28 de agosto de 2031
Cidade de Samara – Rússia
Mikhail Ivanov
Os prédios ao longe brilham perante a noite absurdamente escura. A energia havia caído a algumas horas atrás, mas não tinha previsão de voltar. Não é de todo mal, já que as estrelas surgem mais no escuro, em um céu completamente negro e límpido. Estamos todos reunidos na sala de estar de um desses prédios. A luz da vela ao centro ilumina boa parte do cômodo, principalmente as cartas em cima da mesa. Não há qualquer sinal de que aquele jogo terminaria logo, assim como a ânsia da nossa família de fazer alguma coisa. Além de mim, com dezesseis anos, há minha irmã Irina, meu irmão mais velho, Serguei, e nossos pais, apesar dos mais velhos não costumarem se reunir muito com os filhos, então apenas pode se ver os rostos tensos de ambos na cozinha mais ao fundo.
- Eu ganhei! – Irina quase grita, provocando o sibilo de Serguei.
- Pare de falar alto. Você não é a única no prédio, sabia?
- Mas sou a única melhor que você nisso aqui!
Eu desvio o olhar de volta para a parte externa, quando ambos começam a agir como pequenas crianças. O céu é bem mais interessante agora. Estou tão compenetrado nele, que não consigo escapar do puxão de orelha que meu pai me dá.
- Feche as cortinas e saia de perto da varanda, Mikhail.
- Mas porquê?
Eu ainda era jovem para entender completamente, mas já sabia que algo de ruim estava prestes a acontecer. Uma guerra, era o que meus colegas de classe anunciavam. Uma guerra que nós poderíamos vencer com facilidade, por causa de todo poderio que tínhamos escondido durante anos. Quer dizer, meus amigos achavam que a Rússia escondia um poderio militar extremamente forte, e que assim venceria a guerra. A única coisa que eles pareciam esquecer, ou mesmo ignorar, era que ter uma guerra, uma terceira guerra, significaria muita destruição. Não era apenas nosso país que tinha poderio, mas todos os outros.
- Não faça perguntas! Apenas sente-se com seus irmãos, longe da varanda e das janelas!
- Tudo bem. – Eu digo.
Naquela noite eu me lembro de poucas coisas, depois da cena na sala, da dor do puxão e das risadas altas de Irina. Lembro de ouvir um som muito abafado, porém poderoso, que fez toda a sala tremer. Depois disso, meus pais começaram a nos apressar para sair de lá. O prédio todo parecia tremer e ao mesmo tempo levitar. O som era alto demais para se ouvir qualquer coisa, qualquer coisa além de sua própria respiração e as batidas incomodas que meu coração dava contra o peito.
A medida que o som aumentava, nós corríamos para longe dos corredores, descíamos a escadas e passávamos por pessoas, poucas delas, na mesma situação que nós. A maioria dos prédios de nosso bairro tinham sido esvaziados, e as pessoas haviam viajado ou mesmo se mudado para longe. Eles sabiam sobre o que estava por vir, mas para famílias mais ilhadas, como a nossa, tudo que nos sobrou foi testemunhar nosso lar vindo abaixo. A montanha de areia, pedra e concreto desmanchou à medida que a bomba atingiu o bloco de trás ao nosso. Dava para ver que os que ainda não haviam descido, basicamente tinham entregado a vida a Deus. Foi nele que me prendi, enquanto corria em passos cambaleantes para longe. Irina e meu pai logo atrás de mim, enquanto minha mãe ia a frente, com meu irmão nos guiando.
Lembro de pegar na mão da minha irmã e sentir que ela estava suando, mas que carregava consigo a carta que lhe fez ganhar o jogo. Um “ás de espadas”. Seus olhos estavam cheios de água e ela parecia aterrorizada. O céu a cima de sua cabeça ainda em um negro, se iluminou completamente com os riscos das bombas passando. A iluminação durava pouco e logo depois vinha a explosão, o som abafado e os tremores. A essa altura estávamos todos cobertos de fuligem e concreto. Eu tentava, quase que em vão, limpar meu rosto e deixar Irina com o dela protegido em meu peito, mas ela chorava e isso apenas servia para grudar mais terra.
- Vamos por aqui! – Disse Serguei. Ele andava de cabeça baixa, protegendo minha mãe mais atrás.
- Vai dar no centro. É perigoso!
- Eles estão atacando os bairros residenciais primeiro. Vamos por aqui!
Meu pai até pareceu querer ignorá-lo, mas o som de outra bomba lhe fez mudar de ideia. Seguimos o mais próximo de árvores possível, o bastante para que não fossemos vistos de cima. O som de motores dos aviões menores começava a ficar mais altos. Seguimos em segurança até o que parecia ser uma rua comercial. Ela era ampla, com piso de pequenos tijolos soltos. As lojas tinham as fachadas coloridas, com blocos de barro vermelhos.
- Pra onde agora? – Meu pai gritou.
Ainda estávamos entre as árvores, pouco antes de sair para a rua aberta. Algumas pessoas tentavam se esconder nas marquises, mas muitas delas levavam tiros dos caças mais baixos. Nessa altura, Irina já estava impregnada de sujeira, principalmente no rosto e nas mãos. Eu tentava acalmar ela, colocando sua cabeça em meu peito e pressionando seu rosto, para que ela pudesse pegar menos poeira.
- O que está acontecendo, Mikhail? – Sua voz era de total terror.
- Está tudo bem. Nós vamos ficar bem. Precisa prestar atenção em mim! Ouviu?
De repente foi como sentir algo queimando minhas costelas, não como se fosse apenas quente, mas como se fosse fervente. O tiro acertou minha cintura, pegando uma parte quase que nula do quadril, mas me lembro da dor agonizante que era sentir aquilo. Talvez não mais do que ver os rostos de toda minha família, sem vida.
Eu lembro de gritar o mais alto e doloroso possível, e depois ver os soldados se aproximando. Eram muitos, nem sei exatamente quantos. Lembro também do rosto assustado de Irina, que havia sido atingida perto do maxilar. Tentei pegar sua mão, chegar até ela, mas outro tiro transpassou sua cabeça, manchando o formato de “ás de espadas” perto de seu rosto, enquanto um dos soldados pisava no me pulso. Eu me lembro que as balas eram de grosso calibre, e que o buraco do cano parecia profundamente convidativo, mas não era exatamente minha hora de morrer.
De repente foi como se tudo ficasse escuro. Não sem vida, mas sem qualquer iluminação, mesmo a das estrelas. Tudo tomou um negro completo e depois, quando voltou ao normal havia muitos corpos de militares mortos e entre eles, uma garotinha. Ela era pequena, jovem e de aparência frágil. Tinha olhos castanhos, não tão comuns, os cabelos na mesma cor de Terra e um sorriso de canto encantador e ao mesmo tempo apavorante. Lembro que ela sorriu ao me ver, se aproximou de mim e estendeu a mão. Não me lembro de tê-la segurado, mas lembro que quando sua pele tocou na minha, mais dor percorreu meu braço, até que tudo cessou de uma só vez. Eu me levantei em perfeito estado. Olhei para ela e nós dois sorrimos da mesma forma.
E essa foi a última vez em que eu estava no controle.
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