“As leis da terra
Não servem para mim,
Não sou movido
Por letras, mas
Pelo som das estrelas.
A areia me serve como manta
E quando o vento sopra
Eu me transformo
No que não existe,
Sou constantemente inconstante,
Me revolto e sou revoltado,
Nenhuma lei me limita
Porque só o mar eu respiro.
As leis da terra
Não servem para mim.
Sou a fúria das marés,
Sou a ânsia do sal em alto mar,
O luar que toca
A água escura e ondulante,
Sou o peixe que escapa do anzol,
Sou o brilho perdido das ostras,
Sou os monstros dos
Oceanos desconhecidos.
Eu disse, então,
Para o seu próprio sossego,
Vire as costas e volte
Por onde chegou,
Não insista:
As leis da terra
Não servem para mim.”
- Hino das Sereias, talhado na rocha da Ponta Seca.
Na última praia da cidade portuária (ou na primeira, dependendo se você estiver chegando na cidade ou saindo dela), Bernardino Colorado caminhava como sempre fazia na direção do seu barco de pesca. Pescador de corpo e alma, sua profissão já estava traçada bem antes de nascer. Tal qual seu pai, avô e bisavô, Bernardino respirava sal e mar.
Algumas gaivotas voavam traiçoeiras perto dele, já acostumadas com aquela figura média de pele curtida de sol e com músculos cobertos por uma camisa de algodão amarela de tão velha, e esperando algum vacilo do homem para pegar um peixe ou dois quando este estivesse desatento e prestes a voltar à terra firme.
Bernardino nem ligou para as aves, adentrou o mar como quem ainda andasse pela areia, lutando com pouca dificuldade contra as ondas que lhe batiam nas pernas, molhando as calças dobradas no alto das coxas. Ele puxou a corda que prendia o barco e logo pulou para dentro.
Trabalhou automaticamente, pegando os remos e afrontando as ondas do mar, que a cada investida fazia gotas grossas de água salgada baterem no seu rosto e pingarem da sua barba grisalha. Naquela manhã, o filho mais velho que o ajudava com a pesca amanheceu febril e a esposa não o deixou sair da cama. Podia ser perigoso demais o menino se aventurar pelas águas e pelos ventos salgados com a pele ardendo. Bernardino tentou resistir às palavras da esposa, dizendo que na época dele tinha que pegar em remos doente ou não, sem exceção, pois a vida não dava nada de graça sem o trabalho honesto; e aquele trabalho era honesto! Acordar às 4:30 da manhã, comer o pão azedo com azeite e um pouco de queijo curado, tirar as roupas limpas e secas do varal, limpar a sujeira do cachorro Pimpolho, beijar as três filhas antes de sair para a praia, subir no barco e navegar até perto das Rochosas para pegar os peixes pequenos que os barqueiros não se interessavam, depois separar o que é de sua família e o que vai para o mercado local, e mais tarde voltar para casa jantar com a família toda reunida para prece do dia. Uma vida simples, uma vida honesta. Mas a esposa de Bernardino nem quis dar satisfação para o velho, afastou-o com um afanar de pano e fechou a porta do quarto dos filhos.
Ele piscou os olhos, desviando-os da superfície da água, fazendo esforço para os remos levarem o barco até onde ele pescaria sua preciosa fonte de renda e comida. A praia se afastava rapidamente, os pescadores da região começavam a sair de suas casas e seguir para seus trabalhos, os prédios de quatro andares, simples e encardidos perdiam os caracteres que os distinguiam uns dos outros, as gaivotas voavam lentamente lá no alto, quase tocando as nuvens.
Já sentia os braços arderem e a respiração ficar mais pesada quando chegou perto do agrupamento de pedras negras, denominado pelos pescadores de Rochosas. O mar estava mais calmo que no dia anterior, então as ondas que batiam nas pedras não subiam tão alto como gostava o seu filho de ver. Ele parou de remar e puxou os remos para dentro do barco, deixando-os na sua esquerda. De debaixo do seu banco, Bernardino puxou um bolo amarrotado de rede de pesca que cheirava a peixe. Com o barco balançando abaixo, ele se equilibrou facilmente, estudando as águas escuras, procurando por algum sinal de peixe.
Demorou quase vinte minutos para ver um movimento perto da superfície da água, do qual se seguiram mais tantos outros. Olhou satisfeito para o mar, lançando a pesada rede de pesca na direção do cardume. Se você tem paciência, a vida te presenteia. Era o que dizia seu avô. E o vovô estava sempre certo.
Gemendo com o esforço que fazia para puxar a rede de volta ao barco, Bernardino pensou em como o filho mais velho fazia falta e em como ele próprio já estava velho demais para puxar uma rede pesada dessas cheia de peixe. A água entre a rede de pesca começou a borbulhar com o movimento elétrico dos pequenos peixes, que tentavam com todas as suas forças sair daquela prisão de cordas. As costas envergadas com a força que Bernardino dispendia para puxar os peixes já se revoltava com a afronta do velho, que quase escorregou no barco.
Com um grito e um último esforço, ele puxou toda a rede para dentro do barco, caindo pesadamente no banco. O barco se mexia para os lados quase como se fosse virar na água e os peixes se debatiam no chão de madeira, fazendo “pom, pom, pom” a cada vez que batiam no chão. Manjubas. Bernardino olhou para os pequenos peixes com orgulho, pois ele e sua família teriam o que comer nos próximos dias, mas o cansaço era muito e ele não sorriu. As costas, braços e pernas ainda ardiam com o esforço e ele achou melhor esperar alguns minutos até que recuperasse o fôlego e pudesse remar de volta para a praia.
Enquanto o corpo descansava, mirou no horizonte os barcos que chegavam até os mares da sua cidade. De onde estava, ele não ouvia os gritos dos pescadores e trabalhadores do porto, nem dos comerciantes das vendas que negociavam preços menores com as donas de casa. Os únicos sons que ouvia eram os das gaivotas que voavam em espiral acima dele, dos peixes batendo na madeira do barco e das ondas quebrando nas Rochosas.
Mas um som, um som que Bernardino não conseguiu distinguir, chamou-lhe a atenção. Virando o rosto para as pedras negras e molhadas, ele viu alguns movimentos furtivos de minúsculas baratas-do-mar e caranguejos. O som surgiu novamente, como um assobio curto e agudo.
Ele se levantou do banco, colocando uma mão sobre a testa para bloquear o sol que nascia e jogava seus raios nas pedras. Uma figura se elevou por trás da pedra que estava mais próxima do barco. A cabeça de uma mulher com pele esverdeada como esmeralda e cabelos lisos e escuros como algas marinhas piscou lentamente para ele. Bernardino arregalou os olhos e coçou-os com as mãos, imaginando se estava louco devido à fadiga. Ao abrir os olhos de novo, a mulher continuava lá, olhando-o com um sorriso nos lábios finos.
O pescador de olhos esbugalhados levantou uma mão receosa para acenar para a mulher da pedra. A mulher, por sua vez, ergueu a mão também fazendo sinal com os dedos para que Bernardino a seguisse. Ela estava tão perto dele que ele pôde ver as membranas finas de tom escuro que ligavam os dedos da mão.
Sentiu os pés pesados, os braços também. Bernardino percebeu que todo o seu corpo parecia mais um saco de areia molhada, sem poder algum de ser comandado. A mulher verde alargou o sorriso nos lábios finos, escorregou para o mar, mergulhou e começou a nadar para junto do barco. Bernardino escancarou a boca, querendo gritar, mas o grito não passou da garganta. Ele corria e pulava para dentro do mar, nadando com todas as suas forças até a praia, mas o movimento ficou preso dentro dele. Tudo estava apenas nos seus pensamentos.
Ele viu, sem poder fazer nada, a mão verde esmeralda com membranas segurar a borda do barco. Erguendo a cabeça do mar, a mulher da água encarou o pescador aterrorizado com seus olhos azuis escuros, brilhantes e sem esclera. Um dedo de sua mão verde se movimentou para que ele se abaixasse até ela. Bernardino sentiu as lágrimas salgadas caírem de seus olhos ao sentir que o corpo fazia exatamente o que a criatura ordenava e o aproximava mais e mais daquele bicho esguio, úmido e horripilante.
Parando o rosto a dez centímetros da face cavalinha da mulher, ele sentiu um forte cheiro de peixe e viu o sorriso dela se alargar ainda mais, fazendo seus lábios finalmente se abrirem. Mas não foram dentes brancos como pérolas da forma que os mitos e as lendas narravam que o pescador viu em seus últimos minutos de vida e nem lhe foi lascado um beijo profundo tal qual os marinheiros gostavam de falar.
Fileiras com dezenas de pequenos espinhos negros como piche tomavam o lugar dos dentes da criatura marinha e se fincaram no pescoço de Bernardino num bote rápido e funesto, afundando cada vez mais com a força de um tubarão, e lançando seu veneno paralisador no sangue pulsante do velho pescador.
De onde estava, Bernardino não ouvia nenhum som vindo de sua cidade, nenhum grito dos pescadores e marinheiros.
De onde estava, ninguém ouviria os gritos de socorro de Bernardino, caso ele pudesse gritar.
Sua mente começou a rodar e seu corpo agora parecia pesar uma tonelada.
Como última visão desse
mundo antes de adormecer eternamente, sem conseguir desviar os olhos,
Bernardino viu emergir do mar uma cauda de peixe escamosa, longa e grossa, de
cor amarronzada, que se ligava ao corpo da mulher e terminava numa barbatana
marrom escura, com as pontas negras como as pedras das Rochosas.
Como um eco das sombras do passado, a Escuridão tece uma teia através do tempo, criando laços entre lugares e personagens que nem sequer sabem das existências uns dos outros até que sua presença tenebrosa se manifeste. *Todas as artes utilizadas nesse universo foram criadas com Artbreeder* ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Como un eco de las sombras del pasado, la Oscuridad teje una red a través del tiempo, creando vínculos entre lugares y personajes que ni siquiera saben de las existencias de los demás hasta que se manifiesta su oscura presencia. *Todo el arte utilizado en este universo fue creado con Artbreeder* Leia mais sobre Bordas da Escuridão.
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