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Cartesiano. Era assim que Dyne se julgava. Até aquela memória vir e mudar tudo.


Conto Todo o público.

#ficção-científica #cyberpunk #one-shot #oneshot #conto #original
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Capítulo único

Dyne ativou a tela do seu comunicador portátil pela terceira vez naquela noite. Inquieto, correu o dedo pelas notícias recentes, escaneando com os olhos cada uma que subia pela tela holográfica. “Um segundo atrás”, “dois segundos atrás”, “três segundos atrás”: as manchetes pululavam, se sobrepondo umas às outras, aparecendo e desaparecendo com rapidez. Até que bateu o olho no que mais temia encontrar. Selecionou a notícia, prendendo a respiração. O roubo já tinha sido divulgado.


Soltou o ar com certa resignação, desligando o visor e dobrando o dispositivo. O guardou no bolso da jaqueta e levantou a cabeça para encarar a noite. Ali, do topo de um dos prédios mais altos da Cidade Industrial de Linova, a paisagem parecia apenas um emaranhado de luzes, cores e zumbidos dissonantes. Mesmo as pontes suspensas pareciam reduzidas a fiapos vistas daquela distância.


Sem dúvida, sua perspectiva favorita da sua cidade natal.


Dyne coçou o nariz, sentindo a chuva que começava a cair sobre ele. Naquela altura, ele sabia que seria o primeiro a ser atingido por aqueles pingos grossos antes que eles lavassem o resto da cidade. Sorriu com a ideia, mas logo ajeitou o gorro da jaqueta, protegendo a cabeça. A chuva aquela noite estava mais ácida do que o normal, e ele podia sentir o cheiro forte de enxofre subir até suas narinas.


Hesitou por mais um minuto inteiro, mas acabou ficando de pé, na beirada do prédio. Balançou o corpo perigosamente acompanhando o vento forte que soprava e deixou a mente se libertar por um instante do medo e da ansiedade crescente que vinha sentindo. Chegou a fechar os olhos por um segundo, sentindo a respiração acalmar, os abrindo logo em seguida.


Um pouco mais confiante, puxou do bolso interno da jaqueta sua pequena conquista. O minúsculo diamante magenta cintilou timidamente, refletindo em cor-de-rosa as gotas que caiam em sua volta. Ele o protegeu com a outra mão, impedindo que aquela acidez danificasse a pedra.


A um ano atrás, nunca pensou que estivesse ali. Seria inimaginável sequer conceber tal hipótese. Dyne, um ladrão? E por um motivo tão sentimental? Realmente, algo impossível. No entanto, lá estava ele. Rosto estampado nas notícias, objeto do seu crime em mãos.


Tinha começado com aquela memória. Aquela estúpida memória infantil que apareçera indevidamente na cabeça de Dyne um ano atrás. Foi um erro, uma falha do sistema. Desde que tinha feito os implantes neurais no cérebro, aquela tinha sido a primeira vez que uma falha ocorria. E isso o deixou profundamente incomodado.


Dyne tinha investido uma fortuna nos implantes. Trocou alguns membros e órgãos por modelos mecatrônicos com a promessa de melhorar seu desempenho, algo fundamental para um Especialista em Segurança Digital, que passava madrugadas em claro. Menor necessidade de sono, mais destreza e atenção, visão melhorada, capacidade intelectual otimizada. Tudo isso se concretizara, o que fazia daquele pequeno erro na sua memória algo ainda mais distoante.


Tentou ignorar o problema, mas a tarefa foi impossível. Pois a memória lhe voltava sem aviso prévio, a qualquer hora do dia ou da noite. O fazia perder preciosos segundos de atenção. E sempre a mesma memória. Uma memória idiota de quando tinha apenas cinco anos e morava com a mãe e os irmãos em um dos guetos de Linova. Ele fazia alguma brincadeira infantil qualquer e a mãe ria, feliz. Como alguém podia ser feliz em um lugar imundo como aquele?


Até que um dia a lembrança surgiu durante uma apresentação para um cliente importante. O fez perder o foco por alguns segundos, enquanto tentava afastar da cabeça aquela cena inútil. O instante de desatenção quase lhe custou o emprego, e ele achou que aquilo já tinha passado dos limites. Retornou ao laboratório onde fizera os implantes e exigiu o conserto. Não fazia sentido viver assim, se deixando atrapalhar por algo tão banal.


Uma falha, de fato. Um pequeno defeito nos circuitos internos. Nada que não pudesse ser corrigido. O problema, os cirurgiões disseram, estava nas micropartículas de diamante usadas para o controle da memória. Desde que as pedras naturais haviam sido extintas, a indústria passara a utilizar apenas pedras sintéticas, perfeitamente polidas. Tão perfeitas que seu problema era justamente esse: a perfeição. As irregularidades imprevisíveis da natureza eram algo que o homem nunca aprendera a copiar.


A memória nunca mais voltou. Passaram-se dias, semanas sem nem sinal daquela recordação. Sem aquele riso fácil da mãe, sem aquele momento de felicidade efêmera. Não, aquilo não o incomodava mais.


Ao invés disso, outro sentimento o importunava. Era um vazio estranho, que não sabia explicar. Uma sensação que não lembrava ter sentido antes. O vazio foi crescendo, tomando conta de Dyne de uma maneira insuportável. Passaram-se meses até que ele se desse conta. E foi assim que ele percebeu que a ausência daquela recordação era mais incômoda do que a recordação em si.


Passou a tentar acessar a memória manualmente, a procurando no cérebro. O problema era que não conseguia mais. Descobriu, de um jeito doloroso, que a maneira encontrada pelo laboratório para resolver o problema de Dyne tinha sido simplesmente tornar aquele fragmento da mente inacessível.


Dyne levantou os olhos de súbito, voltando ao presente. Uma batida forte a alguns metros nas suas costas o fez prender a respiração. Eles o encontraram.


Fechou a mão sobre o diminuto diamante magenta, agora já pouco se importando com a chuva torrencial.


As batidas nas suas costas soaram novamente. A porta que dava ao terraço onde agora Dyne se encontrava recebia as pancadas e as suportava bem, sem ceder. Mas ele sabia que isso era apenas uma questão de tempo.


O diamante brilhou quando Dyne abriu novamente a palma da mão. Era minúsculo, tão delicado, e, ao mesmo tempo, tão poderoso. Pois aquele, ao contrário dos perfeitos fragmentos defeituosos, era natural.


Um diamante natural, perdido desde o seculo 22. Uma joia rara, de coloração rosada, encontrada por acaso por pesquisadores e posta aos cuidados da ciência. O único diamante natural do mundo. Engenhosamente roubado por Dyne apenas meia hora atrás.


O plano tinha se formado em sua cabeça há mais ou menos dois meses. Na época, já havia tentando retornar ao laboratório, pedir o acesso à memória de volta. Mas a resposta foi desanimadora. "Não há nada que possamos fazer", eles disseram, "Não com o que dispomos hoje em dia". A memória estava bloqueada para sempre.


Dyne estava arrassado. Arrependido. Até ele ouvir da última novidade científica. A descoberta do diamante. As possibilidades para a ciência. Os céticos repudiando o fato de que uma imperfeição da natureza pudesse trazer algum avanço. E Dyne tendo certeza de que aquilo era a solução que procurava.


Pensou na ideia por alguns dias, devorando todos os assuntos sobre o Magenta — nome dado à pedra. Quanto mais lia, mais plausível sua teoria ficava. E quando deu por si, estava obcecado.


As batidas na porta se intensificaram. Ela cederia a qualquer momento.


Dyne sabia que não tinha saída. Que tinha sido condenado no instante em que pusera as mãos no diamante. Mas isso não tinha importância. O importante era o prazer que aquela recordação traria uma última vez.


Nos últimos dias, tudo que Dyne pensava era em recuperar aquela única memória. E ele achou — não, e ele sabia — que um diamante natural seria capaz de reverter o processo. Seria capaz de desbloquear o fragmento inacessível.


Ele já tinha inclusive aprendido o procedimento. Os fios, plugues e chips alocados na cabeça que deveria manipular. E aquele era finalmente o momento de colocar em prática aquele aprendizado.


Com os dedos molhados pela chuva, tateou a nuca até encontrar o compartimento correspondente. Abriu-o, puxando a pequena placa para fora. Expulsou os diamantes sintéticos que ocupavam o objeto e acomodou seu pequeno tesouro solitariamente na placa. Trêmulo de hesitação, a recolocou no lugar.

Fechou os olhos e tentou acessar as memórias. Dois segundos de pura agonia se passaram. E então cinco, dez. Nada havia mudado.


A porta se abriu com um estrondo, e os androides fardados da Polícia Especial de Linova surgiram no terraço, as armas em punho.


Dyne tremeu, perdido pelo fracasso. Olhou para os policiais que vinham em sua direção. Sem saída, deu um passo adiante, perdendo o chão que o apoiava. Deixou o corpo cair na noite escura.


Foi então que ele ouviu um clique. E a lembrança esquecida finalmente reapareceu.


Demoraria alguns segundos até o corpo de Dyne percorrer os 172 andares em queda livre — tempo mais que suficiente para ele reviver aquela memória ridícula pela última vez. E de olhos fechados e sorriso no rosto, foi isso que ele fez.


Ninguém nunca compreendera o que o levou a fazer isso. Nem mesmo Dyne saberia explicar. Mas foram naqueles efêmeros segundos em que despencava em direção ao solo que ele percebeu que tal compreensão era irrelevante.


Seu coração já tinha entendido tudo.

31 de Dezembro de 2018 às 01:08 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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