— Tem alguém aí? Gente?
— Hm...?
— Oi! Qual o seu—
— Shh!
— Como assim “shh”? Eu não consigo ver nada, cara, queria saber se tinha mais alguém comigo aqui nessa escuridão. Mas e aí, você também foi mandado para a Tropa de Elite?
— Tropa... O quê?
— A Tropa de Elite, cara, o pessoal que vai invadir primeiro, que vai ter a honra de enfiar bala naquele bando de comunista antes de todo mundo! Eles me escolheram anteontem, e eu acho que foi porque eu sou muito bom com o rifle. A gente teve sorte, você sabe...
— Sorte. Haha.
— É, sorte para caralho! Eu que não queria continuar naquela merda de acampamento no meio da Amazônia, cheio de bicho, mosquito, planta para todo lado... Se eu soubesse que a Venezuela era no meio o mato, juro que não sei se ia ter me alistado, mas pelo menos a gente tá aqui agora, né?
— Dentro do esgoto. Uma melhora considerável.
— O calor aqui dentro é melhor. Mais ameno. Você tem que admitir.
— Não sei se isso vale o fedor... Chega me faz tossir. Não me parece sorte.
— Mas eu tava falando da sorte de sermos os primeiros que vão derrubar o Chávez, cara! A gente vai começar a coisa toda! Vamos ser os heróis! Quando a gente entrar, no minuto em que a baialada comer, os venezuelanos vão erguer a mão pro céu por alguém finalmente livrar eles daquele governo merda que tá deixando eles passarem fome, frio...
— Espera aí, você disse Hugo Chávez?
— Você tá ouvindo o que eu estou dizendo?
— Eu ouvi, por isso que perguntei.
— A parte importante não é esse cuzão, é a que a gente vai salvar as pessoas. Vamos sair na TV. Aposto que até a Globo, que é meio petista, vai dar o braço a torcer e mostrar a gente como—
— Mas Hugo Chávez?
— O que tem ele?
— Foi o nome dele que você disse mesmo?
— Foi, ué, é o ditador da Venezuela.
— Era o ditador da Venezuela, você quer dizer.
— Ah, não... Ah, não! Não me diga que você é um daqueles... Você é um... Um...
— Sou o quê?
— Um comunista!
— O quê? Claro que não! O que eu estou querendo dizer é que o Hugo Chávez já morreu há muito tempo. O cara que governa a Venezuela é o Maduro. Você tá indo ser herói numa guerra e não sabe nem contra quem vai lutar?
— O que importa é que é contra os comunistas...
— Mas você tem certeza de que... Quer saber, deixa pra lá.
— Espera. Você não tá indo embora, tá?
— Indo embora para onde? A gente recebeu ordem para ficar esperando a hora de entrar. Não tenho para onde ir embora.
— Ah, sim. É que eu não queria ficar sozinho de novo.
— Está tão escuro que você nem ia saber que ficou sozinho...
— Eu ia quando tentasse falar com você e ninguém me respondesse. Não que... Bom, você pode me ignorar também se quiser em vez de simplesmente sair, mas ainda prefiro isso a você ir embora daqui.
— Não se preocupe. Não vou embora nem sou comunista.
— Isso é bom saber. E o seu nome?
— O que tem?
— Qual é? Você não me disse.
— Você também não me disse o seu.
— Você não me perguntou... Eu me chamo Estêvão.
— E eu sou Cláudio. Prazer. Aqui... Isso... isso aqui é minha mão.
— Tem um aperto forte, Cláudio... Você já servia antes?
— Não. Comecei nesses últimos meses. Você?
— Mesma coisa, mas já sinto como se tivesse feito isso aqui a vida toda! Quis tanto—
— Que isso, cara?!
— Isso o quê?
— É seu rifle? O que eu tô sentindo aqui? Não consigo ver...
— Ah, eu acho que é sim... Desculpa. Acho que me empolguei... Eu estava só dizendo que quis tanto empunhar uma arma, sabe, me sentir como um homem de verdade, e agora finalmente tive essa chance. Estou tendo essa chance. Vamos ter essa chance, Cláudio!
— Indo para a guerra? Isso é ser homem para você?
— Você não acha isso incrível? Participar de uma coisa grandiosa, como faziam nossos ancestrais, tomar de volta um país que está jogado às traças, dominado pelo terror do comunismo, com as pessoas passando fome, frio, aterrorizadas todos os dias e se perguntando quem, quem, pelo amor de Deus, poderá ajudá-las a sair dessa situação?
— Não. Muito pelo contrário. Acho que a gente vai morrer.
— Se a gente morrer, vai ser por uma boa causa, então vale a pena.
— “Se”, Estêvão? “Se” a gente morrer? Por que acha que mandaram a gente ficar nesse esgoto asqueroso? E essa ideia de entrar primeiro, para abrir caminho para todo mundo? É para morrer primeiro. Nossos cadáveres vão pavimentar a rua em que eles vão passar para entrar na Venezuela, e eles vão pisar na gente para chegar no exército inimigo.
— Nossa...
— É.
— Nossa. Eu nem sei o que dizer.
— Não tem o que dizer. Aproveite o resto da vida que te resta nesse esgoto imundo. É isso.
— Nossa, cara, como você tá revoltado...
— Como é?
— Meu Deus! Haha! Desculpa, não vou rir de você.
— Rir de mim?
— Eu sei que a iminência de uma guerra dá medo e admito que eu mesmo tô me borrando por dentro (bem lá no fundo, mas sim), mas não acho que não é para tanto... Claro que alguém vai morrer, porque... bom, é uma guerra, mas não vai ser assim. A gente tem a vantagem, o elemento surpresa. A gente tá mais preparado, tem mais homens, tem um país muito maior de soldados à disposição. Eles não têm o que nem o que comer lá, quanto mais um pessoal disposto a lutar pelo país! Mal tem país sobrando, na verdade...
— Ah, puta merda...
— De qualquer forma, se você tá com medo e quer falar sobre o assunto, pode falar. Quero entrar na luta com alguém que tá com os dois pés firmes no chão, não tremendo nas bases.
— Tremendo nas bases? Você é inacreditável... Isso é só falta de noção mesmo ou você gosta da ideia de que vai morrer, é meio suicida?
— Não sou suicida, cara, nem de longe. Eu gosto é demais de viver. Só acho que você tá sendo pessimista demais, especialmente considerando que a gente nem entrou ainda. Por acaso acha que os venezuelanos vão chegar na gente com bazuca ou alguma coisa assim? Meu Deus... Você é ruim de tiro ou algo do tipo?
— Não. Muito pelo contrário.
— Então tem medo de quê?
— Argh, não é medo, eu só... Quer saber? Deixa para lá.
— Fala comigo, Cláudio!
— Não quero falar com você.
— A gente não vai ter nada mais para fazer até darem o sinal.
— Que se dane. Vou ficar em silêncio até lá.
— Mas vai ser um tédio. Não é pior que a sua última lembrança da vida seja você morrendo de tédio?
— Pensei que você não acreditasse que a gente fosse morrer.
— Não acredito, mas, já que você acredita, achei que isso pudesse te convencer. Fala comigo, cara.
— Eu não tenho o que falar.
— A gente arruma um assunto. Pode ser qualquer coisa. Me diz aí, de onde você vem? Cláudio? De onde?
— ...
— Se não responder, vai me obrigar a adivinhar...
— Qual é o seu problema?
— Gosto de fazer amizade. Um problemão...
— Não é nem de longe isso aí...
— Que barulho foi esse?!
— Encostei na parede. Enfim. Eu sou... Eu sou de Petrolina.
— E isso é onde?
— Em Pernambuco.
— Ah, que delícia! Praia, né?
— Lá não tem praia. Mas é perto do São Francisco. O que é bom, porque ajuda com aquele calor dos infernos...
— Ah, que legal...
— E você?
— Eu o quê?
— De onde você é, Estêvão?
— Ah, eu sou de Brasília. O quadradinho do país, melhor lugar...
— É? Tem o que lá? Além da galera que mandou a gente para essa guerra.
— Muito calor (aliás, capaz de eu entender o seu sofrimento), muitos prédios...
— Resumindo, nada.
— Claro que não é nada! Tem muita coisa boa lá. Amo minha cidade. Certamente é melhor que esse fim de mundo cheio de mato...
— É, eu também não gostei tanto daqui, apesar de que a pior parte para mim foi o acampamento.
— O general era meio otário, né? Não que eu não goste de... de disciplina e tudo mais, o trabalho duro, acordar cedo e tudo mais, só que ele ficava pegando no nosso pé por qualquer coisinha que não saía do agrado dele...
— Ouvi dizer que ele queria ter sido mandado para o Rio, mas teve algum problema com o superior dele e veio para cá. Provavelmente está descontando a frustração em cima da gente.
— Não duvido que seja isso, porque olha... Também vi que ele não é casado, então outro tipo de frustração deve ter aí nesse meio.
— Ah, com o uniforme do exército, deve cair mulher em cima dele. Capaz de ser melhor não ser casado...
— Com aquela cara de cu, acho que não cai ninguém em cima nem por acidente. E, se cair, no momento em que ele abrir a boca, a mulher deve dar uma desculpa e cair fora...
— Porra, cara, sacanagem...
— Só tô sendo sincero, Cláudio... Aquilo ali não deve ver mulher há anos. E não foi no acampamento que viu, porque lá tinha o quê? Duas dúzias? E não era como se a gente tivesse muito tempo para fazer outra coisa que não fosse treinar e tentar dormir quando dava...
— Tempo a gente arruma, né, até porque eu vi umas coisas... Mas acho que nenhuma das meninas deu moral para ele mesmo não.
— Você viu o quê?
— Você sabe...
— O quê? Gente transando?
— É. Não ao vivo, mas a caminho, sabe. É normal, eu acho... A gente ficou um bom tempo naquele acampamento e não tinha muita civilização por perto, só floresta, bicho... Mato, como você falou.
— Então as meninas ficaram ocupadas mesmo...
— Não só as meninas, haha.
— Como assim?
— Ué, você acha que ali dava só casal de homem com mulher?
— Como assim, cara?!
— Na hora do desespero, da vontade ou, sei lá, se a pessoa tiver a fim mesmo, acho que o exército é o melhor lugar para você achar um parceiro. O difícil acho que devia ser manter a coisa debaixo do nariz do general, mas tinha uns que nem disfarçavam, sinceramente...
— Eu nunca vi nada disso!
— Não sei como não viu.
— Que nojo!
— Nojo?
— É, ué! Homem com homem, rola com rola... Pelo amor de Deus! Isso não é normal, não!
— Se a gente tiver prestes a morrer, acho que o pessoal tem mais é que aproveitar. Melhor morrer feliz que todo carrancudo e com cara de cu, que nem o general.
— Pois eu ia preferir o cu!
— Tudo bem, Estê—
— A cara de cu! Foi isso que eu quis dizer.
— Eu não tenho preconceito. Sem problemas.
— Não tô falando de nada gay, cara. Eu tô dizendo que nunca faria uma coisa dessas, entendeu? Preferia morrer com as bolas inchadas, morrendo de dor. É isso.
— Por mim...
— E você?
— E eu o quê?
— Você... você comeu al... Você deu... Como estão as suas bolas?
— O quê?
— Você me entendeu!
— Eu juro que não entendi nada.
— Quero saber se você vai morrer com as bolas normais ou doendo, que nem eu.
— Que interesse é esse pelas minhas bolas, Estêvão?
— Interesse nenhum! Eu tô perguntando é outra coisa!
— Então pergunta direito.
— Você tá querendo me constranger!
— Eu não quero coisa nenhuma. Você que começou com essa história de bola doendo.
— Eu tava falando do general, aí você veio me falar de gay. Aliás, por que isso de repente? E logo antes de a gente passar pela fronteira e, sei lá, morrer, como você diz com tanta frequência?
— Olha... Eu nem sei o que responder.
— Não sabe porque era essa sua intenção o tempo todo, não era, Cláudio? Foi por isso que você veio por esse caminho da rede de esgoto? Veio atrás de mim de propósito?!
— Meu Deus...
— Para de rir de mim, cara!
— Não tô rindo de você...
— Tá, sim!
— Acho só... Acho só que eu preferia quando você estava falando aquela baboseira de matar comunista e ser o herói do povo venezuelano. Fazia mais sentido que isso aí. Eu nem sei como é a sua cara, Estêvão. Não consigo ver nem a minha mão nessa escuridão aqui do esgoto... Como eu ia maquinar meu plano gay de vir especificamente atrás de você? E para que tudo isso? Pra dar umazinha antes de morrer? Parece um esforço muito grande para pouca coisa.
— Então eu sou pouca coisa?
— Ah, cara, pelo amor de Deus...
— Decide aí se é sim ou não...
— Eu não tô entendendo mais nada dessa conversa.
— Você... Que porra foi isso?!
— Ah, meu rifle. Desculpa aí.
— Seu ri... Seu rifle?! Vai vir com essa agora?
— Como é?
— Você tem problema, Cláudio! Sai de perto de mim!
— Eu tenho problema?! Tem cinco minutos que eu não faço ideia do que você tá falando!
— Sai de perto, já falei!
— E eu já saí!
— Não tenho como saber!
— Então pronto!
— Ótimo.
— Ótimo mesmo.
— ...
— ... Cláudio?
— ...
— Cláudio?
— Que é agora? Já saí de perto?
— Eu sei. Não é isso.
— Que é então?
— Você acha mesmo que a gente vai morrer lá na Venezuela?
— Acho.
— Então essa é a nossa última noite na Terra?
— Provavelmente.
— E você vai querer morrer frustrado?
— Como assim frustrado?
— Sabe como é. Com as bolas doendo.
— Lá vem você de novo com essa história das bolas...
— O que eu quero dizer é...
— É...?
— ...
— Estêvão?
— Se você estiver disposto...
— A quê?
— Ninguém vai... Ninguém iria... Bom, não tem ninguém aqui. Quer dizer, além de você e eu.
— Do que você tá falando, porra?
— Que eu não quero morrer que nem aquele escroto do general! Eu tô nervoso, Cláudio, você me deixou nervoso, e agora—
— Eu te deixei nervoso?!
— Não tô culpando você... Mas agora eu tô nervoso e ajudaria muito se eu pudesse, sabe... Me aliviar.
— ...
— Cláudio?
— Então você é gay? Depois de todo aquele discurso, as reclamações, as—
— Porra nenhuma que eu sou! E para de rir de mim!
— Dessa vez eu tô rindo mesmo!
— Quer saber? Esquece!
— Tá bom.
— Não! Não, espera...
— Eu nem saí do lugar.
— Então, isso quer dizer...
— O quê?
— Que você aceita?
— Aceito o quê, exatamente? Porque eu não consigo nem ver a sua cara. Acho que a gente não tá em condições de fazer nada muito complexo nem se eu quisesse.
— Só um... um carinho já ajudava, eu acho.
— Um... carinho?
— É. Eu posso fazer em você também. É só guiar minha mão.
— Homem com homem, rola com rola?
— Porra, não precisa falar assim! Rifle com rifle, pode ser?
— Meu Deus...
— Para de rir, Cláudio!
— Eu tô quase feliz por morrer assim que a gente cruzar a fronteira, juro para você. Mas vamos lá, rifle e rifle, pode ser.
— Onde... onde é que você está?
— Eu andei um pouquinho aqui para trás. Vou bater meu rifle (o de verdade) aqui no cano, para você saber para onde eu tô indo. Me avisa quando tiver perto de você.
— Mais um pouco para frente. Mais um pouco... Aí.
— Sua mão?
— Isso, minha mão. Agora me guia pras suas calças. As minhas tão aqui.
— Você já abriu o fecho...?
— Tava um pouco difícil de segurar. Eu já tô duro. Hmm... Aqui, achei você. Nossa, é tão...
— Ah, não acredito.
— Que barulho é esse?!
— É o nosso sinal. Argh. Hora de morrer, Estêvão.
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