Antler chegara desacordado à ilha.
O barqueiro tivera de tirá-lo, com a ajuda – muito a contragosto – do outro homem com quem dividia a embarcação, e lançá-lo na areia.
— Com mil demôn...! — exclamou Antler, ainda no ar, segurado feito um fardo. Não conseguiu terminar a imprecação; no instante seguinte tinha água e aquela areia fétida de algas podres cobrindo-lhe o rosto macilento.
O dândi que segurara seus pés, só o fitava com um misto de desprezo e nojo, limpando as mãos na calça encharcada como se, em vez de um semelhante, tivesse carregado uma carcaça entumescida.
O último passageiro, um rapaz de trajes bufantes, com uma cartola mal encaixada na cabeça, saltava do barco sem querer encarar a ninguém. Cobria o rosto com um lenço de seda e rendas.
Tipo sensível, pensou Antler ao vê-lo. Não sei onde estou, mas esse aí ainda pensa estar num soirées.
O barqueiro, indiferente à cena, se pôs a empurrar outra vez a coisa cupinzenta que ainda teimava em boiar de volta ao mar.
— Ei! — disse Antler, exasperado. Ele tentou se erguer, mas seus pés estavam leves e a cabeça muito, muito pesada. — Que diabos está fazendo? Aonde pensa que vai?
O ancião (talvez Matusalém parecesse um jovem mancebo perto daquele ali) não o respondeu.
— Não pode nos deixar aqui! — Ora! Ao menos um dos distintos senhores com Antler tinha boca, então. Era o homem que o carregara como a um saco de esterco.
O rapazote de cartola parecia perdido. Escondia-se dos salpicos das ondas e dos demais atrás daquele paninho de maricas. Antler mal o conhecia, mas já tinha vontade de dar-lhe um sopapo. Era provável que nem isso o situasse. Deixara-se perder em sabe-se lá quais divagações, estudando algo em meio à escuridão que só ele devia ver.
— Ei, velho surdo! — Antler correu até o barco, aturdido, seus passos lentos e (flutuantes?) desajeitados. Ao ver que seria inútil segui-lo, retornou e parou junto do homem de cara fechada com uma mão erguida. — Chame-o de volta você também!
— Afaste-se de mim, seu... biltre.
— Qual é o seu problema comigo, meu chapa? Acha que é melhor que eu por causa dessa roupa chique? Pois dê só uma olhada ao redor. Está tão metido na merda quanto a eu.
— A mim, seu ignorante. É um maldito que nem sabe conversar. — O dândi mirava-o com seu irritante azedume. — Não o conheço, senhor. Mas sei que não gosto de você. Portanto, mantenha essa mão bem longe.
— Alguém aqui comeu o baralho e esqueceu de cagar o Rei.
— Reveja seu linguajar, rufião.
Antler riu daquilo. Incrível como certos tipos não desciam do palanque nem diante uma catástrofe! Sim, pois assim era a situação ali, e se aquele estrôina não podia enxergá-la...
— O que tanto está olhando, amigo?
— Você o conhece? — perguntou Antler.
— Não.
— Mas ele é seu amigo, hein?
O dândi o ignorou. Foi para perto do rapaz e tocou seu ombro. O jovem deu um saltinho, assustado.
— Calma! Eu só quero saber o que tem naquela direção.
Com a mão livre, trêmulo, o rapaz com a cartola (tão fora de propósito no fim de mundo onde os três haviam ido parar, quanto o traje pomposo do Sr. Rei na Barriga) apontou para um pontinho de luz.
— Será possível?
— O quê? — Antler se uniu a eles. — E o senhor, poderia, por favor, dizer vossa graça? Não quero continuar pensando em você por alcunhas.
— Vou lhe responder apenas para que pare de incomodar. Sou Emile Gaston.
— Um nome cheio de garbo, para um cavalheiro garboso. Bem, eu sou...
— Não me interessa.
— Já pensou que nosso colega possa querer saber?
Não parecia. O rapaz delicado, como Antler já decidira chamá-lo, sequer o notava. Na mente dele, deve estar só, numa sauna turca ou algo assim.
— Quer ir até lá? — disse Gaston ao jovem, e este fez que sim.
— Bom, qualquer lugar deve ser melhor que ficar aqui na beira... — De onde? E, por falar nisso, que raios Antler fazia ali?
Seus dois companheiros subiram a praia, o rapaz, com algum custo, aceitando apoiar-se em Gaston, e o que restava era ir com eles.
O luar se escondera deles naquela noite. Tudo era breu e contornos indefiníveis, mas Antler presumia estarem numa ilha. O lugar não tinha jeito de pertencer à civilização. Por qual razão ele achava isso, não sabia.
A luzinha crescia à medida que os três avançavam, tropeçando em raízes e falhas nas rochas. Ao fim de uma hora de caminhada, sob a garoa ininterrupta e o frio, Antler compreendeu que o delicado Lorde Cartola não falava muito, era esquisito, mas não cego: o filho da mãe havia visto a luz de um farol quando ele mesmo, Antler, um matreiro velhaco, não vira.
— Muito bem, Monsieur Cartola!
Contudo, o rapazola não soava feliz com sua descoberta. Pelo contrário: estacou a uns trinta passos da entrada e nem mesmo Gaston o convenceu a prosseguir.
— Eu também não quero entrar — disse Gaston e, pela primeira vez, Antler concordava com ele. — Mas se houver uma lareira ali, ou um faroleiro, podemos pedir ajuda.
— Precisa sair desse tempo ruim, Monsieur Cartola, ou ficará costipado.
Por incrível que pareça, Emile Gaston fez que sim. Um milagre.
— O homem está certo. Temos que nos aquecer. Sinto muito frio, e você... — Gaston tocou a nuca do jovem (Antler não gostou nada daquilo). — Está gelado!
— On éro entá lá — balbuciou o rapaz. Era sofrível ouvi-lo. O que teriam feito àquele coitado? — É uun ugar uím!
— O que ele...?
— Shhh!
— Gaston... — insistiu Antler. — O garoto tem razão – se entendi bem o que ele falou. Esse não é um bom lugar. Sente como a luz é... fria?
— Ouça, seu ordinário...
— Antler Munro.
— Como é?
— Meu nome: Antler. Assim também não precisa ficar me ofendendo.
Gaston o fitou com firmeza. Mas arrefeceu. Então disse:
— Devíamos estar num navio, não acha... Monsieur Munro?
Fazia sentido. Mas, se sim, que fim levara a nau? Como podiam restar somente eles três? E o barqueiro, voltara para o naufrágio?
— Talvez. Mas não gostei daquele velho, Gaston. E você?
— Tampouco. Ele parecia estranho, não? Nunca disse uma só palavra.
— E aposto que você não se lembra de ter embarcado, acertei?
Gaston meneou, pensativo.
— Não. Mas esqueça isso por ora, Munro. Vamos entrar, nos livrar dessas roupas ensopadas.
Com muito custo, convenceram ao rapazote de que ficar no escuro de um lugar desconhecido e a ponto de congelar, não seria pior que lá dentro.
"Podemos arrumar a lanterna do farol, buscar por embarcações". A lábia de Antler era boa e a afeição de Gaston ajudara.
A porta cedeu facilmente. Os três homens perdidos entraram.
Assim que cruzou o umbral, o rapaz foi acometido por tremores. Olhou para Gaston, tocou seu peito e então mirou a Antler, sempre com o rosto coberto. Sem aviso, soltou-se do homem que o amparava e voou escadaria acima, rumo ao topo.
Os companheiros, surpresos, logo se puseram atrás dele.
No alto, viram o jovem de costas. Já não tinha interesse em cobrir o rosto.
Um nome veio à mente de Antler.
— Beau.
Ao ouvi-lo, o rapazote chamado Beau se virou.
— Oh, Seigneur Jésus! — murmurou Gaston.
Beau não falara muito até agora, e uma explicação bastante razoável fora dada. Beau não tinha mais boca. Toda a frente de seu rosto, o nariz e parte da bochecha direita era um destroço. Carne triturada e ossos. Seus olhos, meio ocultos pela cartola eram opacos.
— Ah, Beau... — disse Antler num tom desolado.
— Aaste-ze di meeem!
— Oh, meu doce Beau! Eu sinto...
— Você fez isso. — Emile Gaston falava num fiapo de voz. — Eu me lembro agora, patife!
Gaston levou a mão ao centro do peito de seu casaco caríssimo. A água ainda o empapava, mas havia mais... Uma dor, de repente, pareceu tomá-lo, fazendo-o curvar-se.
— Atirou em nós, Munro!
— Você iria tomá-lo de mim! Ficar com meu querido Beau.
Gaston rasgou a frente do traje e viu o pequeno buraco de bala.
— Eu o amava!
— Matou-nos.
A cabeça de Antler pesava mais que nunca, seus pés perdendo o contato com o chão. Uma marca surgia em seu pescoço.
— Foi. Mas não num barco. Eu os flagrei em minha casa. Mas claro que isso não significa nada para o barqueiro.
— Estamos mortos! — Gaston se desesperava. — Mas e você, Fils de pute?!
— Eu? Estou bem ali. Vê?
Gaston olhou para onde Beau não parava de fitar. O canto poeirento do depósito de óleo do farol era agora um quarto rústico, mas bem organizado.
— Mon Dieu!
Sobre a cama com dossel, estavam Beau e Gaston, aparentemente prestes a se despirem quando foram flagrados e mortos.
E no armário do quarto, Antler, a pistola caída a seus pés, balançava com um cinto passado ao redor do pescoço.
Beau chorava; Gaston, o sedutor, arrancava os cabelos, e Antler, o traído, sorria. Já compreendia que teria de se acostumar com aqueles dois, para sempre, em seu canto abandonado do limbo.
Lugar adequado para o esquecimento, pensou.
Quantas almas habitavam aquele farol? Só o Barqueiro saberia. E ele não falava muito. Seu trabalho era conduzir os mortos, não se pronunciar.
Obrigado pela leitura!
Não é apenas porque vale a pena ler, mas o quanto essa narrativa nos envolve, dando-nos de muito fervor, pudor dramático no intrincado enredo, pavor, desespero e angústia. Um pesadelo a ser explorado, literalmente experienciado.
Quando se trata do Wesley, só o que posso fazer é recomendar. É um autor pra se seguir de perto, porque ainda [assim espero de coração] será alguém que iremos ouvir muito!! Mais uma vez ele tras a condição humana, os preconceitos velados do protagonista, as fraquezas e as consequências de nossos atos de forma incrivelmente crua, um soco no estômago. Bem escrito, bem pensado e conduzido, é mais um conto que vou guardar com carinho [e medo] kkkkk
Sempre excepcional na arte de chocar e surpreender, mais uma vez Wesley mostra numa curta narrativa porque é, pra mim, um dos maiores contadores de histórias da atualidade!
Selo de qualidade indiscutível de Wesley Deniel. Não tem como entrar de boa e não sair perpudada das histórias dele!! É nosso monstro do terror!!!
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