anneliberton Anne Liberton

Henri estava preparado para se entregar ao sono eterno, mas sua inimiga tinha outros planos


Fantasia Todo o público.

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Capítulo 1

Diziam que uma das vantagens de se viver para sempre era o conhecimento que vinha com a experiência. Mesmo o mais inepto dos indivíduos não conseguiria ficar sem absorver uma coisinha ou outra de seu dia-a-dia e de seus relacionamentos, ainda que por um acaso ele decidisse passar algumas décadas como um ermitão e dialogar apenas com a própria mente. Henri, porém, tentava desafiar aquela lógica ao máximo.

— Eu juro que vou desistir de você — dizia Stella pelo que devia ser a milionésima vez, o que, nesse contexto, não era exagero, mas um número preciso.

— Seria o meu sonho, mas já perdi as esperanças — ele rebateu, sem querer olhá-la.

— Tudo isso porque ela morreu de novo? Ainda não aceitou que ela vai morrer em cada encarnação se você não a transformar, Henri? Pensei que, depois de quatro séculos, você tivesse alguma ideia de como vampiros funcionam...

— Pois não tenho. Sou um completo imbecil. Por que não volta lá para baixo e vai interagir com seus amigos mais inteligentes? — ironizou, fechando uma porta na cara dela. Ou tentando. Stella sempre tivera reflexos melhores que os dele. Ou ele estava ficando mais lento. Qualquer alternativa era verdade.

— Porque você é o único amigo que me importa, e eu quero te ver feliz.

— Boa sorte com isso aí.

A carranca dele a estava fazendo considerar seriamente um soco ou pelo menos uma unhada no olho. Stella respirou fundo — para você ver o nível de nervosismo, porque ela sequer respirava! — antes de tentar de novo.

— Tem cinquenta anos já.

— O que tem? — Henri indagou, desinteressado. Mantinha um pé na porta, enquanto ela mantinha mão, os dois numa briga silenciosa para ver quem desistiria primeiro. O sapato dele, no entanto, era de couro falso e estava prestes a rasgar com o esforço sobre-humano daquele equilíbrio.

— Que ela morreu. A essa altura, o corpo novo deve estar por aí. Você poderia sair para procurá-la. Sabe que vai se sentir atraído por dela de alguma maneira. Não será difícil. Além do mais...

— Não.

— Henri...

— Eu não quero mais saber.

— Então seu plano é ficar aí trancado pelo resto da vida?

— Por aí.

— O resto da sua vida é um tempo muito, muito longo.

— E, durante todo ele, ela vai continuar morrendo de novo e de novo e de novo.

Ele falou tão naturalmente que Stella arregalou os olhos e, por pouco, não perdeu o controle sobre a porta. A meia-arrastão que usava como luva rasgou num pedaço e um prego solto arranhou sua pele, algo que ela mal sentiu.

— Não suporto mais ver ela morrer, Stella.

— Por que não a transforma então? Eu nunca entendi...

— Eu não posso.

— Mas por quê?

Henri silenciou-se. Aquele assunto era tabu entre eles, ao mesmo tempo que era uma das coisas sobre as quais mais falavam. Não era comum um vampiro ser destinado a uma humana, com o nome cravado na pele e tudo. Apesar de ter testemunhado a pureza e a intensidade dos sentimentos do amigo durante todos aqueles séculos, ela não sabia dizer se afinal ele era sortudo ou amaldiçoado por aquela combinação. No momento, gravitava para a segunda opção.

— Vou deixar você se isolar. Mas é só por hoje, tá? E porque eu realmente queria beber um pouco — Stella acrescentou, numa tentativa de descontrair.

— Fale com o Marcus. Ele parecia chateado quando você subiu para me ver — ele sugeriu.

— Ele sempre fica chateado quando chego perto de você.

— Deve ser porque ele quer ficar com você há décadas, e você nunca deu uma chance para ele.

Stella riu.

— Não vou dar chance ao azar.

— Você nem sabe quem tem a sua marca. E se for o Marcus? — Henri contestou.

— Prefiro passar a eternidade trancada num buraco, que nem você.

— E tem coragem de vir aqui me atormentar.

— Para que servem os amigos? — Ela sorriu. Em seguida, deu de ombros. — Às vezes não seria nada mal dormir com ele hoje. Faz tempo que eu nem... — Fez um gesto obsceno. — A não ser que você esteja a fim...

— Hoje não. — Sua careta lhe rendeu um empurrão. Com a mão que segurava a porta. — Não acredito que caiu nessa.

Stella de repente encarava a porta fechada. Ela se sentiu tão estúpida que pensou que deveria mesmo dar uma chance a Marcus. Os dois estavam no mesmo nível, ao mesmo naquela noite.

Dentro do quarto, a testa contra a madeira, Henri suspirou. Aguardou até que a amiga descesse as escadas para se sentir relaxado de verdade. Não aguentava mais aquelas festas. Não aguentava mais os vampiros, as bebedeiras, os bacanais de sangue, nada. Não aguentava mais nada, nem encontrar sua amada de novo e de novo e de novo.

Perguntou-se qual nome ela teria agora, já que a marca na base de suas costas se alterava sempre que ela morria. Constance, Roberta, Kyrie, HyeYoon, Alana... Cobria a área com pregos de prata, numa lembrança dolorosa, mas necessária, de que aquilo tinha que parar.

Se Stella já tivesse encontrado o vampiro (ou vampira) detentor de sua marca — porque devia ser um vampiro, sempre era um vampiro, menos no caso dele —, saberia que não era pelo amor intenso e inigualável que ele queria evitar aquele reencontro, mas pelo que viria depois. Difícil encarar a possibilidade da perda quando sua alma gêmea viveria para sempre, como você. No caso dele, as eternidades haviam sido todas curtas, sangrentas e dolorosas.

Em nenhuma de suas versões, sua amada deixara ou pedira que ele a transformasse. Não desejava de todo a vida de sugadora de sangue e não seria Henri que a imporia a ela. Melhor evitar o reencontro, a dor. Melhor, mesmo.

Ele já prepara tudo para poder aguentar o período sem ela: seus papéis, seu local de descanso, as instruções para que ninguém o incomodasse. Faltava agora a coragem para executar a parte final do plano. Uma coisa era a vontade de permanecer longe; outra era a vontade de sua marca, que teimaria em retumbar, à procura da dela, até que os dois se reencontrassem e o ciclo se iniciasse novamente. Ele já sentia aquela pinçada incômoda, indicando que, em algum lugar do mundo, ela existia. Bastava como incentivo para que se apressasse, ainda que um pedaço indigno seu quisesse hesitar. Logo não conseguiria resistir mais. As lembranças abundavam, e a carne, mesmo a carne morta, era fraca.

Henri verificou alguns documentos, aplicou seus selos finais. Sorveu o ar da noite, solene. Era a decisão certa.

A música lá fora impregnava-se em seus ouvidos, resquícios da diversão de que ele poderia estar participando, mas que há muito lhe era negada. Esperava que pelo menos Stella encontrasse algum consolo naquela noite.

— Por que tão só, vampirinho?

Arregalou os olhos.

— Ora, vamos. Não está dando uma festa lá embaixo? É feio o anfitrião não participar. — O som de alguém limpando as unhas penetrou seu quarto. Estava apinhada em sua janela, agora aberta e por onde o ar da noite invadia o aposento. — E mais feio que isso, só o fato de você sequer ter me convidado.

— Se não convidei, é porque não queria você por perto, Valerie.

Ela crispou os lábios ao vê-lo.

— Não me parece um bom motivo.

— Não sei se motivo nenhum manteria você longe daqui — Henri murmurou, testando com a mão a distância até a maçaneta.

Nos últimos dias, não tinha se alimentado direito, já para preparar o corpo para a hibernação. Caso partissem para um confronto direto, sem Stella ou qualquer outro para auxiliá-lo, o resultado não lhe seria positivo.

— Não manteria — ela admitiu. — Sabe que gosto de conversar com você, Henri.

— Sei que gosta de arrumar confusão. Entre outras coisas. — Longe demais. Não alcançaria as escadas a tempo. Mas a mesa... Poderia usar algo da mesa.

— Aí já é você quem está presumindo. Realmente não entendo por que pegou esse asco de mim desde o dia em que nós nos conhecemos. — Pulou para dentro, fechando a janela.

Henri estreitou os olhos.

— Você acabou de invadir a minha casa e não sabe por que não gosto de você?

Valerie ergueu um dedo, em aviso.

— Primeiro você não gostou de mim, depois eu invadi a sua casa. Há uma ordem aí. — Olhou ao redor. — E qual o sentido de tudo isso aqui? É verdade então o boato que eu ouvi? Está se preparando para se enterrar?

Ele não respondeu. Alguém como ela não merecia essa cortesia.

— Ouvi dizer que era por causa de uma garota. Você não me parece o tipo que literalmente desistiria da imortalidade por causa de um rabo de saia.

— É claro que não é por causa disso — irritou-se. O abridor de cartas. Tinha uma ponta de prata. Serviria. Agora era uma questão de alcançá-lo antes que ela percebesse, e mantê-la falando até lá. — Não sou tão fraco.

— Não, não mesmo. A não ser... — Divertimento brilhou nos olhos dela. — Será que é a garota que carrega a sua marca? Você tem cara de que seria pareado com uma mulher. Apesar de achar que rapazes fazem mais o seu estilo. Até o Marcus, se quer saber.

— Seu mentor? — Ele nem estava investido na conversa de verdade, mas precisou franzir a testa.

— Ele é muito mais interessante do que aparenta. Sua amiguinha Stella não sabe o que está perdendo. Apesar de que... passei por ela enquanto subia. Acho que ela está começando a abraçar a ideia.

— Stella nunca teve bom gosto.

— É sua amiga, afinal.

— Foi para isso que veio aqui, Valerie? Provocar uma briga infantil porque não te convidei para a minha festa? Dois anos e não aprendeu a controlar seus instintos primitivos ainda?

— Ah, eu aprendi muito bem — ela rebateu com um sorriso. Aproximava-se quase imperceptivelmente, mas ele tinha anos demais de estrada para se deixar enganar. O abridor já se enrolava em seus dedos. — Como disse, ouvi dizer que estava planejando se enterrar e quis te encontrar antes de você ficar incomunicável. Teria sido mais fácil se você simplesmente fosse cordial, mas...

— Queria me encontrar? Para quê?

Ela exibiu suas presas no que seria um sorriso misterioso, e que Henri leu como uma dica de ataque. Empunhou o abridor a tempo de sentir as garras afiadas da vampira se fincarem contra seu braço. O golpe que dera nela, bem nas costelas, foi mais forte, por conta da prata, e ela gritou. Valerie tinha todas as vantagens, os instintos e força aguçados da juventude, que se esvaíam dentro dos primeiros três anos, estava com a alimentação em dia e com vontade de lutar com ele. Henri precisava encerrar aquilo rápido ou teria problemas.

— Sem armas! — ela protestou. — Não é justo!

— Qual parte disso aqui é justo? Até hoje eu não tenho a menor ideia do que fiz para você...

— Não tem? — Tornou a sorrir, o rosto se desfigurando. — Por que não pergunta ao Marcus?!

O golpe que ela tentou dar nele fez seu punho afundar na parede, e Henri teve alguns segundos para estudar uma rota de fuga. Em sua própria casa. O absurdo trazia espasmos à sua garganta.

— Já perguntei! E tenho certeza de que ele me diria se soubesse, se isso ajudasse ele a ter uma chance com a Stella. Você não sabe falar, Valerie? Por que não diz você mesma?

Ela arrumou o vestido, depois de desenterrar a mão da madeira, e tornou a avançar. Mas, dessa vez, ele estava preparado. Agarrara um atiçador de fogo nas proximidades e cravara-o no peito da vampira. Era ferro puro e simples; não serviria para matá-la, apenas como distração. O abridor então voltou à cena, cortando das costelas até as costas de Valerie, enquanto ele a rodeava para escapar. Henri mirou-a por cima do ombro, para se certificar de que teria tempo de correr, quando travou, a centímetros de distância da porta.

Ela se contorcia perto da mesma janela por onde entrara. A mão tateava pela ferida aberta, pouco acima de uma marca estranha, que aparecia no mesmo lugar de uma que Henri conhecia bem. O nome de sua amada, que retumbava sob o curativo em suas costas. No de Valerie, empapado de sangue, lia-se: Heinrich. O dele.

24 de Julho de 2019 às 05:59 4 Denunciar Insira Seguir história
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Álisson Lima Álisson Lima
Uau
September 15, 2019, 11:10
kyara Mesquita kyara Mesquita
Não esperava por isso né mocinho.
July 29, 2019, 11:24

  • Anne Liberton Anne Liberton
    Acho que ele ficou meio bolado ahuauha obrigada por ler e comentar! ♥ July 30, 2019, 00:10
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