha ignorado esse fato desde o início porque todos ali também se sentiam fracos e emocionados, perdidos em como lidar com suas emoções.
Mas havia algo mais, algo que talvez todos os desertores de causa sentiam: vergonha de ter participado do que há muito tempo participaram. Vergonha... o garoto sentia vergonha; como ele pôde ter destruído tantas possibilidades de histórias criativas com a expressão errônea de suas emoções?
Então, mais uma vez, o garoto fugiu. Deixou suas terras e seus títulos. Abdicou do seu miserável respeito e correu. Ante a sua ausência covarde, o furioso Mardak o declarou como sendo um filho indigno da Destruição.
Não podendo voltar para seu antigo vilarejo e sendo caçado por Mardak, o garoto se remeteu a uma lenda que sua avó um dia tinha contado: o rio Tituhr, um manancial que alimentava as ideias ainda intocáveis da Criação. Mas isso é apenas uma história, dizia ela, agora vá dormir.
... que alimentava as ideias da Criação. Que lugar mais teria o garoto para ir? Não tinha escolha senão ir em direção ao rio Tituhr, cuja direção era clara na história: apenas atravessando a Destruição e resistindo a ela, que se alcançaria a Criação e seu dom. Que outra redenção teria alguém que tanto destruiu senão criar de volta?
Então, apenas colocou um pé atrás do outro, tentando ignorar a solidão que o abatia pela falta de um amor, ou o desejo de queimar algo por conta da presença do ódio. Andou e andou, crente que não importaria se o rio Tituhr fosse verdadeiro ou não, porque, além de se achar incapaz para a jornada, as escassas provisões de mais uma fuga impulsiva o impossibilitaria de alcançar seu mais novo e ainda sem significado objetivo.
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