themonia Jordana Trindade

Madeleine O'Hara é conhecida por ser o bebê abandonado à deriva em meio à maior tempestade de neve já registrada ao sul do Canadá desde 1964. O bebê que, surpreendentemente, estava vivo e sem sequelas quando encontrado por um grupo de caçadores que vistoriavam a região. A população ficou enlouquecida quando o acontecimento veio a público e começou a circular pelo noticiário local. Não demorou para que Madeleine fosse adotada por um casal de médicos que se sensibilizaram com a sua história e acreditaram ser interessante transformá-la em um livro. Os exemplares contavam em detalhes não apenas como se sucedera o seu resgate e as condições deploráveis – talvez, até impossíveis – nas quais Madeleine se encontrava, mas também o cotidiano dos seus primeiros anos de vida ao lado de Audrey e Paul. O surgimento dos primeiros dentes, os primeiros passos, a primeira palavra. Tudo isso para demonstrar que Madeleine havia crescido uma criança saudável e vivaz, enterrando seu passado funesto e servindo de inspiração a admiradores e membros da congregação cristã, que julgavam o ocorrido como um milagre de Deus. Porém, dezoito anos depois, Madeleine provoca um incidente que a faz questionar o verdadeiro significado de sua existência, revelando ser detentora de poderes sobrenaturais que a transformam em uma arma de horror e destruição.


Suspense/Mistério Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#sobrenatural #bruxas #lgbtqia+
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Prólogo

A temperatura havia caído abruptamente naquela madrugada.

A atmosfera é densa e fria, quase tangível. Agnes, A Profetisa, avança completamente às cegas. As folhas perenes dos abetos que se agarram como lâminas às suas roupas já aos frangalhos são o seu único senso de direção. O furor da lua cheia é obliterado pelas nuvens dos céus tempestivos. Os flocos de neve que adejam para a terra cristalizam-se em um cobertor níveo, onde seus pés descalços afundam. A gangrena consume os tecidos dos dedos já escurecidos e que emanam um odor fétido.

Agnes está exausta e faminta, mas recusa-se a se dar por vencida. Continua correndo, atormentada, como uma presa tentando fugir do predador. O corpo pequeno e magricelo treme compulsivamente, amortecido pelo frio. O vestido, que agora se resume a tiras de tecido puídas e maculadas de sangue, a aquece precariamente, e seus braços estão cobertos de manchas vermelhas semelhantes a um teste de Rorschach.

As contrações do parto são excruciantes e se propagavam em ondas do baixo ventre ao fundo das costas. O líquido amniótico desce morno pela parte interna da coxa.

– Eu sou a Bruxa, eu sou aquele que ilumina e protege. O poder da Grande Mãe está dentro de mim. Que a Grande Mãe, a Senhora do Norte encha de frutos a árvore de minha vida, ilumina todas as minhas estações. Torna-me forte na dor, tornando-me belo no amor. Que Teu nome e Teu poder sejam sempre o meu nome e o meu poder – Agnes sibila compulsivamente na tentativa de afugentar os maus pensamentos. O som irrompe relutante por entre os lábios ressequidos, e se torna cada vez mais difícil respirar.

Eu e o mal andando lado a lado...

– Torna-me forte na dor, tornando-me belo no amor.
Que Teu nome e Teu poder sejam sempre o meu nome e o meu poder – reitera, dessa vez com mais firmeza.

Eu e o mal andando lado a lado. Você não vê o porquê. E por isso te persegue por toda parte.

– Pare, por favor, pare! – Agnes brada com o último lampejo de força que lhe resta. Aquelas vozes reverberam em sua mente como um disco arranhado, um sussurro proferido no vazio.

Eu e o mal andando lado a lado. Você não vê o porquê. E por isso te persegue por toda parte.

Uma nova onda de contrações faz com que a Profetisa sucumba de joelhos sobre o solo coberto de neve, tapando os ouvidos. As pálpebras de Agnes tremem e ela começa a emitir um som baixo, gutural. Hesitante, Agnes levanta a barra do vestido e espreita, estendendo a mão para tocar o bebê. Sente uma massa de cabelo molhado e imediatamente recolhe os dedos, agora sujos de um fluido pegajoso e sangrento, como se houvesse colocado a mão em brasa ardente. Diferentemente das expectativas sobre a maternidade, Agnes nunca havia sentido aquela criatura – ou seja lá o que fosse – como uma extensão de seu corpo, digna de seu amor incondicional. Havia apenas caos e dor.

Agnes começa a rastejar, tateando a neve sob seu corpo. As pontas dos dedos – que, naquele ponto, já haviam perdido quase toda a sensibilidade – roçam no que parece o tronco de uma bétula. A Profetisa engatinha e recosta-se ali, resfolegando. Sua respiração condensa-se na atmosfera densa.

As contrações tornam-se progressivamente mais fortes, a ponto de se tornarem quase insuportáveis. Agnes se dobra e vomita o parco conteúdo que havia ingerido nas últimas semanas. Seu corpo começa a ter espasmos, debatendo-se como um peixe na areia. O momento que Agnes mais temia nas últimas semanas havia chego. Não havia como escapar.

Com as últimas fagulhas de energia que ainda lhe restam, Agnes rasga uma tira do vestido puído e a acomoda entre os dentes, amarrando-a atrás do pescoço como uma mordaça. Seu corpo convulsiona em uma explosão de força quase sobrenatural, e seus dedos procuram com urgência algo para agarrar, mas só há neve. Um grito irrompe do fundo da garganta, sendo sufocado pelo pedaço de pano, o qual não consegue evitar que os seus molares afundem na superfície macia da língua. O gosto metálico do sangue invade seu paladar.

Uma nova onda de contrações e espasmos a atinge, e Agnes se obriga a empregar ainda mais força. Seus lábios emitem um som que mais se assemelha a um guincho de agonia. Com o cabelo grudado na testa e o suor escorrendo pelas têmporas, o rosto normalmente suave agora está contorcido e inchado. O peito sobe e desce enquanto Agnes tentava tragar golfadas de ar, exausta. A Profetisa sente como se estivesse sendo rasgada de dentro para fora.

A dor é insuportável e Agnes uiva, um clamor interminável de epifania. E então, sem nenhum aviso prévio, a cabeça do bebê irrompe por completo. Sai muito mais sangue, ensopando a neve sob seu corpo. Agnes leva as mãos para dentro do vestido, buscando sustentar a criança caso ela salte para fora de sua genitália dilatada.

Um ombro pequeno como o de uma boneca a atravessa e, magicamente, em questão de meio segundo, a criança está em suas mãos trêmulas e encharcadas. Agnes suspende o bebê no ar, sentindo o seu peso, os membros úmidos e cobertos por um líquido branco e viscoso. O cordão umbilical serpenteia entre suas pernas.

Agnes desfere tapinhas em suas costas e o bebê explode em um choro copioso, agudo e vigoroso como a sirene de uma ambulância.

– É uma menina – Agnes sibila para si mesma, tomada por emoções conflitantes. Se ainda sente ojeriza por aquele pequeno ser aninhado entre seus dedos, não sabe dizer.

A Profetiza apanha a faca de cozinha que carregava em uma espécie de coldre. Em um golpe rápido e preciso, Agnes segura o cordão e o rasga. A consistência é mais rígida do que aparentava.

Agnes recosta-se no abeto e projeta a cabeça para trás, tentando respirar e acalmar as mãos trêmulas. Seu coração salta dentro do peito, refletindo nos ouvidos. A Profetiza acomoda a criança sobre as suas pernas inclinadas. O choro já havia cessado. Em vez disso, a criança resmunga e se contorce, os lábios moldados em uma expressão contrafeita, formando um bico. Agnes fica algum tempo ali, com os braços pendendo ao lado do corpo como mangueiras de borracha vazias. Está exausta física e mentalmente, o cansaço estendendo-se por todo o corpo lânguido como se houvesse acabado de correr uma maratona. Agnes fecha os olhos por um segundo, tentando afugentar a dor.

Lágrimas contornam as maçãs do rosto d’A Profetisa. Agnes sabe que precisaria ser corajosa e fazer o que tinha de ser feito, nem que isso custasse sua própria sanidade.

Agnes segura o cabo da faca de cozinha com as duas mãos e a suspende acima da cabeça. A lâmina brilha, faminta, refletindo a luz da lua, fria e cintilante como a morte. Os braços fracos por um momento vacilam, não sabia se pela exaustão ou pela covardia. A Profetisa lança um olhar de esguelha para a criaturinha sustentada sobre suas pernas, os traços delicados, frágeis e despretensiosos. Os olhos ainda cerrados. Não fosse pelo vaivém de seu peito enquanto inspirava e expirava, Agnes poderia jurar que estava diante de uma boneca. Um ser inanimado, quase divino.

NÃO! Lembre-se pelo que está lutando, murmura a voz em sua cabeça.

Agnes mordisca o lábio, contrafeita. Volta a sustentar a faca, dessa vez com mais firmeza. Tentando não pensar muito, prepara-se para desferir o golpe. A faca desce, rasgando o ar. É quase possível ouvir seu ruído metálico. A Profetiza desvia o olhar.

Porém, ao invés de ouvir o som molhado da faca penetrando a pele, a textura macia da carne se rasgando, Agnes apenas sente um formigamento anormal na ponta dos dedos. A Profetisa vira-se para olhar e tem um sobressalto. A faca está ali, suspensa a poucos milímetros do rosto do bebê. É como se uma barreira de concreto se estabelecesse entre a criança e a extremidade pontiaguda da lâmina. Porém, não há nada tangível. Apenas energia. Uma força transcendente. Por mais que Agnes empurre a faca para baixo, ela não se move.

O bebê parece despertar de um estupor e, agora, um par de enormes olhos azuis fitam a Profetisa, como se pudessem espreitar sua alma. A cor é tão vívida que se assemelha a duas pedras de quartzo. Agnes nunca havia visto nada parecido. Apavorada, atira a faca de qualquer jeito em algum lugar em meio à neve. Em seguida, remove a mordaça e começa a proferir, tentando concentrar-se o suficiente e deixar a magia fluir por seu corpo, as palavras saindo atropeladas por entre os lábios:

Miserere animae tuae in deos.

Agnes pigarreia, hipnotizada pelos olhos azuis da criança. Imediatamente, desvia o olhar e prossegue, forçando o ar áspero que raspa a sua traqueia a se transformar em sussurros em seus lábios, dessa vez com mais veemência:

Quod iubes et potestates huius pueri castigato. Et ego quoque praecepi in totum ulla nocere potest facere et magicae potest non frui beneficia Dei.

Há um lampejo sobre suas cabeças. Pequenos choques elétricos parecem percorrer toda a extensão de seu corpo débil, desde o último fio de cabelo até a ponta dos dedos. A Profetisa sente o calor característico que a magia emana, uma sensação quase tangível, como se tentáculos se esgueirassem pela atmosfera densa. Sabia que o seu trabalho ali havia sido findado.

E então, reunindo os últimos resquícios de força que lhe restam, Agnes parte, desaparecendo em meio ao breu.

1 de Agosto de 2019 às 22:43 0 Denunciar Insira Seguir história
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