nonna.ayanny Nonna Costa

Retornar para casa nunca o deixou com tanta vontade de voltar para a cidade grande. Não porque gostasse dos urbanismos e situações afins, mas sim que seu interesse era outro: uma dama. Era a primeira vez em anos, talvez em toda a sua vida, que estava involucrado romanticamente com alguém e tal fato lhe motivava a se dedicar ainda mais. Sr. Salazar, o Marquês de Castelbrar, meditava o que faria para que seu encontro com aquela moça, após a missa dominical, fosse perfeito, mas teve seus pensamentos perturbados por uma assombração, cujo rastro mais terrível era um longo assobio, que faria as almas fracas dos homens congelar. Com a ajuda de sua jovem protegida, a espontânea e alegre Coralina da Gama, desvendaria tamanho mistério e descobriria que o fantasma que ronda sua propriedade é risco não só para os residentes, como também um mal presságio dos tempos vindouros. História Original O enredo e os personagens pertences à autora. Baseado no folclore nacional e regional que compõe o acervo de lendas e mistérios do Brasil. Fantasia no século XIX no contexto brasileiro, num universo "alternativo. Se não gosta, não leia.


Fantasia Medieval Impróprio para crianças menores de 13 anos.

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Primeira Parte

Se viu num campo aberto, a grama estava seca e caída, porém não lhe parecia como na época da colheita. Ele olhou em volta, procurando alguma orientação para se lembrar como chegou ali, pois nada em si denunciava um motivo para estar naquele campo. Parecia a terras do Sr. Arruda, mas não tinha certeza, pois estava um pouco diferente.

Começou a caminhar, se percebendo só de calças, botas marrom e um camisão branco, e parou de andar quando enxergou um rastro de sangue. Franziu o cenho ao se abaixar e tocar aquela parte, achando que fosse apenas confusão da sua vista, mas percebeu que realmente era sangue, ainda que seco por cima de alguns raminhos do capim-elefante. Seguiu o rastro, notando que a cada metro que caminhava, pois seus passos eram largos, o sangue ficava mais líquido e forte.

Logo o rastro estava maior, parecia ter iniciado com respingos e agora lhe parecia como se um grande ferimento jorrasse o líquido rubro sem parar. Chegou a uma vereda, que não existia naquela parte do terreno, afinal era um campo de cultivo. Bem à frente, ao lado de uma palmeira, dentro de uma poça larga, havia uma mulher usando um vestido branco, porém rodeada por corpos humanos destroçados e banhados em sangue. O cheiro forte e ferroso lhe causou náuseas, o que lhe causou grande desconfiança, pois aquela era uma reação incomum.

Intrigado, mas estranhamente assustado, deu um passo naquela direção e, sem querer, quebrou um pequeno galho seco. A mulher comia outro corpo de forma voraz e soltando sons guturais, como de um porco selvagem faminto, mas parou ao ouvir o estalo. Um frio na espinha deslizou por sua coluna e fez o ar falta de seus pulmões, era o medo que há anos não sentia.

A mulher se virou lentamente, seus cabelos sujos de terra e lama de sangue mancharam o vestido quando deslizaram pelas costas ossudas, e revelou sua face. No lugar da boca que bem conhecia, havia um corte enorme, sem lábios e pustulento, com dentes longos e amarelados que mal lhe permitiam fechar a cavidade, mas não mudou o fato de que reconheceu quem era ela. Não conseguiu se mexer depois de constatar quem era, apenas caiu de joelhos e deixou que lhe matasse.

Era Lis Maya, amaldiçoada pela Morte do Chupacabra, transformando-a num ser que nem era um vampiro e nem era a tal criatura, mas o meio-termo entre ambos, fadada a perecer enquanto tentava saciar sua fome violenta e maldita por carne e sangue.

Ele se percebeu sem nada do que lhe fazia um cavaleiro, com 13 anos de idade, sentindo-se tão fraco quanto um bebê. Ela movia-se como uma besta feroz para lhe matar e Bartolomeu aceitou seu destino, pois jamais faria mal algum para Lis Maya. Porém, quando abriu seus olhos, viu Anhanguera de pé, na sua frente e empunhando suas armas de Cavaleiro Exorcista, mais forte, mais alto, mais poderoso, com sua aparência mais lhe lembrando uma mistura de guerreiro indígena e bárbaro estrangeiro, forjado pelo fogo e pela floresta. Os olhos verdes brilhantes lhe encararam de forma severa e depois se voltaram para Lis Maya.

Gritou quando o viu acertar uma joelhada tão forte no rosto que deslocou a mandíbula e a fez girar para trás. Tentou se mover para proteger Lis Maya, mas estava preso no chão. O homem a sua frente lhe apontou dois dedos, como se assim o impedisse de se mover, e Bartolomeu sentiu uma forte energia vir para si, como se estivesse em chamas, mas sem sentir dor. Ele agarrou Lis Maya pelo vestido e lhe socou a cabeça diversas vezes até que fosse um amontoado de carne e ossos no chão.

Os dois se encararam depois daquilo. Não havia remorso ou raiva, apenas aquela determinação e a satisfação quase prazerosa do dever cumprido, nos olhos verdes cintilantes. Ele moveu os lábios numa frase e então lhe chutou seu corpo.

Bartolomeu abriu os olhos ao sentir o baque violento do seu corpo contra o piso de madeira do seu quarto. Estava ofegante e tremendo, seu sangue parecia envenenado com a droga do sol, um tipo de estimulante que muitos Cavaleiros e Amazonas Exorcistas usavam para passarem mais tempo lutando e aguentando as batalhas. Tinha que fazer algo a respeito ou surtaria de vez, o que não era saudável, uma vez que precisava estar com a cabeça no lugar.

Se levantou do chão, se vendo apenas com suas calças e seu camisão, as mesmas roupas que usava quando chegou da vinda de Campo d’Ouro, e saltou para fora da janela aberta, subindo pela parede como um animal feroz e o mais hábil dos escaladores. Ainda era noite, talvez madrugada, mas ele não se importou. Correu pelo telhado de sua mansão, indo de um ponto a outro, até chegar ao estábulo e saltar dali para a mata que faz parte de sua propriedade. Corria rápido como um predador em plena caçada, numa carreira mais veloz que o trote do seu melhor cavalo e a mais poderosa onça que vagaria por aquela serra e aquela floresta.

Subiu árvores, atravessou rios, escalou rochas e paredões, contornou toda a sua propriedade e quando se deu por conta, quando enfim sentiu seus braços e pernas arderem e seus pulmões queimarem, sinal da fadiga muscular, deixou seu corpo cair dentro do coreto, no meio do seu jardim particular, que era delimitado por cerca-vivas de árvores espinhosas.

-Ouvi um animal feroz correndo ontem à noite, assustou os cavalos e as vacas, brigou com Telúrio e ainda calou todos os pássaros pela manhã. - Bartolomeu fitou o alto e viu sua pequena “soinho” apoiada no cercado de madeira pintada de branco, abraçando os joelhos para o vestido branco não esvoaçar. - Estava tentando matar alguém, padrinho?

-Para a tristeza da sua voraz fome por histórias de aventura, não. - ele se sentou e alongou o corpo, ouvindo todos os ossos estalarem e os músculos relaxarem. Sim, estava bem melhor. Nem lembrava que horas começou a meditar, mas sentia-se como novo agora. A menina riu e esperou Bartolomeu ficar de pé para que subisse em seus ombros e fosse carregada.

-Que triste. Então por que estava correndo tanto ontem? - ela era carregada como os macacos levam seus filhotes e nem se incomodou por isso. Seu padrinho era dono de uma gentileza e amabilidade para consigo que apenas os animais poderiam entender. Quando chegaram à Mansão Castelbrar, ela desceu das espáduas largas com a ajuda dele e pôs suas roupas.

Primeiro calçou suas botinhas marrons, segundo colocou as anáguas para armar sutilmente o vestido, depois a peça de tecido azul claro com listras verticais escuras, amarrou a fita naquela tonalidade na cintura e por fim fitou seu padrinho seguir pela sala para as escadas de acesso aos quartos, de modo que sentou-se no banco que havia ali abaixo da janela para esperá-lo.

-Senhorita da Gama! - ela fitou o outro lado da sala, de onde viera um dos icônicos moradores daquele lugar. Parecia ter se escondido por todo aquele tempo atrás da porta até que Bartolomeu saísse para que pudesse entrar. Fez uma reverência adequada e se aproximou.

Calças altas de cor clara, presas aos sapatos, o colete era curto, delimitando a cintura, com grandes botões brilhantes e usava um casaco marrom por cima, usava o bigode sempre bem aparado e ao estilo mais inglês possível, José Ricardino Dias parecia uma obra caricata saída de algum jornal imperial ou coisa semelhante, mas ela era educada o suficiente para não rir, ainda que soubesse que aquele estilo era considerado bonito e atraente pelas moças ricas.

-Bom dia, Srta. de Gama. - ele sorriu e a jovem apenas acenou com a cabeça, concentrando sua audição aos movimentos da casa. Havia quase dois meses que não estava na companhia de pai de criação e não queria perder seu precioso tempo com agregados. - Já tomou café? Pois hoje temos…

-Mélia. - a voz do Marquês fez José se engasgar com suas palavras e a jovem se levantar, segurar firme as saias e correr para a sala de jantar particular da família, ignorando o homem. Ele estava já à mesa, observando as cartas que recebera e os informes da propriedade, de modo que ela apenas se sentou e lhe sorriu em cumprimento, de novo.

Assim que Dandara, a negra responsável por preparar as refeições do patrão e de sua jovem protegida, serviu os dois com o desjejum adequado, os dois comeram em silêncio. Bartolomeu prezava mais do que era adequado para um homem da estirpe a qual julgavam-no ser. O que não sabiam é que era uma tradição que os verdadeiros Salazar de Castelbrar apreciassem os sons silenciosos dos seus próprios pensamentos a qualquer outro que possa surgir. Ele ergueu sutilmente o olhar ao ver a mão feminina enfaixada e fitou o outro lado da mesa, à sua direita.

A Sra. Distinta comia com certa elegância, parecia uma nobre inglesa, com modos exageradamente contidos e educados, demonstrando certa arrogância por achar que nenhuma outra mulher comia um pedaço de pão melhor do que ela, e isso fez Bartolomeu se questionar por que haviam tantos brasileiros julgando-se estrangeiros morando sob seu teto.

Se Mélia fosse um homem, mandaria os dois bajuladores para bem longe de suas vistas, mas como precisava educá-la de maneira adequada para os padrões sociais e, assim, garantir um casamento adequado haja vista as prendas femininas, e ele era incapaz de fazer mais do que já fazia por ser um homem e ter pouco tempo, precisava temporariamente dos dois.

-Sabe, padrinho, eu vi…

-Coralina. - Sra. Distinta falou de maneira rígida, a interrompendo. A menina a fitou e franziu o cenho, sem saber por que era repreendida. - Sabe que uma dama não deve falar à mesa a menos que seja convocada sua participação. E fale com mais respeito à Vossa Graça.

-Mas eu… - tentou se explicar.

-Coralina da Gama! - ela quase guinchou como um gato ao tentar se expressar de forma mais enérgica, mas sem alterar tanto a voz.

-Sra. Distinta. - Sr. Salazar falou baixo, mas com frieza, o que fez a mulher se sentir nervosa. - Em minha presença, eu sou o único com autoridade para repreender Coralina. Lembre-se.

-Sim, Vossa Graça, perdoe-me por isso, eu imploro.

Ele continuou a encarando com severidade até que a mulher de 32 anos houvesse abaixado a cabeça para comer. Padrinho e afilhada se entreolharam. Coralina pedia desculpas com o olhar, mas ao ver o homem piscar-lhe de forma esperta e sorrir de lado, soube que estava tudo bem. A refeição seguiu quase em perfeito silêncio, se não fosse o tintilar dos talheres.

Por volta das oito horas, Bartolomeu foi até sua plantação ao norte, onde o sol era um pouco mais forte porque era livre da sombra natural da serra, para avaliar suas flores. Depois se dirigiu para a plantação seguinte, no sentido horário, bem a frente da Mansão e era a maior de todas as extensões de cultivo, onde havia um vasto rio cuja nascente era longe mata a dentro. Foi para o outro lado, onde ficava a vila-grande Velho Berdô, nomeada assim para homenagear o seu avô, e lá moravam todos os trabalhadores da Mansão, ficava o Forte Onça-Negra e um pequeno ancoradouro, para os pescadores. Por último, já perto da hora do almoço, vistoriou as terras ao fundo, quase sempre à sombra da serra, analisando se suas flores mantinham a qualidade de alto padrão.

Depois do almoço e ouvir Coralina cantar suavemente, por pedido da Sra. Distinta que queria provar o quanto os estudos iam bem, foi para a estufa em uma das alas da sua casa, um enorme ambiente para os estudos e os experimentos com flores e medicamentos de Bartolomeu.

Duas batidas e um toque no sino de aviso lhe foram os sinais de que sua pequena soinho queria um pouco de sua atenção. Ele terminou de anotar os resultados do último experimento que fizera para desenvolver uma fórmula eficiente contra a “tristeza profunda” de quem os médicos tanto lhe falavam quando conversava com eles nas reuniões de negócios e seguiu para onde sabia que Coralina estaria lhe aguardando com certa ansiedade. Suspirou ao vê-la no Pátio Leste, munida do arco e de algumas flechas e com um alvo preparado a alguns metros de distância.

-Era isso o que queria me dizer? - ela negou, aumentando seu sorriso quase pueril. Ela tinha olhos felizes, herdados deus-sabe-lá-de-quem, mas eram perfeitos olhos de um tom claro de castanho: eles sempre se curvavam sutilmente para baixo quando ela sorria.

-Veja, padrinho. - Coralina colocou a flecha no arco, respirou fundo enquanto mirava e se concentrava, e atirou. Acertou em cheio, o que fez o homem se impressionar. - Vou conseguir ser uma arqueira incrível como o senhor. - disse confiante.

-Certo, então criemos um parâmetro. - Bartolomeu pegou o arco e cravou uma flecha no chão, delimitando um ponto de partida. Observou as árvores e sorriu ao enxergar um eucalipto. Atirou a flecha e a viu cravar numa determinada altura dele. Coralina estava boquiaberta. - Estamos há 50 metros daquela árvore e eu acertei há… - pensou um pouco. - 40 metros, provavelmente.

-A flecha voou 60 metros no ar. Por aí. - ele assentiu, satisfeito com sua desenvoltura rápida em calcular aquela distância. - Se eu acertar uma flecha lá…

-Lhe dou um arco de Pau d’Arco. - ela gritou de animação e felicidade, dando saltos no lugar e batendo palmas, o que o fez rir. Coralina é tão parecida com Henrique quando este era mais jovem, mas sem a inocência que ele carregava naquela mesma idade. - O que queria me contar?

-Ah! Claro. Bio! - ela gritou o mais alto que pôde. Bartolomeu fitou a direção para qual a jovem se voltou e viu o negro quase tão alto quanto a si mesmo, porém com o dobro da sua largura por ser um dos mais fortes naquele lugar, surgir por uma das saídas laterais. Sua cabeça limpa de pelos quase reluzia sob o sol da tarde e o suor escorria devagar pelo pescoço. - Conte ao padrinho o que encontramos hoje, quando fizemos a vasculha nos campos do Sul.

Ele cumprimentou o patrão com um aceno breve.

-Vi rastro. Pé de homem adulto, arrastado como velho. Um com sapato e o outro sem, patrão. - começou e Bartolomeu encurtou a vista, atento. - Menina Mélia ouviu um assobio, com três noites passadas, e ontem ouviu de novo. Longo e de uma nota só, que nem barulho de vento, mas nem ventava e nem tinha bicho na mata, patrão.

-Levem-me lá. - ordenou e os dois foram à frente, a pé, para o local onde os rastros foram vistos. Depois de vinte minutos de caminhada, chegaram.

Com cuidado por causa de suas roupas, Coralina seguiu pela trilha que Negro Bio abriu no dia anterior para investigar. O trio caminhou por mais cinco minutos e chegou no local indicado por Coralina, de modo que Bartolomeu se abaixou para analisar aquelas marcas entre as folhas. Por alguns minutos, sem se concentrar na voz das duas pessoas dialogando perto de si, Bartolomeu observou a mata.

Em menos de dois dias se encontraria com Lis Maya e ainda não se decidiu para qual passeio a levaria depois da missa, mas, por um momento, se imaginou caminhando por um ambiente arborizado enquanto conversava com ela, o que lhe fez sorrir por baixo da barba espessa.

Maya parecia o tipo de mulher que apreciava aventuras, suspeitava isso há certo tempo, mas teve a confirmação quando a viu brincando de bola. Conhecia um lugar o qual seria bem atrativo e instigante para ela, se Maya estivesse disposta e… Bartolomeu engoliu em seco ao perceber que já a tratava com demasiada intimidade em seus pensamentos, quando nem fazia um dia que fora perturbado por um pesadelo estranho.

Um passeio nos campos parece bem adequado para cumprir sua promessa sem ofender a honra e a integridade da Srta. Rubiopedro, decidiu ao tornar a se concentrar no rastro bem diante de seus olhos.

Realmente.

Era como se alguém houvesse passado por ali arrastando os pés e um deles dava a impressão de não estar calçado, o que não era muito comum.

Para aquelas bandas, apenas alguns homens iam quando algum animal se desgarrava ou o próprio Marquês ia em alguma caçada ou vigilância. Ficou de pé e tomou a frente em acompanhar o rastro. O trio andou até que qualquer parte de civilização já não fosse mais vista, o que significava que na mata fechada e para onde quer que olhassem, não encontrariam orientação. Bartolomeu aguçou seus sentidos sem ativar seus totens e olhou em volta.

O rastro sumia ali e quando àquele ponto chegaram, o vento, que até aquele momento balançava suavemente as árvores, parou de vez.

Não havia canto dos pássaros, nem barulho de insetos, tudo ficou numa quietude mórbida. Apenas um assobio ecoou, longo e ininterrupto, de uma nota só, o que fez Bartolomeu arregalar os olhos por baixo de seu chapéu e encarar Negro Bio. O som podia ser melodioso em outra situação, mas naquela do mais rotundo silêncio, era o sinal mais assustador que uma criatura perigosa poderia emanar. O homem nem precisou de ordens: segurou a menina nos braços e disparou pelo caminho de volta.

Bartolomeu foi logo atrás quando o assobio ficou mais alto e um arrepio frio passou por sua nuca. Era a certeza de que o que rondava a sua propriedade não era humano e nem pertencia aos vivos. Correu também, pois estava sem nenhuma de suas armas para aquele combate, caso chegasse a acontecer.

Mais importante que isso, se bem entendeu o rastro, aquela criatura se movia na direção de Velho Berdô e se não fizesse nada a respeito, atacaria e mataria os seus protegidos.

O homem, assim que chegou em casa, sem ouvir a voz de mais ninguém além dos seus próprios pensamentos, seguiu para a sua biblioteca, que também era o seu escritório de estudos, buscar um dos livros que trouxe do Crato para verificar uma informação importante sobre aquela situação.

-Velha Senhora, Velha Senhora, já disse o quanto me amarguro quando tens razão? - retrucou ao abrir o livro de Cândida e começar a folheá-lo com calma, buscando o relato que precisava. - Não me diga que nunca enfrentou um desses, Cândida? - estava quase se sentindo furioso passando as páginas com rapidez e certo nervosismo.

Mas achou o tal relato que bem queria ler, mas não era exatamente igual ao caso que supunha enfrentar mais tarde, naquela mesma noite. Ficou ali, lendo em silêncio para saber se suas conclusões estavam corretas, sem saber que do lado de fora, escondida por uma estrutura da parede para evitar o olhar severo e julgador da Sra. Distinta, estava Coralina, preocupada e receosa. Depois de duas horas de profunda e cuidadosa leitura, Bartolomeu chegou a conclusão que odiava ter razão naqueles assuntos.

Sua longa experiência com todo tipo de coisa não lhe rendeu apenas fraturas, cicatrizes e memórias que faria pessoas fracas ou sem preparo terem pesadelos que os levariam à loucura, mas uma predictibilidade para acertar certas coisas.

Guardou o livro com cuidado e certa cerimônia, como se despedisse educadamente da sua finada mestra, a qual superara num jogo bobo que fizeram para que o Sr. Salazar deixasse a tutela dela.

Fazia tanto tempo. Seu rosto não tinha um único fio e ele se considerava um animal selvagem num processo lento de conscientização. E Dona Cândida era uma mãe calorosa o suficiente para isso.

-Eu ouvi de Sir Whitecok Belvedere que simplesmente não aceita que é o melhor guerreiro do Estado-reino e do Império. - os dois passeavam pelo jardim, na enorme casa-forte a qual ela residia na província de Olinda. Ela já estava aposentada das batalhas, dando apenas consultoria para os líderes, porque se encontrava doente e… Velha.

-Não sou. Apenas…

-Se ousar dizer que foi sorte que venceu o Conde de Abrolhos num combate sem armas e sem totens, na minha presença, eu lhe darei uma surra. - olhou-o com aquele semblante que traduzia uma mistura de sagacidade e austeridade. Bartolomeu abaixou a cabeça e sorriu de lado, ambos caminhando de costas para as pessoas que estavam curiosas para saber quem era o homem de cabelos de fogo que andava com a rica Dona Cândida.

-Não ouso dizer, apesar de ser uma crença minha. - Cândida ergueu o olhar, admirando o rosto masculino que já exibia sinais de mistério e de uma soberania que nunca vira em nenhum outro. - Perdoe-me, minha senhora, falta-me confiança.

-Confiança? - ela riu gostosamente enquanto abanava seu leque e observava seus criados trabalhando nas partes daquela casa exposta propositalmente ao sol, pois Cândida amava o sol. - É um desaforo que me diga isso depois de lutar cada batalha com um sorriso no rosto, mesmo quando tinha uma das pernas ou um dos braços quebrados. Ou…

-Costelas. - Bartolomeu acrescentou.

-Dedos.

-Coluna.

-O ego. - os dois disseram juntos o que Cândida rir de novo e o outro ficar sério. - Ah, meu jovem, pode enganar qualquer um, menos a mim com esta conversa de humildade. - suspirou.

O sol estava agradável, acariciando as peles acostumadas com calores mais violentos, e o barulho do mar era como um conforto especial de se ouvir enquanto caminhavam por aquele passo de pedra feito para interligar a parte principal da casa à muralha fronteiriça do outro lado, de onde eles vieram.

-Apenas quero dizer que… A senhora é a melhor entre os melhores, mesmo que não mais suporte o peso da espada. - a idosa acabou corando com aquele elogio tão sincero. - Nenhum Cavaleiro, ou Amazona, a superou e por isso me acho indigno de tal título sem sua real aprovação.

-Ora, diz isso porque salvei Salvador daquele vampiro? - olhou-o de forma sagaz e viu o jovem dar de ombros, ainda cabisbaixo. - Bom, se for este o caso, podemos resolvê-lo habilmente.

-Verdade?

-Óbvio. Já que o parâmetro é o nível de criatura, se derrotar um Espírito Imortal, já pode agir como meu mestre. Eu nunca enfrentei um Espírito Imortal. - Bartolomeu assentiu, concordando com o jogo, mesmo que soubesse que venceria. - Agora, chá.

-Chá. - ele emendou.

O homem acariciou a foto em sua mesa de Dona Cândida e suspirou, depois de tanto recordar. Que saudade, pensou, que saudade. E pensar que dias antes daquela conversa, Bartolomeu enfrentou o Boitatá pela segunda vez na vida, o que fez superar sua mestra inconscientemente. Nunca deixaria de se enxergar como eterno pupilo de Dona Cândida.

29 de Julho de 2019 às 23:41 0 Denunciar Insira Seguir história
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