Quando Kifi ouviu falar pela primeira vez que havia um demônio entrando na mente das pessoas, ela não teve nenhuma reação. É claro que eles entravam na mente das pessoas. E nas almas, nos corpos, em todos os cantos, afinal, era disso que se tratava uma possessão. Levou um tempo até que seu chefe, Cimon, conseguisse explicar o que de fato estava acontecendo, e que não era nenhuma trivialidade como uma possessão, que você via todos os dias da sua vida, mesmos nos santos, que de santos tinham só o nome mesmo.
— Esse é diferente, Kifi, ele não possui a pessoa. Ele meio que... para no meio.
— Ele possui metade do corpo?
— Não.
— Metade da alma?
— Não.
— Cimon, você não está falando coisa com coisa...
— É que ele não chega a possuir nada completamente nem pela metade, para ser sincero. Funciona mais como uma hipnose. Ele planta uma série de sugestões na mente da pessoa, que ela não tem como recusar, e depois vai embora, atrás de uma nova vítima. Quem é atacado acaba cometendo vários crimes até que a influência do demônio se esvaia.
Kifi arregalou os olhos.
— Isso parece perigoso.... Já fazemos ideia de quem seja?
— Se temos um nome, você quer dizer? Não.
— O círculo do demônio?
— Nem ideia.
— Ele é um dos príncipes, Cimon?
— Como eu vou saber?
Ela quase subiu na mesa dele.
— Que informação você tem sobre esse hipnótico doido?
— O que eu acabei de dizer, que ele tem se infiltrado na mente de várias pessoas e feito com que elas cometam vários crimes!
Após alguns segundos para um complemento, que nunca veio, Kifi se recostou de volta na cadeira.
— Está me dizendo que só o que a gente tem é o depoimento de várias pessoas que cometeram crimes (e crimes graves), dizendo que foi um demônio que obrigou elas a fazerem tudo isso?
— Exatamente.
Kifi gargalhou daquele jeito irritante que só ela conseguia, numa frequência e ininterrupta, como se ela tivesse três pulmões. Ao notar que Cimon não parecia sequer confortável com sua risada, ela parou.
— Resumindo, eles estão mentindo.
— É o que eu acho também, mas você vai ter que investigar.
— Por que eu?! — Ela nem escondeu o ultraje, o que apenas fez a linha na testa de Cimon se alargar.
— Porque eu mandei e o chefe aqui sou eu.
— Ah, mas isso não é nem de longe um bom motivo...
Cimon estreitou os olhos.
— Eu estou falando sério e você sabe.
— Recebi ordens de cima, Kifi. Querem que a gente dê uma olhada.
— Ordens de cima de quem?
— De cima.
— Quero nomes.
— Vai fazer diferença para você? Vai te dar vontade de ir se souber quem foi que te sentenciou a esse trabalho inútil?
— Não — ela admitiu a contragosto.
— Então pronto. A ideia aqui é só mostrar que estamos considerando o pedido do delegado que está cuidando dessas prisões. Ele está atolado lá do distrito 34. Parece que chega mais de um doido por semana com essa mesma desculpa.
— Foram todos no mesmo distrito?
— Sim. Já são 11 no total. E você sabe qual é a nossa regra de ouro, não sabe?
Kifi se remexeu na cadeira, irritada.
— Uma esquisitice não é nada, duas pode ser delírio coletivo, três é definitivamente um problema.
— Você tem quase quatro vezes um problema aí. A não ser que todo mundo tenha descoberto uma maneira ótima de burlar a lei, jogando a culpa num demônio que não existe, pode ser que de fato exista algum chifrudo tocando o terror por aí. Você vai ter que dar um jeito nisso.
— Para variar...
— Olha... — Cimon procurou algo em sua mesa. Teve de mexer em três gavetas, graças à bagunça que se instalava no local. O resto do recinto não estava muito diferente, com mapas nas paredes, anotações em cada canto que se olhasse, além de embalagens vazias de doces e copos de café. — Ainda vou ser legal e deixar você levar um parceiro.
— Quanta gentileza. — Dava para cortar a frieza de Kifi com um facão.
— Que tal a Rasui?
— Prefiro a morte.
— Morfeu?
— Esse aí eu mataria, certeza.
Cimon suspirou, quase indo atrás de uma navalha que vira em alguma das gavetas.
— Aisling então.
— Sem chance.
— Com chance. Vai ser ela e acabou.
— Mas, Cimon...
— Não tem “mas”. Nem sei para que eu perguntei, Kifi. — Ele revirou os olhos. — Você não gosta de ninguém.
— Gosto de você.
— Me engana que eu gosto. — Fez um gesto com a mão. — Agora, fora. Vai, pode ir.
— A Aisling é uma imbecil, Cimon!
— A missão é imbecil, você é meio imbecil também. Vai ficar tudo em família.
Kifi estava prestes a responder quando ele acionou aquele maldito botão. O escudo protetor do cômodo foi erguido, e sua presença no lugar, rejeitada. Logo ela encarava uma porta fechada, selando sua sina naquela missão inútil e com a pior companhia do mundo. Segunda pior. Morfeu realmente teria sido horrível.
Sem opção, ela foi atrás de sua companheira compulsória. Como a nerd que era, supôs que Aisling estivesse no laboratório, e qual não foi sua (falta de) surpresa quando a avistou lá mesmo, fazendo alguma experiência desinteressante sobre algum assunto mais desinteressante ainda.
— Preciso que venha comigo — disse com ares de cumprimento.
— Boa... boa tarde para você também. — Aisling franziu o cenho, tentando ver quem era. Seus óculos não eram assim tão grossos, mas ela mal tirara os olhos da tela de seu computador, que analisava os dados recém-recebidos.
— De boa não tem é nada...
— Como disse?
— É para você vir comigo.
— Cimon precisa de mim? — Apertou algumas teclas, distraída. — Lamento, Kifi, mas avise a ele que estou ocupada agora.
— Não é ele quem está te chamando, sou eu. — Pousou a mão na tela, para garantir que fosse ouvida, o que funcionou.
— O que pensa que está fazendo? Estou cuidando de um trabalho importante aqui...
— Não mais que o que foi passado para a gente hoje. Temos uma missão.
— Desde quando eu saio em missões? Lá fora?
— Desde agora. Cimon designou você para ser minha parceira, então vai ser minha parceira.
Aisling a mirou como se Kifi de repente fosse criar asas e sair voando de seu laboratório.
— Também não achei ideal, mas não tem nada que eu possa fazer.
— Isso não tem nada a ver com não ser ideal — Aisling argumentou. — É totalmente ilógico. Eu trabalho com o cérebro, não com as mãos ou... o que quer que seja o que você faz.
— Espera aí. — Kifi colocou a mão sobre o teclado dessa vez, e tão pesadamente que ativou alguma coisa no meio da análise que se desenrolava, e Aisling guinchou.
— Tira a mão daí!
— Desde quando você “só usa o cérebro”? — Ela nem se importou de ser estapeada para longe do computador. — Até onde eu sei, você é a melhor atiradora de elite que a gente tem aqui.
Aisling bloqueou o acesso à máquina com um braço, protegendo-o como uma mãe faria à sua cria.
— Isso é coisa do passado. Tem anos que não pego em uma arma.
— Vai ter que relembrar como se faz então. Estamos atrás de um suposto demônio que entra na mente das pessoas só para mandá-las cometer crimes. Depois, ele se manda e fica tudo normal, como se ele nunca tivesse nem aparecido ali.
O relato não causou qualquer reação na cientista.
— Vou falar com Cimon sobre essa missão.
— Boa sorte. — Kifi riu. — Acha que eu não tentei me livrar de você? Aliás... — completou, antes de se virar para sair. — Minhas habilidades primárias envolvem a mente também. Ler pensamentos e andar pelos sonhos alheios. Claro que nada disso funciona dentro do prédio, mas, uma vez que a gente saia daqui, espero que você esteja com pelo menos esse treinamento em dia. Ou então, dê uma passadinha lá no armário de suprimentos antes. Detestaria saber o que se passa na sua cabeça...
Aisling enrugou a testa, mas não respondeu nada.
Com um sorriso, que só durou até ficar de costas para a futura parceira, Kifi saiu.
Foi na Delegacia de Polícia do Distrito 34 que elas pararam primeiro, para poder colher o depoimento do coitado que estava cuidando de tudo ali sem entender nada. Era um humano comum, sem nenhum vínculo com a organização e que, portanto, pensava estar em perdido em um mar de maníacos religiosos ou com um surto de esquizofrenia. Ou ao menos foi essa a primeira coisa que ele relatou às meninas quando se apresentaram como agentes da ABIN, Mônica (Kifi) e Eduarda (Aisling).
— Por que o senhor acha que é um surto de esquizofrenia? — Kifi perguntou.
— Primeiro porque essa coisa de demônio não existe, né, minha filha? — ele pigarreou, como se quisesse garantir que não viria uma resposta dos céus depois do comentário. Ou do inferno, que fosse. — Depois, acho improvável que tenha acontecido um surto súbito de possessão aqui no distrito, todos na mesma região, todos com o mesmo objetivo.
— E um surto de esquizofrenia é mais provável? — Aisling abriu a boca finalmente. Fazia anotações há algum tempo, apesar de Kifi achar que na verdade ela estava desenhando ali atrás sem ninguém saber.
Após pigarrear outra vez, o delegado arrumou o cinto das calças.
— É só uma suposição. Qual a teoria da ABIN?
— Não podemos revelar nada por enquanto.
— Não podem revelar ou não tem nenhuma? — O delegado riu, ao que Aisling reagiu com um olhar cortante. Mesmo por trás dos óculos dava para ver com clareza. O sorriso dele morreu na hora.
— Quando tivermos algo mais concreto o senhor será informado — Kifi disse, tentando apaziguar.
— Caso precisemos de ajuda, claro.
— O senhor será informado de qualquer maneira — ela acrescentou —, já que é o seu caso no seu distrito e não queremos nos meter, apenas ajudar, certo, Eduarda?
Aisling resmungou, rabiscando qualquer coisa.
— Bom, sabem onde me encontrar — o delegado deu a conversa como terminada.
— Podemos levar o mapa então?
— Claro. Temos diversas cópias dele aqui. Acho que inclusive já decorei as localizações, os desenhos que elas formam... Não aguento mais olhar para isso aí...
A expressão de Aisling sugeria que ela queria fazer algum comentário, e Kifi se coçou toda para tentar ler a mente dela e descobrir o quê, mas ela estava usando o fone unilateral que a bloqueava. Mal dava para ver o modelo de soslaio. Se fosse um dos antigos, conseguiria passar pela frequência e ler um pouco assim mesmo. Deu uma risadinha interna com a ideia. Talvez a surpreendesse depois com isso, se desse certo. Avisara Aisling para levar as proteções porque era norma na organização; ela tinha direito de se defender de uma possível invasão à sua privacidade. Se Kifi não soubesse com certeza que Cimon descobriria uma mentiria daquele nível, quer dizer, uma omissão daquele nível, teria feito justamente isso, omitido seus poderes da parceira e obtido acesso ilimitado à rádio Aisling durante aquela missão. Uma distraçãozinha não teria sido nada má...
— Você vem ou não? — Aisling acenou para a porta, onde já a aguardava para irem embora, o mapa na mão.
— Obrigada por tudo, delegado. Manteremos contato.
Apressou-se para fora.
— Por um minuto, achei que estivesse andando no sonho de alguém ali mesmo, de pé no meio da delegacia — Aisling comentou. Analisava o mapa enquanto falava com ela, o que sugeria que não queria ser desagradável, embora Kifi tivesse suas suspeitas.
— Fiquei pensando numa teoria — ela se defendeu, até porque com aquela criatura só havia dois cursos de ação em qualquer caso: defesa ou ataque.
— Vai compartilhar comigo?
— Quando eu achar que ela vale a pena. Ainda está em desenvolvimento.
— Aham. — Ironia ou mera concordância? Lá ia Kifi tentar passar pela frequência do bloqueador para descobrir... — A gente devia interrogar uma das vítimas. Todas, na verdade, mas temos que começar de algum lugar. Sugiro a última.
— O delegado já não fez isso? Ele perguntou se a gente queria as transcrições dele, os vídeos...
— Uma coisa é ele fazer esse trabalho, outra coisa é a gente fazer. Também acho que é uma boa ideia levar meu detector de energia maligna para ver se sai alguma medição. Já faz uns dias que a última pessoa foi atacada, mas nunca se sabe...
— Você trouxe um detector de energia maligna? — Kifi duvidou. — Por acaso ele é invisível? Eu vi suas malas. Não tinha espaço para um negócio gigante desses...
Com um sorrisinho, Aisling tirou o celular do bolso.
— Aqui.
— Isso é um celular, Mônica.
— Eu era a Eduarda. Mas não é isso. É a foto que eu quero te mostrar. — Depois de procurar um pouco, ela chegou à que queria. — Isso aqui é um medidor portátil, uma das coisas que eu desenvolvi no laboratório. Está vendo? Eu disse que trabalhava com a cabeça.
Kifi agarrou o celular, encarando aquilo sem acreditar totalmente.
— Cimon sabe que você fez isso aqui? Ele já viu esse troço? Porque o trambolho que a gente tem no escritório...
— Ele já viu, mas ainda não dá para produzir em massa para os outros agentes nem nada parecido.
— Por quê?
— Ele é portátil, mas ainda não é tão pequeno assim. Na foto não parece, mas tem que segurar com as duas mãos. — Gesticulou para mostrar o tamanho aproximado. — Mais ou menos assim. E pesa mais de um quilo, o que quer dizer que uma de nós vai ter que entrevistar a vítima enquanto a outra fica escondida em algum lugar fazendo a medição. O outro problema é que...
— O quê?
— Ainda é um protótipo, então ele meio que...
— Pode explodir na nossa cara.
— Não vai explodir — Aisling garantiu.
— Você segura, eu entrevisto. — Socou o celular de volta nas mãos dela. — A última coisa que eu quero é invocar um demônio por acidente ou sei lá.
— Não vai invocar um demônio por acidente! Você pelo menos sabe como funciona um medidor desses, Kifi? Sabe como funciona qualquer aparelho tecnológico?
“... completa idiota...”
A frequência do fone já estava próxima.
Com um sorrisinho, Kifi respondeu:
— Alguns. — E seguiu andando na frente, para voltarem ao hotel.
Assim que estava em posição, com Aisling na esquina, escondida em um arbusto — até porque pesava muito mesmo o medidor e facilitava a vida colocar um tripé para segurá-lo —, Kifi tocou a campainha. A última vítima era uma mulher de 32 anos, Geiza, que morava sozinha.
— Boa tarde, senhora Geiza — a agente cumprimentou, cordial. — Meu nome é... Mônica. — Quase dissera “Eduarda”, embora naquele caso não fizesse diferença. — Vim aqui em nome da delegacia do distrito 34 te fazer algumas perguntas sobre o incidente ocorrido no último dia 27.
— O incidente? Mas eu já tinha conversado com o delegado... Dei entrevista e tudo, me gravaram... Uma vez chamaram até um padre para me exorcizar, apesar de eu falado que o demônio já tinha saído.
— Eu sei, senhora, mas gostaríamos de verificar algumas informações, se for possível. Tudo bem?
Geiza pareceu um pouco perturbada e olhou em volta.
— Você veio sozinha?
— Vim, sim.
— E qual é seu nome mesmo?
— Mônica.
— De quê?
Kifi pensou um momento, nervosa. Pegara aqueles nomes de uma música popular, mas não chegara a desenvolver muito.
— Esteves. — Sorriu, estendendo uma mão para a mulher. Lembrou-se também de pegar o documento amorfo da organização que se moldava a gosto do freguês. No momento, ele mostrava uma foto de Kifi como policial, com o nome mencionado impresso. — Mônica Esteves.
Depois do cumprimento e de um estudo rápido da identificação da policial, Geiza assentiu.
— Pode entrar então.
Um olhar rápido para o arbusto assustou Kifi, que nada viu. De repente, um braço se ergueu, com um polegar para cima, em aprovação. Aisling captara o sinal da mulher. Conseguiria monitorá-la durante o interrogatório e determinar se ela carregava ou não energia maligna. Estavam indo bem.
Do portal, ela ainda fez um teste.
“... nais estão estáveis e, hum, tudo bem até agora”, Aisling pensava distraída. “Ai! Merda, acho que eu sou alérgica a alguma coisa aqui...”
Seu ouvido zumbiu um pouco, e Kifi deixou Geiza fechar a porta, acompanhando-a até o sofá.
“Distanciando dois... três metros e meio. Precisão de trinta centímetros. Quanto tempo será que um interrogatório demora? Será que é melhor eu mandar uma mensagem para a Kifi?”
Rindo em silêncio, a própria Kifi pegou o celular e o desligou.
— Então, senhora Geiza...
— Só Geiza tá bom. — A mulher abanou a mão. Estavam sentadas de frente uma para a outra no sofá de três lugares.
— Geiza. Você pode me contar em poucas palavras o que foi que aconteceu? Lemos a versão que ficou na delegacia, mas eu gostaria de ouvir de você diretamente. Quanto mais detalhes lembrar, melhor.
— Ah, eu não esqueci nada. Nada mesmo. — Ela apertava os dedos, nervosa. — Começou numa noite normal, sabe? Eu fui dormir no horário de sempre, por volta das onze, e aí tive um sonho.
“Ai, que se dane. Mandei. Espero que ela responda logo...”
Kifi lutou para manter o rosto impassível.
— Com o demônio?
— A princípio não. Eu acho... Era só uma voz. Ficava me dizendo... coisas.
— Como...?
— Besteiras, sabe. Me cumprimentou, mostrou que me conhecia. Depois, que conhecia meus vizinhos, como era minha vida e tudo mais... Mencionou umas coisas que me irritavam, como o cachorro da dona Vanuza, que mora ali na casa 38. Aí é que ficou estranho de verdade.
— Até aí era normal?
“Eu vou tocar fogo nesse arbusto, socorro...”
— Bom, em termos de sonho, acho que nem normal nem bizarro, mas quando a voz falou do cachorro... Ela me disse que eu não precisava ficar aguentando isso, sabe, um animal que latia para mim toda vez que eu saía de casa, que vinha morder meu pé sempre que eu descia do carro, e a dona dele nem para chamar a atenção do bicho ou qualquer coisa assim... Falou que seria meu direito me defender, que eu não estaria fazendo nada de errado se...
— Se você matasse o cachorro da sua vizinha.
“Que pena que nunca pensei em fabricar um lança-chamas miniatura...”
— Isso.
— Entendi.
— E, como eu disse no meu depoimento — Geiza continuou —, eu não sou uma pessoa violenta, mas era como se eu não tivesse controle sob mim mesma, como se tivesse algo tomando conta mim.... Vomitei horrores depois que eu... Depois que o cachorro...
— Vimos as fotos.
“Responde, Kifi...”
— Fiquei sem dormir dois dias quando isso aconteceu, até por medo de ouvir a voz de novo, mas não teve jeito e acabei caindo no sono sem perceber uma hora. — Os olhos de Geiza se encheram de lágrimas. — Na segunda vez, não teve conversinha, não teve nada. Ele só me ordenou direto: jogue veneno de rato no jardim do velho Romariz. Eu nem fazia ideia de que os netos dele estavam vindo visitar! Se não fosse o temporal que caiu naquele dia...
“Oh-oh! Positivo! Positivo! Responde, Kifi, pelo amor de... qualquer criatura não demoníaca!”
Kifi baixou a cabeça enquanto a vítima continuava seu relato para religar disfarçadamente o celular. Brincadeiras à parte, precisava daquele contato, nem que fosse só para Aisling não suspeitar que estava tendo seus pensamentos extraviados.
Tão logo viu o valor na tela — que já sabia devido à sua espionagem —, ela piscou. Nada de ilusão ou esquizofrenia: tinham um demônio em mãos.
Ainda se foram uns vinte minutos, entre muito chororô e palavras de consolo, até Geiza contar a história toda. Como conhecia de cor os crimes que ela cometera, Kifi procurou apenas reagir nos momentos certos, para participar da conversa, sua atenção toda voltada para Aisling e seus dissabores com a planta. Gostava de vê-la sofrendo e pedindo para sua parceira voltar depressa.
Quase pedia um chá à sua anfitriã quando um pensamento invadiu sua mente.
“Acho que ela está enrolando de propósito.”
Não deixava de ser mentira.
“Ela nunca foi com a minha cara.”
Kifi se despedia de Geiza com um sorriso que era destinada a outra pessoa, mas o sorriso valia mesmo assim. Aisling se coçava com tanta força que até por ali ela conseguia ouvir.
“Queria dar um sermão enorme quando ela voltar, mas, do jeito que a coisa vai, só vou parecer uma ridícula... Já estou parecendo uma ridícula. Kifi nunca vai me levar a sério desse jeito...”
O tom envergonhado com que o pensamento veio fez Kifi arquear uma sobrancelha. Aproximou-se do arbusto, certa de que Geiza não estava mais por perto.
— Aisling? Eu vi sua mensagem.
— É, eu vi que visualizou, mas não respondeu... — ela disse, sentada no meio das plantas. Mal levantava a cabeça. Estava com o rosto vermelho, e não era de embaraço.
— Queria que a Geiza pensasse que eu estava com ela cem por cento do tempo. Quer ajuda para sair daí? — Ofereceu a mão.
“Ela nunca vai me levar a sério mesmo...”
A nota triste fez Kifi arregalar os olhos.
— O que houve? — disfarçou. — Alergia às plantas?
— É... Você acredita?
Kifi embaralhou a frequência de novo, para que o bloqueador de Aisling voltasse a funcionar.
— Acredito...
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