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Capítulo único

Para resumir, já era pouco mais da meia noite. Minha mãe havia acordado gritando de dor. Meu pai saiu correndo para a parada de ônibus carregando um pequeno enxoval pós parto e minha mãe. Não daria tempo de chegar no hospital. Meu pai ligou para a emergência, mas recusaram pegar minha mãe, faltavam veículos disponíveis. Estavam completamente despreparados. Ainda faltava um mês para a previsão do meu nascimento mas eu resolvi que seria naquela madrugada. Meu pai caminhou com minha mãe até uma área debaixo da luz de um poste. Foi ali, no beco de terra entre duas casas, que eu nasci. Meu pai decidiu o nome na hora: "Marcos! Meu filho!". Cortaram o cordão umbilical com uma navalha que meu pai tinha no bolso. E como filho único, de uma família pobre, eu nasci.

Minha infância não foi fácil. Mal completei um ano de vida e contraí hepatite. Todos lembram que foi horrível mas eu de nada sei daquele tempo além do que já me falaram, afinal, eu só tinha um ano. Já aos quatro anos de idade aconteceu algo que recordo. Eu brincava em um terreno baldio sozinho e acabei caindo em um buraco fundo. Devo ter ficado algumas horas lá, pois eu adormeci e quando acordei o sol já estava se pondo. Eu não tinha medo algum, não tinha noção da enrascada. Depois de muito tempo passou um garoto, POR MUITA SORTE MESMO. Ele tentou me tirar de muitas formas daquele buraco, até que finalmente conseguiu. Encaramos tudo como uma grande brincadeira. Era o meu amigo Eduardo. Ele foi um grande amigo de infância por alguns anos. Infelizmente a amizade não pode perdurar. Quando eu devia ter uns 10 anos ele morreu, vítima de uma bala perdida, justo no final de semana em que eu havia viajado com a minha família para conhecer a praia na capital. Na segunda-feira, quando eu voltei, o que era pra ser um dia divertido e feliz, em que eu iria contar pra ele tudo sobre as coisas incríveis da viagem, acabou sendo o dia em que eu chorei pela primeira vez em um velório.

No ano seguinte fomos despejados de casa e fomos morar de favor na casa de uma tia. Meus pais estavam desempregados e ela não gostava muito de mim, nem do meu pai. Ela achava que minha mãe poderia ter arranjado uma família melhor... Outras coisas mais aconteceram também antes disso. No dia do meu aniversário de oito anos eu aprendi a não pedir presente. Meu pai perguntou o que eu queria de aniversário e eu falei que um passeio de moto. Eu sempre via os caras cantando pneu na rua, estalando a descarga da moto, passando ligeiro com um som estridente. Mas meu pai não tinha moto, me falou pra pedir outra coisa. Eu era criança... se eu fosse um pouco mais velho não teria insistido... deve ter sido uma situação triste para meu pai se ver na situação de não poder dar um passeio de moto para seu filho. Apesar de nossa condição, ele conseguiu uma moto velha na tarde seguinte em que eu fiz oito anos. Me colocou na garoupa e saiu pela cidade. A moto era emprestada, ao final do passeio ele devolveria pra seu amigo. Mas no meio do caminho tinha uma lombada. Meu pai não tinha prática com motos. Voamos longe. Quatro pinos na sua perna direita e um gesso que na época eu achei irado, no meu braço. Depois desse dia nunca mais tive vontade de fazer pedidos de aniversário.

Quando estava no hospital colocando o gesso e minha mãe estava desesperada para saber como estava meu pai, vi do outro lado da sala de espera duas crianças. Estavam aguardando a avó que estava fazendo uma consulta. Era Joana e Paulo. Irmãos gêmeos. Minha mesma idade. Moravam perto da minha casa e eu nunca os havia visto antes. Quando eu saí da sala com o gesso no braço Joana veio correndo em minha direção, se apresentou, falou do irmão, falou que me conhecia e que queria brincar comigo no dia seguinte se meus pais deixassem. Esse dia de brincadeira ficou pra muitas semanas depois, minha mãe estava paranóica com acidentes e não queria me ver na rua nem tão cedo. Chegado o dia em que pude finalmente sair para brincar, ficamos amigos. Eramos o trio da bagunça, segundo a avó deles.

Já na escola, antes dos dez anos, começou a despertar em mim um interesse por uma menina, a Érica. Ela sempre ia com duas tranças longas e sentava bem nas cadeiras da frente. Aos doze anos, tristemente resolvi me declarar. Amores juvenis... não sei sua função além de quebrar a nossa cara. Que no meu caso, foi literalmente. O irmão da garota que fazia a oitava série, ficou sabendo através de uma boataria que eu estava fazendo sua irmã passar vergonha com conversas de namoro. Eu nunca apanhei tanto na vida. Nem do meu pai, nem do Rodrigo que aos vinte e cinco anos me arrebentou a cara, mas deixa isso pra depois. Cheguei com um dos olhos inchados em casa, além de outros ferimentos. Não sei o que doía mais, os ferimentos ou ver a Érica gritando com as outras crianças para ele arrebentar a minha cara. Eu era só um menino, aquilo não foi justo. E eu gostava dela e estava apanhando por ela e ela debochava de mim. Acho que meu coração ainda dói disso um pouco, não pela surra, mas pela humilhação que só hoje eu compreendo. Como eu fui tolo. O engraçado dessa história, pelo menos, é que minha mãe me perguntou o que foi que tinha acontecido comigo quando me viu naquela situação e não sei o que me deu na cabeça que eu respondi que tinha sido atropelado por um ônibus! O pior de tudo é que acreditaram. E meu pai contava isso de vez em quando pros amigos, do filho que sobrevivera a um atropelamento por ônibus.

Minha mãe havia feito alguns curativos, havia cuidado dos meus ferimentos no corpo. Mas foi somente no final da tarde quando Joana e Paulo chegaram de sua escola e me chamaram pra sentar na calçada que eu pude chorar. Contei sobre a garota, sobre ter apanhado na escola, sobre estar com muito medo e vergonha de ir pra aula no outro dia. Que eu havia mentido pra meus pais. De umas coisas eles riram, de outras se assustaram, mas me apoiaram. Me ajudaram por dias a voltar a ter confiança. A sarar minhas feridas internas. É pra isso que servem os melhores amigos. E eles eram os meus.

Por volta dos treze-catorze anos, meu pai resolveu começar um negócio e abriu uma padaria. Foi só nessa época que as coisas finalmente começaram a melhorar. Saímos da casa de minha tia e passamos a ter uma casa própria até boa, meus avós vieram morar conosco para terem uma velhice melhor. Meu pai era dono da única padaria próxima em quatro bairros. O cara da bicicleta que passava vendendo pão e leite cedo da manhã, logo parou de passar. Não valia mais a pena para ele já que a padaria fornecia produtos fresquinhos e quentes pra todo mundo. Meu pai que não perdia uma oportunidade, aproveitou que só teria ele vendendo pão por ali para me colocar na entrega dos produtos de manhã.

Eu lembro que quando a avó de joana e paulo morreu e eles tiveram que viver de favor na casa de uns parentes que moravam no bairro do lado, eles passaram por maus bocados. Não lhes compravam material escolar, as roupas estavam velhas e mal serviam. As vezes iam dormir com fome, pois não lhes ofereciam comida. Como pode existir gente no mundo que receba os outros para fazê-los pior do que já estavam? É revoltante. Essas pessoas existem aos montes no mundo, não é difícil de achar.

Eu passava na casa deles, deixava um pouco de iogurte, uns pães doces que Paulo gostava e queijo para Joana. A situação só mudou quando aos 15 anos eles saíram de casa e foram morar com a gente. Minha família os acolheu, sabia como eles viviam e como estavam, "eram boas crianças" meus pais diziam e trouxeram pra dentro de casa. Eles trabalhavam na padaria ajudando meu pai e eu, dormiam e comiam lá em casa, minha mãe não deixava que eles passassem necessidade. Como toda família a gente brigava as vezes, mas sempre fazíamos as pazes.

No início era ruim, porque eu acordava muito cedo pra trabalhar. Mas a cada mês com a padaria crescendo e com minha mesada ficando consequentemente melhor, eu me motivava. Na escola eu nunca fui muito bom. Em casa isso não era novidade e meu pai não encrencava com isso. Ele não sabia o suficiente para me ensinar e já achava incrível o fato de eu conseguir passar todos os anos, por esforço próprio e sem repetir.

Um dia na escola saiu da rotina, foi bem diferente, um gordo que sentava no fundo e era bastante encrenqueiro ficou fazendo confusão falando que eu era o Marcos Pneu Furado, o Marco sem frota, o Marcos Jumento, o Marcos da padaria que nunca ia conseguir ser nada mais do que isso. Eu caí pra cima dele. Foi porrada pra todo lado. Paulo que estudava na mesma escola que eu, desceu pra briga junto e bateu nos amigos do gordo que tentavam apartar a briga, mas acontece que dessa vez eu saí da briga muito melhor, a garota que gritava para bater estava do meu lado e era Joana. Dessa vez eu não menti pra meus pais e eu mais dei porrada do que recebi. No outro dia o gordo faltou a aula e no dia seguinte também. Quando finalmente voltou me ignorou por completo e nunca mais olhou pra mim. Foi esperto...

O que teve de estranho nesse ano é que primeiro eu gripei, em seguida minha mãe gripou, o meu pai gripou, os gêmeos griparam e isso prejudicou os negócios, não tivemos tanto dinheiro e quando minha avó adoeceu, acabou falecendo. No ano seguinte meu avô gripou, a gripe causou outros problemas respiratórios, não conseguimos pagar todos os remédios e ele faleceu. Foi somente aí que meu pai resolveu pagar um plano de saúde para nós, não que ele já não tivesse vontade de ter o plano quando meus avós estavam vivos, mas na época era uma escolha muito difícil, ou pagava os remédios e nossos gastos ou pagava dois planos de saúde para idosos que são bem caros. Minha mãe também teve que começar a trabalhar fora, resolveu ser manicure e revendedora de maquiagem. Meu pai falou que isso não daria dinheiro, mas até hoje ainda dá e muito.

Algumas pequenas coisas aconteceram até os 18. Eu tive duas namoradas, mas nada de especial. Consegui terminar o ensino médio na idade certa. Joana e Paulo se mudaram pra casa de uma tia deles que levava a vida bem melhor que a de meus pais, ela vivia sozinha numa casa enorme e os aceitou. Se mudaram pro colégio particular, começaram a fazer aulas de piano, inglês, natação e não foi dando mais tempo para a nossa amizade.Apesar disso a gente ainda se via, pouco mesmo, mas se via e era sempre muito bom. Aos 18 com o alistamento militar obrigatório, Paulo e eu fomos juntos. Cortamos o cabelo no mesmo lugar, sentamos próximos. Eu fui entrevistado primeiro e ele depois. Havíamos combinado de dizer que não queríamos ficar no exército, para estudar pro vestibular e tudo o mais. Mas isso era o melhor para Paulo...que agora tinha novas oportunidades, para mim talvez o melhor fosse ficar por lá e foi por isso que pedi pra ficar.

Me formei por lá para ser sargento. Houve chamada para ir ao Haiti e eu aceitei. Voltei outro. As pessoas daqui não sabem o que é sofrer. Vi pessoas doentes pedindo para por favor eu ajudar e eu não podia fazer nada. Acabei matando um homem. Ele merecia. A comunidade comemorou, minha equipe comemorou, mas matar alguém não é algo que a gente se orgulhe. Ele traficava as menores para algumas boates e vendia drogas. Era bom pros usuários poder ter as drogas, pra dor que sentiam, mas se não lhe pagavam ele levava o pouco do nada que eles tinham, muitas famílias foram destruídas com violência. Certa vez, um colega meu foi feito refém por ele que exigia de forma muito louca que pagássemos as dívidas de um grupo que estava no nosso acampamento. Não atirei para matar, foi apenas no ombro. Mas as condições se complicaram, infecção e ele morreu.

Quando eu voltei pro Brasil aos vinte e quatro anos, Joana havia casado com um cara que era dono de uma farmácia. Me contou que estava tentando engravidar mas não conseguia. Naquele dia bebemos, as coisas foram estranhas e intensas, eu sempre a vi como amiga, mas aquela noite ardia e acabamos tendo um caso de apenas uma noite. Nossa amizade não estragou. Mas uma coisa estranha aconteceu: nove meses depois nasceu Felipi Silva Emecarpo, sobrenome do marido dela. Eu nunca soube se na verdade ele era meu filho. Joana nunca tocou no assunto e muito menos eu. Devia ser do marido dela, pelo menos é o que eu tento acreditar.


Paulo por outro lado estava namorando uma mulher problemática. Ninguém nunca pensou que ele se perderia assim por alguém. Logo ele, tão sensato e justo. Talvez tenha perdido as estribeiras quando Joana foi embora morar com o farmacêutico. Ela gostava de beber e fumar, na rua era conhecida por acabar com casamentos e dar golpe do baú. Mas paulo não tinha mulher nem dinheiro, logo não estava preocupado com os boatos.Nessa época ele trabalhava num escritório de administração e ganhava apenas o suficiente para viver bem. Dizem que ela o traíra algumas vezes mas ele sempre duvidava. Dizem que ela havia passado AIDS pra ele, eu nunca perguntei. Nem quando ele emagreceu, nem quando ele raspou a cabeça e eu o levei ao salão, nem quando ela o deixou e foi embora e muito menos quando ele me pediu pra levá-lo ao hospital porquê esqueceu de tomar os remédios do coquetel e o tratamento estava falhando. Tem coisas que só os de fora, sem ter noção de nada, ficam curiosos e saem perguntando. Os amigos de verdade apenas sentem, ajudam, apoiam e cuidam. Foi o que eu fiz.

Aos vinte e cinco anos, me envolvi seriamente com uma mulher. Se arrependimento matasse... Na época eu achei que seria a mulher da minha vida. Entrei para a igreja com ela, lhe dei um teto, passamos alguns poucos anos juntos. Até que um dia, Rodrigo seu ex marido, chega em minha casa quebrando tudo, chamando por ela e caímos na porrada eu e ele. Ele batia com a fúria de um amor enlouquecido, eu batia por pura defesa, eu estava com raiva de Rute ter deixado aquele babaca aparecer. Ela havia contado logo no início do nosso relacionamento que tinha saído de um relacionamento abusivo, ele batia nela e por isso tinha ido embora, que ele havia perguntado a familiares aonde ela morava mas que ela havia pedido pra que ninguém contasse.

Quando nem eu e nem ele aguentávamos mais de nos bater, resolvemos por fim conversar. Ele contou que Rute havia ido embora com todo o dinheiro que ele tinha. Que ela o havia traído com o melhor amigo e por isso havia batido nela. Rute apenas calou, não negou nada. Ele falou que no início ao chegar na minha casa ele só queria matá-la. Mas algo havia acontecido, ele havia se apaixonado por ela novamente, que se ela quisesse ir embora dali estaria perdoada e ele a aceitaria novamente. Ela pediu um tempo pra pensar. Quando ele foi embora e eu ela discutimos eu não sabia mais quem ela era, nem que história era essa de pensar se ficaria comigo ou com ele. Completamente frustrante. Quando eu acordei no dia seguinte, não havia mais nada dela em casa, meu dinheiro havia sumido e nem tive a consideração de uma carta.


Alguns anos no tempo se passam e foi-se primeiro minha mãe, depois meu pai. Fiquei sozinho no mundo, cuidando de uma padaria, minha herança, minha história. Eu devia ter uns trinta e oito anos quando olhando ao redor e não vendo mais sentido em nada resolvi viajar. Pela primeira vez na vida Joana me retaliou. Disse que isso era coisa de jovem e não de um homem adulto com uma vida pra fazer. Paulo falou que eu devia ir sim, viver a vida, enquanto eu ainda a tinha e até falou que se não fosse a sua nova mulher, ele mesmo me acompanharia.

Passei 5 anos incomunicável viajando. Foram muitos países. Tudo sem luxo algum. Trabalhei em alguns lugares, noutros apenas fui bem recebido. Mas se tem uma coisa digna de passagem, é que não houve um novo lugar em que eu passasse, sem que houvesse pessoas com histórias para contar sobre aqueles que já se foram. Sobre alguém que já havia ido há anos, ou a dias. Na Bolívia conheci uma senhora que queria que eu ficasse com ela, estava com medo de ficar sozinha. Seu marido e filho haviam sido assinados a algumas semanas. Ela temia a morte, a solidão. Não fiquei, não pude ficar e nunca soube o desfecho de sua vida.

As pessoas no geral são meio previsíveis sobre o adeus. Algumas ficavam surpresas como eu tinha abandonado uma vida simples para ficar quase que passando necessidade viajando pelo mundo, de favor, de casa em casa. Alguns me aconselhavam para voltar de onde eu tinha saído, trabalhar na padaria. Outros me pediam para ficar. Conheci algumas mulheres com as quais me envolvi, mas nada nunca foi muito marcante. Algumas na despedida choravam e sempre vinha a mesma ladainha: "Você vai morrer sozinho, numa cama..."

Mas,
eu nasci numa estreita faixa de terra,
e o que as pessoas não percebem é que todas elas, e inclusive eu, precisamos só de outra estreita faixa de terra para morrer, é onde iremos ser enterrados.

Eu nasci e eu morrerei numa estreita faixa de terra.

Eu poderia ter contado esta história, sob a perspectiva de outros ângulos, pegando ganchos de amor, amizade verdadeira ou lição de vida, talvez. Mas fiz diferente. Preferi contar todas as vezes em que a morte passou por mim, todas as vezes que o mundo inteiro ecoava gritos, tiros, balas perdidas, corpos aos chão assassinados, brigas, a tristeza e o medo da solidão. Pois é disso que é feito a vida na maior parte do tempo, de Morte e Destruição. Ainda assim entre os parágrafos que separam as catástrofes há muita beleza e vida.

23 de Junho de 2019 às 20:17 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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