invisibilecoccinella Mary

Janaína Santiago Martins é o recheio do sanduíche da família por ser nada menos que a filha do meio. Jana, como é mais conhecida, é uma taurina tranquila, de bem com a vida, apaixonada por sorvete, pela sua cachorra Bolinha a quem adotou quando estava na 3ª série, não gosta de matemática nem de português e também não se entrosa com o atletismo. Sua vida começa a mudar drasticamente quando o primogênito Jorge é aprovado no processo seletivo para ingressar no Colégio Militar, o que obriga a família a se mudar para mais perto da nova escola e também afasta os irmãos que cresceram sendo muito amigos. Janaína está encarando todas as mudanças físicas e sentimentais inerente à transição da infância para a adolescência. Mudar para uma nova escola onde não passa de uma estranha, adaptar-se ao novo bairro e especialmente ao seu novo corpo, de uma menina que como um botão de rosa vai desabrochando aos poucos. Se muitas meninas de sua idade querem ser populares, ela quer apenas viver em paz. Apesar de não ser a heroína à venda nas livrarias, Jana tem ótimas histórias para contar, afinal, grandes histórias estão escondidas por trás de pessoas aparentemente comuns.


Romance Romance adulto jovem Todo o público.

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1. O aprovado

Foi um alvoroço pela rua toda a aprovação de Jorge naquele colégio. O portão do cortiço estava aberto e o rádio ligado em uma estação de AM divulgava nome por nome. Quando Jorge Santiago Martins foi mencionado, mamãe começou a pular pela cozinha segurando a colher de pau com a qual estava mexendo o mingau da Mabel no fogo alto. 

Pela gritaria a vizinha do lado, a D. Helena, já sabia que o Jorginho tinha se dado bem na vida. Ela usava aparelho auditivo, mas seus ouvidos funcionaram bem sem a ajuda dele. 

A impressão que tive naquela tarde de sexta-feira foi de estar prestes a ver em nossa rua a carreata da seleção trazendo consigo todos os craques segurando a taça um por um e acenando para o povo. Mesmo que eu, Janaína, ficasse esquecida no meio daquele montão de gente que escutou a D. Helena gritando e partiu para o portão da nossa casa, não deixava de ser um daqueles momentos que passam tão depressa e horas depois você remonta passo a passo o que disseram e com que intenção. 

Jorge era meu irmão mais velho com catorze anos recém-completos e se formava no Ensino Fundamental enquanto eu ia para a 6ª série. Estudávamos juntos na mesma escola, ele alguns anos na frente e eu sempre mitificando a figura dele para que assim os meninos da minha sala morressem de medo de pregar alguma peça em mim. 

Mabel ainda estava na primeira série no turno da manhã e com certeza pensava que seria moleza a vida toda: ler livros com gravuras, hora da soneca, brincadeira no parquinho, cadeirinhas coloridas e cantorias. Pobre dela que um dia descobriria (como eu) que as malditas letras deixam a matemática mais antipática do que já é. Jorge, no entanto, não abaixou a cabeça e com isso o seu desempenho em exatas fez uma tremenda diferença para conquistar aquela vaga. 

O primogênito foi um daqueles dez sortudos civis que cursariam o Ensino Médio em uma das instituições de ensino mais respeitadas da nossa cidade, pois as outras vinte vagas ofertadas para o turno noturno eram destinadas a filhos de militares. 

Era já uma amostra de quão estressante e frustrante é um processo seletivo. Uns riem, outros choram. Assim a vida segue. Serpentina na cabeça de uns, olheiras aos demais. Uma roda-gigante que quando está em cima deveria girar bem devagarzinho para dar a impressão de que o pior já passou. Ou que fosse uma montanha-russa, pelo menos o frio na barriga estaria garantido.

Para os meus pais era motivo de orgulho. 

Quantos outros estariam consolando os filhos e fazendo-os entender que nessa vida perder também faz parte de jogo? 

E faz tanto que estamos sempre preparados para que as coisas não deem certo. 

Quando elas dão, sobretudo a nós pobres, a alegria não cabe no peito, queremos mesmo que a vizinhança inteira saiba que papai quitou o velho Monza vermelho de guerra, que o Jorge passou na Escola Militar. Não era para fazer inveja em ninguém e sim porque apesar das rivalidades, daquelas fofocas que rolavam por debaixo dos panos, o companheirismo sempre partiu de quem menos esperávamos.

Minha família e eu morávamos naquela rua de descida íngreme e sem saída que não tinha a mais bela vista do mundo, mas era onde eu me sentia realmente em casa. Lá no finalzinho onde para falar a verdade eu nunca me arrisquei em andar, parecia com uma ponte de madeira dividir um bairro e outro. Quando nos mudamos, a Mabel era bem pequenininha e andava com o seu triciclo vermelho pelo entorno do quintal. Aquela ponte de madeira suportava a Kombi do verdureiro, o carro do sonho que com megafone passava duas vezes por semana e era caminho para a escola ou pelo menos para apanhar o ônibus.

Disquei o número do trabalho do meu pai porque os dedos da minha mãe tremiam. 

D. Helena ofereceu um copo de água para mamãe que se sentou à mesa para falar.

― Pobre é assim. Nunca acredita quando acontece alguma coisa boa. ― refletiu a D. Helena muito sincera com seus setenta e dois anos de idade muito bem vividos.

― Nem Jorginho contava que ia passar, mas eu insisti que ele tinha que se pegar com Deus e confiar que tinha chance.  ― Mamãe chorava de emoção, um pranto de quem já levou muito desaforo dessa vida. Suas mãos calejadas eram uma das provas mais cabais de que eu nasci do ventre de uma guerreira, talvez não aquela que vemos nos livros de História, mas como toda mãe sabe ser pela sua prole. Uma leoa que passa fome para que sobre pão para os filhos, que corta dos seus próprios caprichos para não faltar o bolo de chocolate no aniversário. Alguém que não cresceu desfrutando de luxos e considerava uma lata de sorvete um grande achado. 

Com seus trinta e cinco anos, Marlene Santiago Martins ainda era uma mulher bonita e esbelta deixando muitas de dezoito com certa inveja, e carregava consigo uma sabedoria digna de partilhar com a D. Helena, aquela senhora que gostava quando o Jorginho capinava o seu quintal. Desde que o sobrinho-neto William se foi para Belo Horizonte, Jorginho ajudava àquela senhora na jardinagem e em troca ela nos oferecia maços de couves repetindo categoricamente o quanto “fazia bem para a saúde”. 

― Deus pode demorar, mas nunca se esquece.

Meu pai também chorou na linha. 

― É, meu Januário, nosso menino passou! ― Mamãe chorava e Mabel sem entender nada puxava o avental dela.

Um homem contido em suas emoções chorava pensando em todos os sacrifícios empenhados para nunca atrasar o aluguel e não faltar o básico à mesa. 

A aprovação de Jorge parecia coisa distante e era, entretanto, a premissa de um dia a família Martins teria o seu verdadeiro lugar ao sol. Logo ele, o seu Januário, que com tanta dificuldade completou o primário e precisou sair da escola para pegar no batente enquanto seus outros amigos estavam no campinho de areia jogando bola. 

Ele nunca teve medo de trabalho.

Nem ele, nem a minha mãe.

Tudo o que tínhamos foi conquistado com o suor da testa dos dois, mesmo que fosse pouco, que não valesse nada para quem nasceu em berço de ouro. Mas era nosso tal qual o conhecimento do Jorge, era dele, e tudo o que almejasse era mérito intransferível.

Mamãe cuidava da casa, da nossa boa educação, checava os nossos cadernos, até ajudava a fazer as margens no papel almaço, levava de mãos dadas para fazer pesquisa lá no Farol do Saber, e tinha horror a pessoas preguiçosas. Com ela não colava. Não é à toa eu levava a maior bronca se em meu caderno estivesse um bilhetinho da professora. 

Quem começava a dar os primeiros passinhos na alfabetização era Mabel e nossa mãe a supervisionava. Conosco ela teve menos dificuldade, porém nossa irmãzinha, esperta como era, fazia as suas próprias associações e vinha se saindo muito bem.

Jorge sem dúvida era aquele par de olhos brilhantes e sonhadores a conclamar sua primeira vitória. A primeira de muitas. Ele se sentia mecânico repetindo aquele “obrigado” e sendo quase esmagado por aquela quantidade de abraços que vinham de gente da vizinhança a qual nem conversávamos havia tempo. 

O bacana mesmo foi ver os olhos arregalados daqueles moleques que enchiam o Jorginho por causa da magreza ou do jeito mais comportado. Agora se referiam a ele como o gênio da rua, o “piá que passou no Militar”, “o inteligente da casa 80”. Eu seria ninguém menos do que a “irmã do menino mais inteligente da rua”.

Jorge me trouxe para perto da porta da sala:

― Ei Jana, quer um sorvete? ― sugeriu Jorge.

― Quero! ― respondi com um sorriso faceiro de quem gostava de sorvete tanto quanto o papai de futebol.

Era um jeito sutil de ele pedir para sair dali.

Nem quando a Mabel nasceu houve tanto alvoroço. 

― Acho que a D. Helena está mais empolgada com a aprovação do que você, Jorge. ― comentei.

― Ainda não caiu a minha ficha. ― Ele respondeu segurando em minha mão. Era o seu jeitinho de me proteger na rua porque quando nossos pais não estavam por perto, o irmão mais velho tinha incumbida a responsabilidade de cuidar de mim e da pequena Mabel. É claro que quem não nos conhecia e assim nos visse falava alguma coisa ofensiva pensando que éramos um casal de namorados.

Fomos à panificadora (dos bolos mofados) no início da rua onde escolhemos dois picolés de frutas e saímos para passear pelas redondezas. Era verão e o sol estava a pino. 

Por cargas d’água aquele fim de ano tinha um toque todo especial, porque o próximo seria 2000, um ano tão falado e cheio dos mistérios, das superstições, daquelas coisas que inventam para encher as páginas de revistas e deixar as fofoqueiras entretidas já propagando o pior através de suas bocarras alargadas. 

Não que eu fosse ligada a esse negócio de combinar signos e causar discussões astrológicas denotando o quanto eu era leiga no assunto, mas me parecia tão certo que podia contar com a esperança. Não que não pudesse antes. Era algo meio estranho e eu não conseguia escrever sobre isso naquela agendinha de páginas quadriculadas que datava de 1998 e ainda tinha páginas sobrando (não era todo dia que eu escrevia). 

Eu poderia passar noites acordada olhando as estrelas e não sentir medo de “pegar sereno” como advertia o meu pai ou pela manhã estar com olheiras. Eu queria ficar comigo mesma, com ou sem o rádio ligado, com ou sem o Jorge. Às vezes ele ficava comigo, às vezes, não.

Jorge era o irmão mais velho pelo qual minhas coleguinhas costumavam ser apaixonadas. Ele, porém, não era dado a corresponder a ninguém, dizia ser muito “novo” para namorar só por namorar. Meus pais não pareciam nem um pingo preocupados porque admiravam o foco do primogênito no estudo. Entusiasmo que faltava em outros garotos. Não que estivessem errados, no entanto Jorginho não gostava desse assunto e desviava dele, chegava a ficar realmente brabo se insistissem. A causa era a timidez. Ponto.

Fomos visitar a Vó Lurdes (ela não era a nossa avó de verdade) em sua casinha de fachada bege onde morava na companhia do Lelé, um vira-lata cinzento de pelo embolado e velhote como ela cujo cabelinho era branquinho feito à neve, ralinho, até faltando em algumas entradas. Usava óculos porque não enxergava nada a um palmo, fosse letra miúda ou ampliada.

Lurdes estava dando banho no pequeno Lelé que ao ver visitas no portão saiu correndo em disparada para nos receber com latidos altos. Jorge também capinava o quintal dela que tinha lordose e não podia se esforçar muito por recomendação médica. 

Os filhos insistiam para que ela fosse morar com alguns deles, proposta que aquela senhora dispensava porque não queria ser um peso na vida de ninguém, tampouco ficar esquecida ou ser tratada como um trapo. Dizia que enquanto pudesse se cuidar sozinha, assim queria ficar, com Lelé aos seus pés, ouvindo seus hinos de louvor, se recolhendo cedo com exceção das noites em que havia novena, bebendo chá e lendo a Bíblia. 

Jorginho gostava de dar banho no Lelé, mas havia chegado atrasado. O cachorrinho corria pelo quintal chacoalhando o corpinho e depois se deitando. Estava idoso e uma simples corrida era capaz de deixa-lo ofegante, pobrezinho.

― Que bom que vocês vieram, pois está saindo um bolo de fubá no forninho. ― anunciou a D. Lurdes enrolando a mangueira perto do registro da torneira, sempre receptiva e amável.

― Bolo de fubá? — Jorge perguntou.

― Bolo de fubá do jeitinho que vocês gostam, meus pequenos. ― avisou Lurdes sorrindo. Eu gostava do bolo de fubá com erva doce que a Vó Lurdes preparava até melhor do que a minha própria mãe. ― A propósito, parabéns! ― disse Lurdes preparando a mesa depois de nos ter convidado para entrar.

Jorge e eu estávamos vendo a senhora tirando o bolo do forno, aquele cheirinho bom tomar conta da cozinha. O café também estava no ponto, tinindo no coador, aquele mesmo cheiro que se sentia quando se passava pela Rodovia do Café e o mundo todo parecia ser de grão.

― Obrigado, vó Lurdes. ― falou Jorge, ansioso pelo primeiro pedaço de bolo.

Naquele ano Jorge decidiu fazer a catequese e a crisma. Sendo a Vó Lurdes a responsável por essa parte na paróquia, ela incentivou meu irmão a participar desse projeto para evangelizar a vizinhança. Era especialmente voltado para pessoas mais velhas e foi um sucesso. 

A catequese durou três meses (espécie de um curso intensivo) e a crisma (dois meses). Ambas foram celebradas com missas de formatura e meus pais fizeram questão que Mabel e eu estivéssemos muito bem arrumadas, foram a uma loja, fizeram um crediário para que nós duas estivéssemos apresentáveis. 

Indo mais longe, Januário finalmente comprou uma câmera fotográfica e inaugurou a ocasião com o filme de 36 poses, oferecendo um churrasco lá em casa após a solenidade. Antes quando queríamos tirar fotos precisávamos emprestar as máquinas de alguém, o que talvez explique as minhas poucas fotografias na infância. Um dos meus traumas foi nunca ter me vestido com a fantasia dos bichinhos da Parmalat. Não sobrou dinheiro para isso.

Todos os fins de semana eu vinha frequentando as missas com o Jorge e sentia vontade de ingressar na catequese em março do ano seguinte aos sábados de manhã, pois abriria uma turma nova e a Vó Lurdes seria a nossa mentora. 

Era muito difícil não amá-la. Aquela senhora era um doce de pessoa. Todo mundo era seu neto, até gente que tinha idade para ser seu filho. Ela era uma das moradoras mais antigas do nosso bairro, portanto tinha também o respeito por fazer parte daquela história e de tantas outras que nunca serão contadas em livros.

Depois de sermos muito bem recebidos pela D. Lurdes, Jorge e eu voltamos para casa e naquela noite o papai estava tão contente que nos levou para jantar em uma churrascaria no centro da cidade, permitindo até que nós pegássemos a sobremesa, dedicando o evento especial àquele que subia o primeiro degrau rumo a uma vitoriosa trajetória de vida.

Jorge Santiago Martins era não menos do que a nossa esperança de um futuro mais feliz. O êxito dele serviria de inspiração para as irmãs menores e também para muitos outros jovens das redondezas que sabendo do caso de um menino pobre que entrou num bom colégio pelo mérito do esforço não desistiriam de seus sonhos, pois abrir mão deles por conta de comentários jocosos e impossibilidades é desistir dos 50% de chance que as coisas têm para dar certo.

25 de Novembro de 2018 às 18:03 0 Denunciar Insira Seguir história
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