guilhermerubido Guilherme Rubido

Em uma manhã comum, ele se depara com a figura mais bela que já vira em toda sua vida. Seus aspectos o impressionam, gerando uma admiração obcecada pela jovem mulher. Contudo, com o tempo ele descobre que, além da beleza escultural, ela é uma exímio violinista. Esse hobby desperta nele um ódio oculto. A admiração se torna fúria. Com terror, ele ouve as apresentações demoníacas da mulher, até que, alucinado e tomado por uma cólera assassina, ele decide agir.


Horror Impróprio para crianças menores de 13 anos.

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A Música ao Lado

Foi em uma tarde quente de dezembro – clima costumeiro na cidade – que me deparei com a figura mais bela que já havia contemplado em minha vida. Eu caminhava pela calçada desnivelada e cheia de rachaduras causadas pelas grossas raízes das árvores que, crescendo demais, acabavam por se elevar sob o solo, destruindo aos poucos a formação de paralelepípedos que se estendiam em um mosaico preto e branco. Não costumo me importar muito com o mundo à minha volta. Então, andava de cabeça baixa, olhando para meus próprios pés. Acompanhava-os com meus olhos, tentando criar uma sincronia musical com o som que eles produziam ao tocar o chão. A calçada estava infestada de folhas secas e marrons. Por vezes, alguma surgia em meu caminho. Era fácil ouvi-las se partindo debaixo dos meus pés como vidro estilhaçado

Porém, meu ritmo com os pés foi quebrado e colocado em segundo plano pelo som de passos rápidos e fortes que vinham do outro lado da rua. As passadas eram confiantes, não hesitavam ao caminhar. Que o mundo se afastasse dela quando chegasse. Sem ousar levantar minha cabeça – ao menos por enquanto –, fiquei ali, apreciando o som um pouco mais com os olhos pousados sobre uma folha no chão. A rua era monótona e, naquele momento, nenhum carro se fez presente para nos atrapalhar com seus motores ronronantes e odores de óleo quente; de modo que pude ouvir tudo com bastante clareza. Corroído pela curiosidade, virei-me com rapidez em sua direção. Logo encontrei a origem do som e, diante da arrebatadora cena, eu estremeci sob o céu caliginoso azulado.

Era linda! Meus olhos acompanharam extasiados a jovem mulher que passava na outra calçada; suas pernas brilhando à luz do sol como neve, a cabeça erguida de forma imponente, feito o busto esculpido habilmente de uma terrível deusa da babilônica – uma Ansar ou Ea –, fazendo a luz do sol se derramar sobre seu rosto branco, descendo para o resto do corpo que se revelou de um tom de branco igualmente pálido. Longos cabelos negros se derramavam por sobre os ombros, caindo pelas costas como compridas cascatas de águas escuras e caudalosas. Na mão direita, carregava pela alça um case de violino. Uma amante das artes clássicas, soterradas por instrumentos vulgares e personalidades de vocal duvidoso. Pensei nas sonatas, noturnos e rapsódias que ela poderia me propiciar. Como um tolo, tracei uma história inexistente; planejei com entusiasmo um futuro ignoto.

Quando dei por mim, percebi que estava paralisado. Não sei ao acerto por quanto tempo fiquei estagnado, atônito demais para me mover. O mundo à minha volta havia se desmanchado em um confuso borrão. Observando-a, comecei a segui-la com o incrível ímpeto de um jovem apaixonado. Não a perderia de vista, entendem? Afinal, meu corpo gritava, e eu sabia que havia encontrado a pessoa certa. Não a deixaria escapar de mim. Sei o quão estranho isso pode parecer, quão parecido com um maníaco obcecado posso aparentar! Eu sei! Ainda assim, peço que ponderem por alguns segundos e reconsiderem a afirmação. Eu estava apaixonado. Via-a como um sonho fugitivo e delicioso, daqueles em que você fica deitado na cama após despertar, revisando as vívidas cenas para que elas não fujam de sua memória e se percam para sempre na escuridão da imaginação. A ideia de que esta poderia ser a única vez em que eu a veria me consumia por dentro. Santos é uma cidade pequena, é certo, todos sabem, mas nunca sabemos os caminhos estranhos que uma pessoa pode percorrer. Os cantos ocultos escondem histórias diversas e, mesmo em uma cidade restrita, as estradas podem jamais se cruzar outra vez. Como eu poderia saber? Não deixaria a oportunidade passar. Então, que joguem suas pedras aqueles que quiserem! Fiz o que achei que seria certo.

Segui-a por cerca de dois minutos sem que, por sorte, saíssemos do rumo que normalmente sigo quando volto para casa. Depois de andarmos algumas quadras – eu fitava suas costas sem que ela me visse, maravilhado com sua visão – aconteceu o inesperado. Qual não foi minha surpresa – vocês imaginam – ao ver, com distância segura, a garota parar à frente da porta da casa ao lado da minha. Sua mão foi até o trinco da porta e ela entrou. A casa ao lado já estava a venda há um bom tempo, mas, devido alguns problemas estruturais, ninguém tinha interesse nela. Diziam que seus pilares e colunas estavam danificados de forma irreversível, sua fundação estava morta. Eu mesmo a considerava já abandonada e sem perspectivas de um local habitável. Contudo, a garota parecia a ter escolhido como sua excêntrica residência. Lembro-me de pensar se ela não seria uma poetisa ou algo afim buscando ambientes insólitos em cidades mais reservadas em busca de inspiração para suas obras. De qualquer modo, que sorte a minha, vocês devem estar pensando! Um triunfo! Os cosmos lançaram as cartas na mesa e eu as aproveitei. Pobre de mim, é o que devo dizer, pois aquela seria minha perdição.

Processei por um tempo a informação e então corri para dentro de casa. Era questão de tempo até que nós nos encontrássemos à porta para trocar algumas palavras. Éramos vizinhos agora. Apenas uma fina parede de gesso nos separava. Não que eu planejasse fazer algo. Não quero que pensem isso – ao menos agora. Apenas demonstro o quão próximo estávamos um do outro.

Os dias se passaram e, toda manhã, quase que ritualisticamente, eu a observava da janela, vendo-a sair pela porta da frente e caminhar até a rua. Admirava sua beleza pálida que era abrilhantada pela forma como dirigia seu corpo. Uma figura imponente e segura, que me fazia pensar que nunca teria coragem o bastante para abordá-la. Afinal, quem eu era? Um homem triste que havia herdado tudo o que tinha dos pais mortos em um acidente de carro. E ainda tinha o cheiro. Ah!, aquele cheiro! O cheiro do cais onde eu trabalhava. O cheiro do mar e do sal se impregnaram com os anos de trabalho em todas as minhas roupas. As pessoas não pareciam senti-lo, visto que nunca recuavam ou faziam caretas ao se aproximar. Mesmo assim, eu o sentia por todos os lados como um velho camarada. Sentia o cheiro acre que exalava de mim. Mas isso é um assunto que não quero aprofundar, apesar do fraco trocadilho. Ninguém gosta de ficar falando de seus próprios defeitos.

Diferente da admiração ordinária que queimava dentro de mim nos primeiros dias, vi uma tempestade se formando em meu âmago. A admiração se tornou obsessão; uma obsessão compulsiva que ultrapassava o campo da normalidade, transcendendo em muito qualquer tipo de sentimento que já nutrira por alguém, ainda que jamais tenha trocado mesmo que uma única palavra com ela. Vi a doença tomando forma, se avolumando como sombras por cima de meu corpo.

Minha vigília matinal ganhou um turno a mais no horário da noite, pois sua visão ao alvorecer não era o bastante para arrefecer meus sentimentos. Além disso, sem coragem para contatá-la diretamente, comecei a segui-la secretamente pelas ruas. Sei que muitos me viam com olhares julgadores rondando à espreita como um felino sobre sua presa. Dou graças aos céus por nenhum transeunte ter acionado a polícia para me prender como um maldito perseguidor.

Uma ira se abatia sobre mim quando a via conversar com o mais ordinário homem! Odiava qualquer cena do tipo! Sentia vontade de revelar-me das sombras e matar qualquer um com quem ela falasse. Vocês sabem como é se apaixonar por alguém e não ser correspondido. Nem mesmo um mínimo olhar me era concedido. Maldita! Cinco vezes maldita!

Vocês devem estar pensando enquanto riem da minha desgraça: por que uma mulher como ela se interessaria por um simples trabalhador do cais? E eu respondo, nem sempre fui assim. Minha família possuía dinheiro. Na verdade, digo com humildade: muito dinheiro. Sempre fui uma pessoa versada na escrita, um erudito nato. Meus conhecimentos encantavam aqueles que vinham até mim em busca de boas conversas e, correspondendo com entusiasmo, me sentava com beberrões, charlatões e idealizadores em mesas de bar para desfrutar de divertidas conversas. Eu era um glutão devorador de livros. Lia de Hemingway a Assis. Decorara os 4 passos da Dúvida Metódica de Descartes e era capaz de recitar a Edda Poética sem hesitar, entoando os versos fantásticos com uma musicalidade impressionante. Conhecia os mistérios profanos e os deuses antigos dos contos de Lovecraft. Desbravei por muitas vezes as catacumbas perdidas da Ciméria e os céus de Paraíso Perdido de Milton. Então, rogo, não sou um louco. Apenas caminhei por campos que deveriam estar trancados para seres como nós. Aproveito estes dias neste local decrépito e esquecido pelo tempo para exercer esses meus ofícios. Por isso conto minha história a vocês. Não me tomem como um tolo inculto, seus malditos! Desculpem-me, me exaltei um pouco. Não apagarei o que foi escrito, nem poderia; meus pensamentos são livres e vocês me entenderiam se estivessem aqui.

O que lhes contarei pode chocar algumas pessoas. Peço para que os de coração mais frágil e aqueles que são mais sensíveis às tentações nefastas do desconhecido pulem essa parte do relato. Porém, os advertirei: sem este fragmento, não saberão os motivos de minha...personalidade exótica.

Como dito acima, eu era um amante inveterado das artes. Há 10 anos atrás, quando meus pais ainda eram vivos, decidi fazer minha caminhada semanal até o pequeno sebo em frente à praia que eu frequentava para garimpar novos livros e discos para a minha vasta coleção. Meus queridos pais haviam ingressado em uma viagem de negócios e voltariam naquele dia somente à noite. Era meio-dia e a caminhada foi tranquila, apesar do sol forte que queimava o asfalto.

Cheguei ao sebo, cumprimentei o garoto que ficava no caixa – sempre fui bastante cordial – e comecei minhas buscas. Encontrei muitos tesouros naquele dia. Fiquei surpreso com as pepitas que havia perdidas por ali. Como eu nunca as tinha visto em minhas visitas? Perguntei ao garoto no caixa e ele me explicou: um velho centenário da região tinha morrido recentemente. Parece que não possuía parentes e, quando entraram em sua casa, acharam-na atolada em livros, quadros, discos, fitas e revistas. O homem era um acumulador. Por sorte, o dono do sebo foi um dos homens que ajudaram a retirar o corpo do velho do apartamento. Parece que ele comprou – ou roubou – boa parte das ninharias acumuladas. E ali estavam, expostas à minha disposição.

Em minha busca, encontrei livros inestimáveis a preços baixíssimos. Um deles, uma raríssima edição do Grimorium Verum, escrito por Alibeck, o Egípcio, em Mênfis, no ano de 1517 – fato que alguns especialistas tentavam, vergonhosamente, taxar como fraudulento. O outro, um tomo grosso de capa de couro preta com uma dourada Triquetra entalhada, era desconhecido por mim. O livro abordava cultos e rituais secretos direcionados à Satã, Belial, Belzebub e, até mesmo, à deuses pagãos. Com capítulos focados em mitos nórdicos, xamanismo e neodruidismo.

Em meio aos livros, encontrei uma fita cassete desgastada que me chamou a atenção. Escrito com caneta preta, havia um título. Sua leitura era impossível para mim, já que a língua me era desconhecida. Poderia transcrevê-la aqui, mas confesso que já não me lembro mais. Curioso, levei-o para casa junto dos outros livros.

Chegando em casa, me preparei para iniciar as leituras. Costumava ouvir algo enquanto lia e, vendo a oportunidade de averiguar o que havia na fita, retirei o velho aparelho toca fitas que guardava em meu armário, encaixei a fita e, jogando-me na poltrona, me pus a ouvi-la. Exceto por mim, a casa estava vazia. Ainda estava de tarde, meus pais demorariam a chegar, poderia aproveitar o momento em paz.

A fita fez um barulho engasgado e um chiado breve soou por alguns segundos. Após o chiado, houve um momento de pausa, até que, sobrepondo-se a tudo isso, notas demoníacas começaram a tocar. Primeiro soturnas e melindrosas, obtendo vigor conforme o passar da música. Não ouso descrever o que ouvi. Não poderia, mesmo se quisesse, pois não sei se realmente o que ouvi. Tão terrível era aquela melodia que meu corpo inteiro estremeceu sobre a poltrona, como se uma corrente elétrica percorresse minha pele. A música flutuava entre um Niccoló Paganini, Saint-Saëns, e coisas mais horríveis. Em minha poltrona, permaneci estonteado. Não conseguia movimentar meu corpo. Em torpor extasiado, eu via as formas do mundo se distorcerem em coisas distintas. Ouvi passos correndo no andar de cima. As paredes da minha casa de repente se tornaram velhas e secas; exalavam um odor pueril e sufocante enquanto derretiam como piche negro e viscoso, deslizando pelo rodapé até o chão da sala, formando uma camada fina e negra abaixo de mim. Coisas se arrastavam pelo chão enquanto a música feroz retumbava reverberando pelo cômodo; gemendo aflitas em meus calcanhares, as coisas estranhas bradavam meu nome com respeito. Chamavam-me de senhor, deslizando e puxando meus dedos sem que eu pudesse mover minha cabeça para olhá-las. A música flutuava pelo cômodo, as ondas sonoras quase tangíveis no ar.

Permaneci ali por alguns minutos, balançando no limiar da realidade, até que a música cessou por inteiro, dando lugar ao chiado fraco. Retomando o fôlego, ouvi o telefone tocar. O som me fez pular da poltrona, percebendo o quão exausto eu estava. Quando o atendi, recebi a notícia de que meus pais haviam sofrido um acidente de carro. Mas como era possível? Eles só voltariam a noite e o caminho de volta não era muito longo. Além disso, com meu pai no volante, demorariam ainda menos. Foi que pensei, tremendo com o telefone em meu ouvido. Apenas uma ou duas horas de estrada. Ainda era muito cedo, não era?

Agradeci e pousei o celular sobre a mesinha. Minhas pernas transformadas em areia pelo choque caminharam até a janela. Lembro de como o mundo parecia distante e irreal. Quando escancarei as cortinas, a luz da lua me iluminou. Vi as casas adormecidas de luzes apagadas. Era noite.

A partir desse dia, minha vida jamais foi a mesma. A realidade se apresentava de modo estranho a mim nos dias que se seguiram. Tive muitos pesadelos enquanto dormia e outros que não sei se posso chamar de sonhos. Meu descolamento com o mundo real foi abrandado pelo tempo.

Agora, voltemos ao presente. Onde estávamos? Ah, sim.

Alguns podem perguntar: por que você nunca foi conversar com ela. Ora, como eu poderia? Vocês não sabem a força que a mulher possuía! Apenas idiotas falavam abertamente com ela sem sentir um receio, um medo selvagem e primordial. Ninguém ousava abrir a boca para falar, mas eu via em seus olhos que eles conversavam. De longe, eu podia ver as pessoas com quem ela entrava em contato se tornarem completos idiotas; via a vida desaparecer de seus rostos. Esqueciam-se de seus instintos que, em outras épocas, os teriam feito correrem de uma situação como essa! Não! Eu apenas vigiava como guardião. Observaria de longe. Sempre de longe. Esse era o mais próximo que eu ousava ir.

Minha destruição completa se iniciou quando ela apresentou ao mundo seu hobby noturno. Afinal, aquela maleta para violinos servia para alguma coisa. E como servia.

De dentro de sua casa, todas as noites – por volta das 9 – ela fazia as cordas de seu violino ressoaram um som misterioso e intenso. A música atiçava-me como a flauta de um encantador de serpentes. O som do violino reverberava vivo até minha casa, ressoando dentro da minha cabeça como se a musicista estivesse tocando ao meu lado. Quase podia ver suas mãos percorrendo o braço do violino; as falanges dos dedos pressionando as cordas contra o espelho. Pelos aposentos de casa, as notas melancólicas flutuavam em um tom agudo, rodopiando pelo lugar como o lamento desesperado de uma mulher solitária. Como eu sofri! E sofro hoje ao reproduzi-la em minha cabeça! O som terrível causava em mim um desespero do qual não podia escapar a menos que saísse para uma caminhada pelas ruas de terra da cidade. Eu teria de ir muito longe para não ser alcançado por aquelas garras. Feito um cachorro com o rabo entre as pernas, eu me encolhia acuado até que a apresentação fosse encerrada. De alguma maneira familiar, eu estava ciente de que aqueles trechos performados faziam parte de algo maior, uma desolada peça de um grande quebra-cabeça abstrato. Ainda assim, a amostra musical já era poderosa o bastante para me fazer relembrar experiências terríveis. Mas de onde? De onde aquilo me era familiar? Naqueles dias, essa era uma pergunta para a qual eu não tinha respostas. Meu sofrimento era um mistério. Hoje em dia, pude pensar sobre. Agora sei. As notas pisoteavam o amor que eu sentia por ela, destruindo-o aos poucos, até que apenas restasse ódio.

O que me deixava aliviado era que a música não tinha uma voz de acompanhamento. Apenas o violino soava. Pensar nisso fez com que eu desejasse jamais ouvir a voz da mulher. Pois eu sabia que ela se elevaria destruidora, mais terrível do que o timbre de qualquer instrumento.

Diariamente eu ouvia o violino e, sem saber que medidas tomar, sofria em silêncio. Aquilo estava me enlouquecendo. Minha cabeça doía cada dia mais, exausta com o som daquilo! Começava a sentir uma raiva colérica, que, por deus, não consegui controlar por muito tempo. Quando as primeiras notas chegavam aos meus ouvidos, um arrepio percorria todo meu corpo; sentia fogo correr por minhas veias. Tentava me esconder pela casa, procurando algum canto que isolasse o som, mas a música me encontrava como tentáculos deslizantes. Encolhido em um canto, podia ouvir passos andando pelos andares de minha casa; percorrendo os quartos vazios em andares vagarosos e outros corridos. Pessoas conversavam no andar de baixo em euforia. Quando a música parava e eu descia as escadas, não encontrava nada. Não aguentava mais! Minha mente conturbada trazia pensamentos hediondos à tona. Raiva, dor e morte. Talvez me jogar daquela janela e acabar com o sofrimento. Sob a terra profunda onde os mortos descansam em seus leitos, o som não poderia me encontrar. Não poderia! Acreditava que minha cabeça explodiria caso tivesse que ouvir aquilo mais uma vez.

Há algo de que muitos duvidarão. Quando as cordas do violino vibravam sob o arco, o mundo, ou melhor dizendo, a realidade, parecia vibrar em conjunto. Contorciam-se como dois dançarinos em sintonia. Era nesses momentos em que me era concedido um breve vislumbre do que se esconde por trás do véu que chamamos de realidade. Devo dizer que o que era visto nas distorções físicas e temporais variava de intensidade de acordo com o trecho da música, seu tom, meu estado mental e seja lá mais o quê. Efeito que experimentei também no fatídico dia em que pus a fita cassete para tocar em minha sala, apesar da música que ouvi não parecer a mesma que a que era tocada pela violinista durante as noites. Sou da opinião de que eram trechos desorganizados da música real.

Tantos foram os dias em que esses pensamentos negros de suicídio e desconfiança acerca da realidade e do tempo me assolaram sem que eu obtivesse coragem para agir. Até que, à beira da loucura, minha paciência se esgotou.

Inutilmente eu tentava olhar de minha janela para dentro da casa dela. Não vi quase nada, pois aquele recinto mantinha suas luzes apagadas. E, pensando bem, acho que nunca vi luz alguma se acender naquela velha residência.

Antes que o iminente concerto tivesse início, decidi que beberia algo para aliviar a tensão prévia e as dores póstumas. Comecei às oito horas da noite. Temendo que meus ouvidos e minha mente não aguentassem aquela noite, eu bebi sem parar. Derrubando uma garrafa atrás da outra. Sempre fui um apreciador das bebidas e, àquela época, costumava beber bastante. Estou limpo há alguns dias, desde o incidente. Quando o relógio bateu às nove horas da noite e as notas começaram a soar, eu já estava totalmente fora de mim. Nem toda a bebida da casa fora suficiente para amenizar a horrível música.

Admito que o álcool pode ter sido responsável por deixar as sensações ainda piores. E como eu gritei escondido em meu quarto. Gritei tanto até que meus berros sobrepusessem a música. Agachei-me em meu quarto, escutando as conversas no andar inferior e os espíritos zombeteiros que arrastavam os pés pelo assoalho, segurando-me e rezando para não enlouquecer diante daquilo tudo. O suor escorria pelo meu corpo em filetes quentes. Nada adiantava. O som me perfurava! Antes que eu pudesse me dar conta, eu havia entrado em um frenesi de insanidade incontrolável. Tudo me parecia muito rápido. A realidade parecendo seguir o compasso veloz da música, ajeitando-se à ela quando necessário.

Aquela puta! Megera desgraçada!

Com a cólera alucinada borrando meus olhos, agarrei uma faca na cozinha e fui em direção a casa da mulher que um dia me causara tanta admiração, mas que agora, só evocava pensamentos cruéis e hediondos em minha mente. Iria acabar com aquilo! Ah! Ainda me lembro do modo como a música explodia em meus ouvidos, retumbando pelo meu corpo como se tentasse me impedir. Quanta dor senti! Só de pensar, meu deus! Agora daria tudo para ter aquele pescoço em minhas mãos outra vez. Fazê-la sentir... Arrancar seus braços astutos e gritar: toque alguma coisa, sua filha da puta! Anda, toca! Contudo, fui um pouco mais educado, como verão a seguir. Não sou um animal, e vocês viram nesse relato pelo o que eu tive de passar.

Não me lembro com exatidão o caminho que percorri para chegar em sua casa. O mais provável é que eu tenha pulado da janela de meu quarto para o dela. Droga! Achei que se escrevesse conseguiria lembrar, mas não adianta. Só me recordo daquele maldito violino servindo de trilha sonora para todo o ato; aquilo só me fez sentir mais ódio. Tenho certeza de que fiz tudo com bastante perícia, pois nunca me descobriram. Ah, sim, com certeza.

Das poucas lembranças que tenho, lembro que estranhei a casa em que eu estava. Era velha, decrépita e afogada em escuridão. O papel de parede descascava enquanto o resto da fundação caía em pedaços. Cheiro de mofo e amônia se espalhava por tudo em um odor pútrido.

Lá, por óbvio, a música era muito mais alta. Senti-me colocado dentro de um amplificador. Quando cheguei à sala de onde o som vinha, deparei-me com a seguinte cena: com suas vestes negras derramando-se pelo corpo feito um rio espacial, ela fazia o arco dançar sobre o violino com graciosidade. O ambiente era mórbido, mas a forma como ela conduzia sua apresentação era louvável. Minha sorte é que ela ainda não tinha me visto. Assim, pude observá-la por um tempo. Havia prazer em seu rosto; o tipo de prazer que músicos experimentam ao se deliciar com suas novas canções. O modo como ela se comportava tornou tudo aquilo muito mais horrendo. Deslizava os dedos esguios e brancos pelo braço do violino, tocando com uma das mãos as cordas como uma rapidez natural enquanto a outra balançava o arco desgrenhado com a velocidade de uma serpente, tão impressionante os movimentos que se tornavam um espetáculo à parte. O violino repousava em seu ombro como um bebê descansando no colo quente da mãe. Era algo orgânico, quase como se o instrumento fizesse parte de seu corpo.

Quando ela se virou para mim ainda tocando, senti um terrível arrepio. Vi sua língua sibilar como uma naja em minha direção. Uma aura horrenda e pesada me envolveu como mãos. As notas vibravam, conduzindo-me e revelando-me a detalhes que há pouco me eram imperceptíveis. As cordas do violino sangravam como tendões esticados sobre o tampo, enquanto a voluta apontava para mim como um animal vivo. Vi a parede às suas costas desmanchar em piche negro como o que vi em minha casa. Por trás do líquido preto, olhos encravados nas frestas dos tijolos se abriam preguiçosamente para me encarar arregalados. Alucinada, ela desferia golpes contra o instrumento, dirigindo a música como queria. Um capitão experiente conduzindo um grande galeão. O leme girando com naturalidade em suas mãos mesmo em meio à uma tempestade. Sem aviso, um Paganini comedido deu lugar à insanidade e, elevando-se terrível acima do som das cordas, uma voz se juntou à música, fazendo meus sentidos explodirem em um turbilhão de sensações e sensibilidade em relação ao mundo ao meu redor. Meus sentidos percebiam tudo, engolindo qualquer coisa que havia disponível. Era a música! Era a porra da música que eu ouvira em minha casa. Agora completa, apresentando-se na plenitude de seu terror! O excesso de informações me deixou conturbado. Maldita é a partitura demoníaca que ostenta tais notas! O espetáculo demoníaco evocava sombras dançantes na parede. Um festim de silhuetas bruxuleava macabras acompanhando a música em formas disformes, constituindo uma tétrica cena. O verdadeiro sabbat das bruxas.

Com a faca em mãos, corri em sua direção sem hesitar. As paredes da realidade tremiam feito uma caixa acústica. Naquele ínterim, meus olhos alcançaram mundos distantes, desbravando com inocência terras proibidas. Numa fúria implacável, avancei desferindo um golpe direto em sua garganta albina. A música se interrompeu de supetão, mergulhando a sala em silêncio oculto. A normalidade emergiu novamente diante de mim. Ela não chorou, não gritou, nem ao menos se debateu. Apenas colocou os dedos sobre a ferida, analisando e sentindo o corte profundo que se abrira no pescoço. O sangue esguichou em meu rosto com um odor mefítico. Contorcendo-se um pouco, sua boca se abriu na tentativa de conseguir respirar. Parecia tentar sorver o ar por um canudo muito fino. O barulho de sua respiração falha me irritou profundamente.

A pele de seu rosto, que antes era branca e pálida, tornou-se de um tom mais azulado. Parecendo um felino desesperado, ela arranhou o local do ferimento, manchando as mãos com o sangue que escorria do corte aberto. O sangue deslizava por toda a pele branca, agora maculada, e se juntava com as vestes negras que ela usava. Lembro-me de ter pensando no conto de Edgar Allan Poe e sua Morte Rubra e fiquei orgulhoso de mim mesmo por ter mantido a mente clara e organizada em um momento como aquele.

Como se toda cena fosse interrompida e o tempo voltasse a transcorrer normalmente, o controle retornou a mim e eu percebi toda a magnitude do que havia feito. Não digo nem por um momento que me arrependo do que fiz. Não, não. Nada disso. Todos teriam feito o mesmo; e aqueles que não o fariam apenas hesitariam por amarrar sociais. Mas confesso que senti uma agonia enorme após o ato; como se algo tivesse recaído sobre meus ombros. Um vento lúgubre soprara, um mau agouro ululante. Olhei-a horrorizado. Seu corpo cadavérico jogado ao chão. O branco brilhante de seu corpo caído sobre o violino espatifado. Não havia mais volta. Larguei a faca e sai correndo, escapando pela mesma janela que usara para entrar na casa. As últimas coisas que ouvi naquela noite foram o retinir metálico da faca batendo contra o chão e as últimas arfadas solitárias às minhas costas.

Deitei em minha cama sentindo a poeira grudada pelo meu corpo e adormeci.

***

Quando me levantei na manhã do dia seguinte, estava exausto e sujo. Havia sangue seco em minhas mãos, agarrava-se aos nos dos dedos como tinta descascando. Levantei da cama preocupado, mas, aparentemente, ninguém tinha chamado a polícia. Parecia que nada havia ocorrido na noite passada. Provavelmente ninguém escutou os barulhos. Nem eu mesma me lembrava deles. Talvez alguém até tenha batido à minha porta, mas eu dormira bastante naquela noite, não teria escutado de qualquer forma. Essa era sensação de matar? Esse vazio? Sinceramente, não me importava com qualquer coisa do tipo, estava aliviado por ter me livrado dela.

Desci as escadas sentindo um cheiro estranho de mofo pela casa. Pensei, olhando para um móvel empoeirado, que eu deveria fazer uma faxina urgentemente. Me joguei no sofá e vi que havia um jornal entre as almofadas.

Como de costume, não havia nada de interessante nas primeiras páginas. Acidentes automobilísticos, problemas no cais, enchentes na entrada da cidade, chuvas fortes e árvores caídas. Uma das poucas notícias que me chamou a atenção era a matéria que falava sobre o vigia noturno que fora encontrado morto alguns dias antes no teatro Coliseu, no centro da cidade. Parece que ainda estavam apurando o caso e as causas da morte eram desconhecidas e, aparentemente, bastante estranhas. É engraçado como nós sempre lemos o jornal com aquele sentimento de alívio inconsciente de "ainda bem que não era eu". A última página mostrava a previsão do tempo dos dias seguintes: chuvas fortes com lufadas de vento de até 65 quilômetros. O jornal era de apenas dois dias atrás. Contudo, quando olhei para a rua, o sol brilhava intensamente. Não achei estranho de cara, afinal, quantas previsões erradas são publicadas todos os dias? O que me fez me mover sentido meu corpo inteiro se enrijecer era a corrente estranha que havia no ar. Sabem? Aquela sensação de “algo não está certo”?

Saí pela porta da frente e encarei atônito. Havia lixo acumulado pelas sarjetas e folhas caídas pelo asfalto. Ninguém andava pelas calçadas e os únicos carros visíveis estavam estacionados pelo meio fio, enquanto outros descansavam tortos e desordenados ao longo da rua. Eu não estava entendendo nada. O que poderia ter acontecido enquanto eu dormia? Os silos nucleares em cuba tinham se aberto e lançados? A Coréia do Norte tinha finalmente lançado duas bombas contra o mundo? Mas não poderia ser isso. Tudo estava...inteiro. As coisas estavam apenas envelhecidas.

Comecei a caminhar sem perceber; a curiosidade me movendo, conduzindo-me pelas ruas desertas e sujas. Em certos pontos, ao longe, eu via alguns carros correndo. Até mesmo fui capaz de ouvir algumas vozes ao longe em momentos diferentes. Às vezes eram muitas, outras apenas uma. Por um momento, pensei ter visto um café funcionando normalmente em uma das esquinas. Quando olhei melhor, estava enganado. Atrás dele, um prédio caia aos pedaços, torto como um mastro abatido de um navio enterrado. Engoli em seco com a imagem assustadora da civilização tombada. Então, desesperado, comecei a correr até o cais onde trabalhava. Eu morava bem próximo do local; em menos de 5 minutos eu estraria lá.

Quando finalmente cheguei ao cais, o local estava cheio de gente – como era de costume – e os navios flutuavam normalmente sobre o mar. Ouvi as buzinas dos colossos marítimos, o som de metal de ferramentas, vozes conversando, resmungo de marinheiros e trabalhadores. Sobre a minha cabeça, guindastes se moviam empilhando containers ou os transportando até a proa e popa das embarcações. O mundo estava vivo. Eu estava vivo. Suspirei aliviado.

Todavia, como se eu fosse sugado para fora de um sonho, o mundo que estava diante de mim vibrou estático, reverberando fortemente até que desse lugar ao caos que eu vira pelo resto da cidade. Não acreditava no que via. Tentei em vão agarrar as pessoas que passavam por ali; tocar a água do mar; me segurar contra o chão. Mas tudo se esvaiu como pó pelo ar, desaparecendo como se jamais tivessem existido. A imagem foi engolfada por algo mais cruel; algo bruto. Agora o que eu via era um lugar desolado e vazio. Com rachaduras para todo lado e containers caídos pelo chão com suas portas abertas. Os guindastes apodrecidos e enferrujados agora brilhavam de baixo do sol como carcaças carcomidas de animais titânicos. Alguns navios continuavam lá, porém, eram agora nada além de estruturas de metal enferrujado. Amontoavam-se sob a água até que se erguessem à superfície, formando a ponta de uma torre de navios antigos. Outras armações e esqueletos se espalhavam ´pelo mar acompanhado as embarcações em formas colossais que eu desconhecia. O que se escondia debaixo do mar eu não sei.

O que fiz foi correr. Corri como se pudesse me afastar da loucura que aquela visão apocalíptica insinuava. Cheguei ao hospital mais próximo, temendo estar sofrendo de alguma síndrome do pânico ou estresse pós-traumático. Eu insistia na realidade que eu um dia vivera. E ainda pude me surpreender quando encontrei o local totalmente abandonado; quebrado como um fantasma do passado. Percorri os corredores do lugar em busca de alguém, chamando por ajuda.

Cansado e sem que ninguém surgisse, entrei em um dos quartos e esperei. Sentado no chão empoeirado, as lágrimas escorreram de meus olhos.

É desse lugar que escrevo meu terrível relato – com uma caneta que encontrei no balcão lá da frente, na sala onde antes pessoas esperava para serem atendidas –, ainda que eu não saiba se alguém existe no mundo que possa lê-lo. Mais do que isso, eu escrevo para mim mesmo. Para que não enlouqueça. Para que me lembre dos dias bons. Gostaria de sair daqui, mas tenho medo do que possa encontrar lá fora. De que possa ser encontrado.

Nas madrugadas passadas nesse lugar, às vezes posso escutar o som do violino ao longe. Tento gritar por ajuda, ainda que eu sabia que ninguém me responderá. Apenas uma vez recebi algo em resposta. Mas era uma voz tão distante e distorcida que se perdeu rapidamente, um eco fantasmagórico. Estou escutando passos vindo lá de fora nesse momento. Sei que quando abrir a porta não haverá nada. Nada de enfermeiras, médicos ou pacientes. Essa não é a primeira vez.... nem será a última. Acho que tentarei voltar àquela cafeteria que encontrei no caminho três dias atrás. Ou foi há um mês? Já não sei mais...

27 de Junho de 2019 às 10:18 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

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