CI: +16
Notas: Esta história faz parte do Desafio Norte e Sul, organizado pela Embaixada brasileira do Inkspired. Nele, nós podíamos escolher um gênero (Fantasia ou Sci-fi) e, a partir dele, teríamos um subgênero sorteado. O meu era Fantasia Sombria.
Eu estou usando personagens originais. Quem já leu outros textos vai perceber que a Mariana e o Matias apareceram de novo, mesmo que como secundários dessa vez. Espero que gostem da história, este é meu primeiro conto que me deixa feliz por ter criado uma história completa com início, meio e fim, em vez de só narrar um pedaço que pode lhes deixar confusos. Espero que gostem da Jasmim, eu acho que me apaixonei um pouco por ela, haha. Uma boa leitura <3
A capa foi feita pela Mandy. Ela que desenhou, gente! ENCHAM ELA DE AMOR NOS COMETÁRIOS TAMBÉM! Eu tô apaixonada pela minha capa, sério! <3
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Afogar-se
Capítulo Único
O mar estava tranquilo naquele dia. O cheiro lhe lembrava do pai e o ar fresco lhe trazia tranquilidade. Subindo tão devagar que o movimento quase não era percebido pelo olho, o sol nascia, deixando a paisagem mais clara a cada segundo que passava.
Jasmim remexeu de novo na passagem que tinha entre os dedos, mordendo os lábios de animação. A partir desse momento, sua vida inteira mudaria para sempre. Respirou fundo, desviando o olhar do horizonte ao mesmo tempo em que a mãe e Lílian a encaravam com os olhos cheios d’água.
— Você se cuide — pediu sua mãe. — O mar é lindo, mas perigoso.
— Eu sei, mãe.
— E lembra que eu gosto de roxo, verde e lilás. Não me traz presente rosa!
A voz firme da irmã fazia um contraste engraçado com as lágrimas que ela derramava. Jasmim se aproximou para um abraço em grupo, sentindo-se aquecida com o amor delas.
— São só dois meses, não uma vida inteira.
Nunca passara mais de uma semana longe de casa. Vivia em Esmeralda, uma ilha pequena perto de Florianópolis. De vez em quando, visitava o continente para fazer compras ou mesmo passear, nada que levasse muito tempo. Podiam reclamar da internet lenta e da falta de boates, porém as três eram garotas do mar, da ilha, e Florianópolis, por mais linda que fosse, jamais seria sua casa.
Pensou nos meses que se seguiriam, nos anos de faculdade que tinha pela frente, e sentiu um arrepio. O abraço apertou de saudade antecipada. Passaria oito semanas viajando, voltaria para casa por menos de um mês e suas aulas começariam. Parando para pensar, não teria mais muito tempo com a família; aproveitaria ao máximo na volta. Apesar disso, nem mesmo a saudade afastava a alegria pelo que estava por vir. Seria incrível.
Assim que completara dezoito anos, sua avó aparecera com dois mil reais de presente. Soubera o que queria fazer com o dinheiro assim que ele caíra na sua mão, e um mês depois comprara uma passagem para um cruzeiro. Queria ficar perto do mar, perto do seu pai.
— Okay, vocês vão me fazer chorar, chega! — Jasmim pediu.
As três se afastaram fingindo que não estavam chorando. Jasmin apertou a mão da mãe uma última vez antes de sair em direção ao navio pequeno que a esperava. Não olhou para trás.
Dois mil reais pareciam muito, mas acabaram rápido. Um dia, ainda iria num daqueles cruzeiros luxuosos que faziam paradas nas melhores ilhas da região; por enquanto, contentava-se com o que conseguira. Não era perfeito, mas ao menos teria três refeições ao dia e a promessa de várias visitas a lugares interessantes. Estava ansiosa.
Imaginava-se vivendo uma cena de filme em que subia no deque e abanava para sua família antes de sair; em vez disso, precisou passar por um detector de metais e quase quarenta minutos de fila antes que realmente pudesse entrar no navio.
Seu quarto era o que havia esperado: pequeno, mas confortável. Sentou-se na cama com o coração batendo rápido. Bem ao lado de seu colchão havia uma janela redonda que lhe permitia ver o mar. Jasmim tocou o vidro, os dedos tremendo de animação. Acontecera, enfim: estava num cruzeiro.
~~~~
Um mês havia se passado e ela ainda não se acostumara à quantidade de pessoas. Aonde quer que fosse, sentia-se sufocada. Ainda nem conseguira aproveitar a piscina direito! Entrara uma vez, mas haviam tantos corpos encostando no seu que saíra nem dez minutos depois.
Estava no deque, vestindo apenas a parte de cima de um biquíni vermelho e uma saia de renda. Ao seu redor, diversos casais jantavam nas mesas de madeira, algumas crianças corriam. Sorriu, pensando em Lílian. Ela não era tão nova, já tinha seus doze anos, porém ainda se lembrava de quando ela não tinha mais de cinco e não passava de uma mistura de ossos e cabelos cheios. Com o coração apertado de saudade, abriu o Skype.
A conexão era terrível, porque havia muitas pessoas utilizando a mesma rede. Ainda assim, nos horários das refeições e durante a madrugada, era possível fazer uma chamada de vídeo de péssima qualidade. Confirmou que a irmã estava disponível e, segundos depois, viu seu rosto sorridente.
Via seus próprios traços no rosto de Lílian. Ela tinha a boca um pouco mais fina e era mais magra, porém a pele negra tinha o mesmo tom, o nariz o mesmo formato, os olhos o mesmo brilho. Ah, o cabelo era diferente, com certeza. Lílian pintara o seu (escondida, é claro) há dois meses, porque estava obcecada com Harry Potter e decidira que queria ser Gina Weasley.
— E aí, como foi com o gatinho do bar?
Revirou os olhos para a pergunta, porque era óbvio que ela começaria dessa forma. Ajeitou os fones no ouvido e deu de ombros.
— Não rolou nada. Eu vi ele com uma loira hoje.
— Ah, que safado!
— Cala a boca.
Riram baixinho. Lílian abaixou a cabeça para que ela pudesse ver a raiz dos seus cabelos.
— A mãe aceitou comprar mais tinta pra mim. Ela sabia que eu ia pintar igual.
— É por isso que eu ganho dois mil de aniversário e você não.
— Nada a ver, a vovó prometeu que vai me dar a mesma coisa quando eu fizer dezoito. É a idade, tu não é a preferida, não te ilude.
O cheiro do mar e a voz de Lílian fizeram com que se sentisse em casa mais uma vez. Mordeu o lábio e caminhou até conseguir apoio na beirada do deque. Olhou para a frente do navio, tão perto, e virou a câmera do celular para lá.
— Olha, aquele casal quer fazer a cena do Titanic.
A gargalhada de Lílian fez com que baixasse o volume um pouco.
— Eles tão falhando, acho que a menina vai cair.
Trocaram mais algumas confidências bobas, com Lílian falando sobre a escola e a saudade que a mãe delas sentia. Perguntou sobre as amizades, e Lílian comentou sobre as pessoas com quem conversara na noite anterior, um casal de amigos que viera desestressar. Desviou os olhos do mar e percebeu um dos garçons a encarando. Sorriu para ele, sendo correspondida. Já era a quinta vez só naquela semana!
— Eu acho que um dos garçons gosta de mim.
— Uh, romance no navio.
— Até parece… Naah. Mas ele é gatinho.
— Quão gatinho?
— Hãn… Tom Hiddleston gatinho.
O olhar cético que recebeu arrancou outra gargalhada de si. Lílian cruzou os braços.
— Duvido. Não existe esse tipo de beleza.
Desde que o primeiro filme dos Vingadores saíra, Lílian endeusava o ator. A própria Jasmin admitia que o achava atraente, mas sempre fora mais interessada em homens como Chris Evans ou Chris Hemsworth. Mesmo depois de Pantera Negra (que acrescentara Chadwick Boseman à lista de deuses que a irmã cultuava, em suas próprias palavras), Jasmim ainda mantinha sua preferência pelos dois Chris (mas admitia que Lupita Nyong’o ganhara uma parte de seu coração).
Precisava cortar o assunto logo, ou passariam a discutir o universo dos super-heróis de novo, e a conversa duraria dias.
— Não importa, ele é bonito. Olhos verdes, cabelo negro, branco, corpo forte. Bem o meu tipo.
— Ele já falou contigo?
— Eu pedi uma cerveja pra ele ontem, e ele trouxe, mas foi isso. Mas a gente tem se olhado algumas vezes.
— Sinto cheiro de romance!
— Quieta, Lílian. Ah, tá diminuindo o movimento, graças a Deus!
Quase quarenta minutos depois, desligou o telefone. O deque agora estava bem mais vazio, apenas algumas pessoas ainda curtiam a piscina. Largou sua saia perto de uma cadeira e finalmente entrou na água. Agora que conseguia esticar as pernas e até nadar um pouco sem esbarrar em ninguém, a área comum parecia mais atraente.
O garçom se aproximava. Jasmim mordeu o lábio, nervosa, e se apoiou ma borda. Ele se abaixou, encarando-a nos olhos, e de repente Jasmim desejou não ter molhado o cabelo; ele ficava bem melhor seco.
— Champanhe?
Precisava controlar os gastos, porém fora econômica até o momento; merecia beber uma taça de champanhe, para variar.
— Sim, por favor.
Ele entregou-lhe a taça e se levantou, os olhos ainda presos nos seus. Com o coração acelerado, ela resolveu arriscar:
— Meu nome é Jasmim.
— Pode me chamar de Zé.
Observou-o se afastar e se lembrou da comparação que John Green fizera em A culpa é das estrelas: champanhe parecia mesmo com estrelas explodindo na sua boca. Ficou com um sorriso meio bobo e fechou os olhos. Tivera seus namorados, mas nada sério. Sua parte romântica ainda sonhava em arranjar um grande amor numa viagem, algo rápido e intenso que tirasse seu chão e a fizesse sentir como se estivesse se afogando em emoções.
Talvez o tivesse encontrado.
~~~~
Nadar à noite tornou-se hábito. Havia menos pessoas no deque, mais espaço. Fizera alguns amigos, nada que pudesse durar mais do que as oito semanas de viagem. Ainda assim, conversar com Mariana sempre a fazia rir, e Matias tinha ótimas histórias para contar.
Encarou o céu estrelado e fechou os olhos, a cabeça e os braços apoiados na madeira, o corpo boiando. O cheiro de maresia (sempre presente, não importava onde estivesse) trouxe a memória do sorriso do seu pai.
Ele era capitão de um navio um pouco menor do que esse em que estava. Suas viagens variavam entre doze e cinco semanas, tempo demais na opinião de qualquer integrante da família. Ainda assim, ele sempre fora presente. Jasmim lembrava-se de pegar no sono ouvindo-o contar seus causos de capitão. Ele sumira três anos atrás numa de suas viagens. Saíra com a promessa de que voltaria em até duas semanas; o navio voltara, ele não. Dos seus tripulantes, só sobrevivera Bobo, que recebera o nome por não falar palavras coerentes há anos. Ele fora junto porque gostava do mar e sabia limpar bem o convés (e Jasmim achava que seu pai sentira pena dele).
Muitos tentaram arrancar de Bobo o que acontecera e como ele conseguira trazer o navio em segurança até a ilha; ele dissera apenas que as ondas levaram as pessoas embora e o trouxeram para casa.
Menos de dois meses depois, Bobo se jogara de um penhasco.
Uma pequena parte sua não queria dizer que sentira ódio de Bobo, porém isso seria hipócrita demais. De todas as pessoas do navio, por que apenas Bobo sobrevivera? Ele, que não fez falta para ninguém quando morreu? Não fora a única a perder o pai naquela viagem; diversos de seus amigos também tinham família na tripulação do Flores de Esmeralda, o navio que seu pai conduzia.
Suspirou, deslizando até estar coberta de água. Sentira raiva do mar por bastante tempo, porém nunca conseguira evitá-lo. Sabia que ele levara seu pai, sabia que a culpa era da correnteza e das ondas, deveria sentir medo e repulsa, porém sempre fora apaixonada pela água, assim como seu pai era. E Lílian. E sua mãe. E seus avós.
Talvez fosse algo de família.
Voltou à superfície respirando fundo. Queria que o cheiro do mar trouxesse de volta o calor do abraço dele e o conforto da sua voz. Mesmo depois de anos, ainda o amava e, em segredo, esperava que ele voltasse para casa dizendo que se perdera numa ilha deserta qualquer.
— Oi, Aquamarine.
Olhou para trás, sorrindo ao ver Mariana deitada sobre a madeira do deque. Nadou até ela e se apoiou na beirada.
— O que tá fazendo aqui?
— Eu tava entediada. Matti quis dormir cedo hoje, deve ser influência sua.
Ela revirou os olhos como se isso fosse absurdo, o que fez Jasmim sorrir.
— Olha, eu não tô dormindo cedo nos últimos dias.
— É milagre, só se for.
Mariana tinha os cabelos castanhos e a pele tão negra quanto a da própria Jasmim. Era engraçado que, perto delas, Mattias parecia quase albino (e as duas faziam questão de apontar isso quando tomavam banho de sol juntos). A maior diferença entre elas era o tamanho; Mariana escapava de ter um metro e meio por dois centímetros, o que ainda a deixava uma cabeça mais baixa do que a maioria das pessoas.
— Vem nadar comigo.
Não foi preciso pedir duas vezes, Mariana já estava pronta para isso. Ainda havia talvez outras quatro pessoas ali dentro, porém a piscina enorme era espaçosa o suficiente para todos. Assumindo a posição inicial de Jasmim, Mariana se apoiou na borda com os braços e a cabeça para fora, o corpo boiando. Jasmim se juntou a ela.
— E aí, como anda com o Zé?
— Ah, ele ainda não teve coragem de chegar em mim.
— Ainda estamos na fase dos olhares, então. Eye sex*, adoro.
Jogou água nela, o rosto meio vermelho.
— Fica quieta, a gente não faz nada disso! Bom… talvez um pouco.
Riram e trocaram um daqueles olhares que diziam muita coisa. Isso fez Jasmim reconsiderar seus pensamentos anteriores; talvez essa amizade pusesse durar até depois da viagem.
— Bom, tomara que se peguem logo. Ninguém mais aguenta essa tensão sexual não resolvida de vocês dois.
— Cala a boca, e tu e o Matti?
— Matias é quase meu irmão, não viaja. A menina do almoço de hoje, por outro lado…
Como sempre, haviam almoçado juntas. Mariana colocara os olhos numa garota de olhos e cabelos castanhos do outro lado da sala e decidira que era com ela que queria ficar.
— Já conversaram?
— Nah, eu acho que é hétero. Ela tava falando com um tal de Tomás e dizendo que ama ele.
— Nossa, stalker.
— Eu não sou nada disso, só acontece que passei perto e ouvi!
Jasmim não acreditava nem um pouco nisso; a bem verdade, conseguia visualizar Mariana se sentando perto da tal garota, óculos de sol grandes cobrindo os olhos, e fazendo o possível para escutar cada palavra que ela dizia ao usar o telefone.
Continuaram conversando até estarem com a pele enrugada. O assunto mudava muito rápido, e Jasmim tinha a sensação de que já haviam discutido todos os assuntos existentes nas poucas horas que passaram juntas. Só era bom que falassem menos sobre livros, seus gostos não eram nada parecidos: Mariana era fã de Bram Stoker, Jasmim de Stephanie Meyer*.
Já passava das três quando Jasmim enfim voltou correndo para sua cabine, enrolada numa toalha verde. Perdera a noção do tempo enquanto conversava e teria pouco tempo para dormir. Fora estranho perceber que eram as únicas pessoas no deque; naquela noite, ninguém ficara do lado de fora durante a madrugada (de forma geral, ao menos um grupo passava a noite em claro). Talvez fosse por estarem se preparando para a visita à ilha mais próxima no dia seguinte.
Correu sentindo frio. À noite, sem nenhuma pessoa ao redor, o navio a assustava. Lembrou-se daqueles filmes de terror estúpidos que Lílian adorava assistir e desejou que as tábuas rangessem menos. Entrou em sua cabine com o mesmo alívio de quando era criança e se escondia debaixo dos cobertores.
Não demorou para perceber que estava mais segura no deque.
O quarto estava escuro, e havia alguém sentado na sua cama. Ela conseguia ver com perfeição o formato da cabeça dele na janela, e soube que era um ele assim que o viu. Levou a mão para trás, querendo alcançar a maçaneta com cuidado para sair sem fazer barulho.
Em vez de tocar em metal, sentiu a textura de dedos embaixo dos seus.
O grito foi abafado pela mão em sua garganta, que apertou com tanta força que a levantou por alguns segundos. Um braço passou ao redor da sua barriga, e ela se viu ser carregada por alguém forte em direção a quem estava na cama. Sentiu lágrimas nos olhos ao reconhecer Zé ali, e ele sorria.
— Ah, morena, você me provocou tanto.
Pensou nos sorrisos e nas vezes em que flertaram em público. Não teve tempo de divagar muito, porque uma risada vinda da porta do seu banheiro fez um soluço querer escapar da garganta. Três. Havia três deles.
O aperto era tão forte que mal a deixava respirar; que dirá gritar. Arranhou com todas as forças o braço de quem a carregava, e foi jogada na cama com velocidade, ficando tonta.
O afrouxo em sua garganta afrouxou só o suficiente para que tecido substituísse os dedos. O nó era tão intenso que seu desespero por ar forçava seu pescoço contra o tecido, apertando-o mais. A toalha foi arrancada e ela sentiu uma mão em seu seio, acariciando-a sem vergonha.
— Morena, morena, eu quero fazer isso há tanto tempo! Tu só provocava e provocava, nada de ir aos finalmentes.
Um tapa e o sentiu sentar sobre sua barriga. A boca mordeu seu colo, o mamilo, rascou a parte de cima do biquíni vermelho. Outras mãos se ocuparam com suas pernas, e alguém pegou seus pulsos ao ver que ela ainda lutava.
Um dedo adentrou sua calcinha, e Jasmim quis morrer. Tentou gritar, remexeu-se, conseguiu derrubar Zé. Não pensou muito ao ver que ainda tinhas as pernas livres e nenhum peso sobre si. Havia uma faca na cabeceira da cama, que ela usara na noite anterior para descascar laranjas. Afundou-a com força contra a pessoa mais próxima, e o grito contido dele distraiu os outros dois.
Nem a própria Jasmim soube como conseguiu sair do quarto, porém se viu entre corredores mesmo assim. Seu primeiro impulso foi cortar o pano do pescoço, mas não havia tempo. Correr estava tirando mais do pouco oxigênio que conseguia respirar. Olhou para as portas das outras cabines, porém não teve como bater nelas: havia outros. Continuou correndo, agora de seis homens diferentes, e desejou com todas as forças que que alguém, qualquer um, ouvisse os barulhos nos corredores e no deque e viesse ver o que estava acontecendo.
Ninguém apareceu.
Não havia mais para onde fugir.
Estava presa contra o metal da grade de segurança do navio, seis homens à sua frente, dois deles com sangue nas mãos. Levou a mão ao pescoço, percebendo que perdera a faca, e quis que aquele tecido saísse para que pudesse gritar, precisava gritar. Eles se aproximaram sem diminuir o passo.
Jasmim olhou por dois segundos para a água antes de pular.
Foi recebida por ondas fortes e respirou líquido assim que atingiu o mar. Foi tudo tão rápido que não conseguiu sentir muita coisa além da dor na cabeça e da queimação no peito e no pescoço. Desejara se afogar em sentimentos há alguns dias, ao pensar em Zé e no possível romance tórrido que poderiam ter. A vida era cheia de ironias, não fora bem isso que pedira.
Nunca soube se chorava, mas diria que sim se a perguntassem.
Seus últimos pensamentos foram uma mistura desesperada dos cabelos ruivos de Lílian e da voz da sua mãe e do rosto das pessoas que conhecia. Queria se formar, queria viajar o mundo, queria conhecer todos os animais marinhos, estudá-los, cuidar deles.
Tudo ficou escuro.
…
…
…
Mas não acabou. Jasmim pensara que acabaria rápido, que não levaria mais do que dez segundos, porém não havia mais queimação no peito. Sentia o mar ao seu redor envolver seu corpo como se fossem um só. O pescoço ainda apertava demais, e conseguiu rasgar o tecido num puxão; uma gravata.
Piscou, conseguindo ver melhor embaixo d’água do que a vida inteira em terra. Engoliu em seco, assustada, respirando. Sabia que a mão estava tremendo e procurou alguma explicação ao redor.
Olhos dourados a encaravam de volta.
Pânico foi o que sentiu quando eles vieram para perto, e uma mulher maior do que qualquer outra apareceu. Ela estava nua, a pele num tom azul tão parecido com o do mar que mal era possível identificar seus contornos.
O primeiro impulso de Jasmim foi fugir. Se soubesse como mexer esse corpo, seu corpo, teria feito isso.
— Está tudo bem.
Não a viu mexer os lábios, porém escutou as palavras com clareza. Deveria sentir medo, pavor até, porém a voz acalmou cada instinto defensivo que ainda tinha. Logo depois foi envolvida num abraço e se sentiu segura como se fosse sua própria mãe ali. Lembrou-se dos dedos em suas pernas, do terror que há pouco vivenciara, e se apegou com ainda mais força àquele ser quase sem corpo, mas que podia ser tocado.
— Está tudo bem, minha criança.
— Quem é você?
— Acho que tu me conheces como Iemanjá.
Flashes de pessoas deixando flores no mar durante o ano novo vieram à sua mente. Nunca fora religiosa, não conhecia nada sobre ela. Ainda assim, sentiu-se acolhida. Apertou o abraço.
— Um nome é só um nome, eu tenho muitos. Esse é o que deve fazer mais sentido para ti.
Concordou sem pensar. Precisava mais do calor dela, da segurança.
— Está tudo bem, minha pequena, eu já disse. Ninguém mais pode te machucar.
— Ninguém?
— Não.
O abraço ficou mais forte, e então Iemanjá a afastou e segurou seu rosto com as duas mãos. Ela sorria.
— Agora, meu bem, é você quem machuca eles.
Foi quando Jasmim percebeu a cauda. Assustou-se. Tocou as próprias escamas com cuidado, elas eram alaranjadas, meio vermelhas, como o cabelo de Lílian. Quentes. Deslizou as mãos para cima, para seus próprios seios nus, e subiu até o pescoço machucado. Os cabelos estavam do mesmo tamanho que antes, ainda tão sedosos e cheios quanto se lembrava.
O medo foi embora com a deusa das águas, porque era assim que Jasmim a via. O que ficou foi a raiva, o ódio. Esse sentimento era tão profundo e a corroía com tanta intensidade, que Jasmim não se perguntou como aquilo acontecera ou porquê. Queria sangue, o sangue deles, e nada mais importava.
Procurou pelo navio e o percebeu a quilômetros de distância. Isso trouxe a dúvida de quanto tempo havia ficado desacordada; não se importou.
Sua cauda era mais rápida do que Jasmim acreditava ser possível. Foi mais fácil controlar seu novo corpo do que ela imaginara, porém nem isso percebeu. Tudo o que havia era ódio e rancor e ira. Não pensou no que faria ao pular para fora da água com toda a sua força. Fez um arco no céu e caiu sobre o deque, quase no mesmo lugar de que se jogara. Tinha pernas de novo, porém sentia a cauda por debaixo delas. Olhou ao redor, analisando se alguém a vira.
Estava sozinha.
Seus pensamentos não faziam sentido, quase nada fazia, porém não importava mais. Ela tinha pernas, poderia andar, e ninguém a machucaria. Nunca mais.
Agora é você quem machuca eles.
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