prinmahnoor Myra R andrade

Margareth nunca esteve em paz consigo mesma. Os dezenove anos em que viveu no pobre vilarejo do Reino Gálago, em Irbena, resumiram-se a uma única palavra: sobrevivência. A guerra civil assolava-se em uma incansável violência e a jovem não mais esforçava-se para enxergar o mundo de forma diferente da qual vivia. Porém, quando, num estranho dia, sua vila é atacada por homens misteriosos, Margareth envolve-se em um grande mal-entendido e, a mares de distância de sua terra, acaba por tornar-se uma residente no castelo de Kaena, o reino vizinho ao seu. Apesar de viver em um aparente paraíso, governado por rainha Anna e sua enigmática filha, princesa Sienna, tudo o que ela deseja é voltar ao seu país e reencontrar a única pessoa restante de sua família. Mas contratempos ocorrem e Margareth envolve-se em segredos profundos demais para serem esquecidos.


LGBT+ Impróprio para crianças menores de 13 anos.

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Prólogo

Ao calar da noite, os ventos ao norte suspiravam pelos recantos silhuetados em montanhas. Uma nada habitual madrugada perdurava-se no Reino Gálago.

O rio da cidade, acostumado a receber centenas de visitantes durantes as noites de verão, contentava-se apenas com seu próprio recinto. O fluxo seguia, refletindo as nuvens, que corriam pelo céu e acenavam para o gramado, que dividia o espaço do chão com os insetos e a garota. E, claro, havia a garota.

Jovem, pequena e coberta por uma túnica de aura angelical, Margareth cintilava os olhos para a lua. Tinha como companhia única o cantar dos pássaros e o gargalhar das águas do rio – um silêncio irônico.

Mas era o único que tinha, há muito tempo, afinal. A guerra civil que assolava o país começara pouco depois do ano de seu nascimento.

Não sabia muito sobre ela, àquela altura, pois era apenas uma criança, mas sabia que era violenta. Mesmo com as tentativas de censura do irmão mais velho, viver num vilarejo pobre, estando sempre em alerta, esperando por ataques antipacifistas ou levadas do governo ou, até mesmo, sequestradores rebeldes, tornava tudo suficientemente claro: cada dia que passava era um número a menos na contagem do dia em que algum desses horrores aconteceria com ela.

Tal ideia era tão frustrante e curiosa e assustadora que, sempre que parava para pensar sobre, punha-se a chorar.


Ela secou o mar que se formava em seus olhos e respirou fundo. Deveria voltar. Logo, sentiriam sua falta na cabana. Não tinha sido capaz de acordar Enrico de seu sono pesado, então decidiu ir para o rio por conta própria.

Levantou-se do chão e aproveitou para encher de água o balde vazio que trouxera consigo, naquela noite. O vento levava seus cabelos para trás, como longas folhas de árvores no topo das montanhas. Ela adorava aquela sensação.

Adorava tanto que se perdeu no tempo e ficou ali por dez minutos, com as mãos estendidas para o rio, o balde já cheio d'água e os braços moles feito folhinhas de papel. Que desastrada.


— Ei! — uma voz estridente vinda do sul ecoou pelos campos, de repente.

Margareth enrijeceu no mesmo momento. Sim. Havia escutado alguém chamá-la.

De coração acelerado, virou-se na direção da voz e arregalou os olhos contra a escuridão. Não enxergava nada. Estava cercada pelo verde do gramado alto e, mesmo que sem esse obstáculo, a obscuridade da madrugada não falhava em atrapalhá-la.

Continuou a encarar o breu dos campos por um longo tempo. Tudo permanecia cada vez mais denso e vago e quieto. E cada vez mais, isso a inquietava. Talvez, fosse tudo zombarias de sua própria mente. Talvez, fosse o silêncio, tentando torná-la maluca. Talvez estivesse maluca. Pensou que, talvez, o mundo dos malucos fosse menos pior.


Mas respirou fundo, pois, talvez, não fosse nada disso.

Voltou a levantar o balde, agora, com a urgente missão de voltar para casa. Depois do susto, o objeto parecia pesar o dobro, como se houvessem pedras no lugar da água.

— Ei! Você! — a voz chamou, novamente.

Agora era real. Tinha de ser.

Margareth errou o passo e caiu de cara no chão. O balde, caído junto à jovem, esvaziou-se rapidamente pela gramínea de onde estava. Ela teria de enchê-lo, de novo. Isso, é claro, se saísse viva dali.


Levantou-se rapidamente e olhou para todos os lados, de olhos arregalados e a respiração pesada.

Não costumava assustar-se com os visitantes do rio, isso, afinal, já tornara-se rotina em seu dia a dia. Mas, também, não estava acostumada a ser chamada por vozes estranhas e assombradas, num local tão inconveniente quanto o que estava. Tudo podia acontecer, no meio do nada. E, para uma criança, ela era muito esperta em saber disso.

— Por favor, me ajude! — esgoelava-se a mulher invisível, com todo o ar que restava em seus pulmões. Sua voz tornava-se cada vez mais trêmula, sendo tomada por um choro desalentado. — Por favor!


Escondida atrás do gramado, Margareth arriscou mais uma espiada, já ouvindo os passos da desconhecida aumentando consecutivamente. Logo, ela pôde ver, a alguns metros de distância de si, uma figura que não estava ali antes. A mulher de vestimentas rasgadas e de punhos cerrados rastejava-se até a menina.

A pequena voltou lentamente à posição normal ao notar as manchas de sangue no vestido da desconhecida. Ela estava ferida.

Assim que os olhares de ambas encontraram-se em meio à escuridão, a mulher parou sua caminhada tortuosa e respirou, aliviada. Marga não imaginou que uma desconhecida pudesse ficar feliz em vê-la. Mas a mulher parecia extremamente agradecida por descobrir que havia alguma outra alma naquele limbo.

O coração da pequena desacelerou ao deparar-se com a alegria da desconhecida. Elas sorriram uma para a outra. Ou, talvez, Marga tivesse sorrido para ela apenas por ver que ela sorria para si. Mas o que importava, afinal, é que pareciam felizes, naquele estranho momento.


O sorriso da mulher, entretanto, acabou-se em um só segundo. Transformou-se numa expressão nula.

Margareth franziu o cenho e focou mais ainda os olhos na desconhecida. Ela cambaleou para frente, para trás e, subitamente, seu corpo foi de encontro à terra.

O corpo da criança, por sua vez, paralisou-se. Ela piscou algumas vezes. Esperou um ou dois segundos, esperou que a desconhecida levantasse do chão e voltasse a sorrir para ela, para que continuassem naquele bom momento. Mas isso não ocorreu. A mulher continuou afundada na terra.

E, quando menos percebeu que corria, Marga também estava ali, agachada, ao lado dela.


Tremendo e balbuciando frases soltas, a mulher repetia, em meio às tentativas de respiração:

— São eles... Eles chegaram na vila... Eles chegaram...

A criança testemunhava aquilo sem a menor ideia do que fazer. Mas, como a garota esperta que era, ela compreendia, muito bem, o que significava. Sabia quem eles eram.

Pensou em buscar ajuda. Em correr até a cidade e chamar Enrico, para que pudesse ajudá-la. Mas, como se seus pensamentos houvessem sido lidos no meio-tempo, a mulher segurou-a pelo braço, antes que a mesma pudesse levantar-se dali.

— Não vá embora — grunhiu. — Não vá embora. Fique aqui.

Marga fez que não com a cabeça. Não podia deixá-la ali. Observar sua agonizante situação e não fazer nada. Ela tinha que ajudá-la. Mas, quanto ao que fazer, a mulher sabia bem mais do que a pobre criança.

— Não pode ir para lá — explicou, com os olhos marejados. — Se for, eles a machucarão. Por favor, fique. Fique aqui.


A menina fitou o rosto da mulher. Mesmo que bem à sua frente, ela era capaz de dizer que estava longe dali. Compreendia o que aquilo queria dizer. Ela morreria. Ela estava disposta a morrer. Ou, talvez, estivesse apenas desesperada para deixar de viver.

Na maneira mais pura de uma criança, Margareth sentou-se ao lado da moça e focou seus olhinhos preocupados nas bochechas machucadas à sua frente. A lua iluminava o suor do rosto da desconhecida e a visão que tinha não era nem um pouco agradável.

— Eu a conheço — a mulher disse, de repente, em meio ao silêncio de sua própria agonia. — Costumava vê-la passar pelo vilarejo. É a irmãzinha de Enrico, não é?

A menina concordou com a cabeça.

— Ah, sim. Não precisa conversar comigo. — Ela deu uma pausa para acalmar sua respiração. — Apenas... fique aqui, até tudo passar. Está bem?

Margareth fez que sim, novamente.

Observou, pelo corpo estirado no chão, o sangue espalhar-se de forma tão rápida quanto a lava de um vulcão em erupção. O pescoço e as mãos estavam cobertos de arranhões e os braços e pernas agoniavam com queimaduras que rasgavam a pele em carne viva. Não era capaz de imaginar as barbaridades as quais aquela mulher fora submetida até que chegasse ali. Não era capaz de imaginar nada do que realmente acontecera com ela.


A milhares de passos dali, a luz alaranjada do fogo assombrava o vilarejo da dupla. O amontoado de fumaça escura espalhava-se pelo céu, formando novas nuvens cinzentas de luto.

Com os olhos vidrados nas estrelas, a desconhecida ignorava todo aquele estado fúnebre das coisas. Em vez disso, ela sorria.

— O céu está lindo — murmurou, em meio ao silêncio dos grilos. Ela parecia notar a expressão desanimada no rosto da criança. — Eu sei o que pensa, garotinha... Pensa que sou louca em acreditar que esse amontoado de solidão possa ser apreciado. Eu também achava isso, acredita? Olhar todas as noites para a mesma coisa, para esse mesmo céu, que apenas guarda-lhe promessas e nunca resoluções... Depois de um tempo, torna-se cansativo. Mas, agora, — Ela engoliu em seco e voltou a respirar fundo. — Agora, creio que seja a última vez em que verei as estrelas brilharem. E elas são tão lindas... São lindas demais.

Margareth reprimiu os olhos com força, sendo atingida por uma chuva de lágrimas involuntárias. Segurou os soluços antes que fizesse uma cena e esfregou as bochechas até as mesmas secarem.

Ela balançou a cabeça em negação – sabia-se lá, do que – e voltou a fitar a mulher. Mas, dessa vez, ela não devolvia o olhar. Sequer piscava. Seus punhos não cerravam, tampouco o corpo tremia. Não lutava para encontrar fôlego, pois ar nenhum trespassava os pulmões.

Silenciosa, como folhas levadas ao ventos, ela se fora.

A garota arregalou os olhos para a figura sem vida, sem acreditar nos últimos vinte minutos que viveu. Então era assim que o luto se manifestava.


Um dos punhos da mulher morta, observava agora, segurava algo. Ela estendeu seus dedos, a fim de encontrar algo que pudesse levá-la a uma resposta quanto à vida da desconhecida, antes daquilo. Mas tudo o que encontrou foi apenas uma pétala. Uma pequena pétala cor-de-rosa.

Segurou o objeto na ponta dos dedos e levantou-o na altura dos olhos. Franziu o cenho. Não havia nada de revelador numa pétala qualquer.

Ainda assim, por algum motivo, não hesitou em guardá-la consigo. Talvez fosse a inocência de criança, mas ela não seria capaz de abandoná-la de tal forma.


Com o objeto em mãos, deu-se a liberdade para abraçar a recente amiga. Para despedir-se e porque, agora sozinha, necessitava de amparo. Qualquer que fosse o real motivo, não importava-se mais. Apenas continuou ali, por um longo tempo.

18 de Janeiro de 2021 às 02:55 0 Denunciar Insira Seguir história
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