Hanzo Hashima não conseguia respirar. Despertou sentindo-se sufocado em seu catre, as mãos agarrando a garganta num gesto inconsciente, como se tentasse se livrar de alguém que o estivesse estrangulando.
Quando fora se deitar, no começo da noite, o ar estava pesado, com aquele fedor sulfuroso que nunca ia embora, mas era respirável. Agora Hanzo seria capaz de implorar por aquele mau cheiro. Sua cabeça doía; se seu corpo não tivesse se encarregado de acordá-lo, talvez não houvesse uma história a ser contada aqui.
Tateou, desesperado, a mesinha toda embolorada junto à cabeceira, em busca de sua máscara de gás. Seus olhos ardiam e, por um momento, fora tomado pelo pavor de não se lembrar quando havia abastecido o cilindro de oxigênio pela última vez no pequeno hospital. Teria sido na tarde anterior?
Era o lugar. Mexia com sua mente. Tinha a memória fraca e vinha notando que ela se deteriorava a cada dia, mas aquele seria um erro terrível, um que podia custar sua vida.
Enfim sentiu o desagradável metal gelado que conectava sua máscara ao tubo meio carcomido que ia até o cilindro. Meteu-a no rosto, girou uma válvula e, graças a Fujin, o ar puro invadiu seus pulmões.
Bendizendo todos os deuses, respirou fundo até que sua mente se desanuviasse. Então sentou-se no catre e passou a pensar no que teria falhado: seus filtros? O velho gerador? Os próprios miolos, que o permitiram adormecer sem ter checado os equipamentos?
É bem possível, pensou, ajustando as correias da máscara na nuca. E se foi isso? O que esquecerei numa próxima vez?
Ergueu o tanque de oxigênio que metera numa bolsa velha, com um protesto de suas costas e saiu. As luzes, abençoada fosse Amaterasu, se acenderam quando alcançou o interruptor. Hanzo subiu devagar a escada e destravou a pesada escotilha de aço.
Na superfície, o silêncio era perturbador. Não havia um só grilo cricrilando ou coruja piando; somente o vento sacudindo os galhos secos da floresta morta.
O sono passara completamente. A ideia de esperar até o amanhecer para checar o suporte de vida era inconcebível. Após uma minuciosa revisão (deveria tê-la feito antes, a mente insistia em censurá-lo), viu o problema: um duto corroído na ventilação. Mais tarde, visitaria a cidade, atrás de materiais.
Quando tomou a trilha no sopé da pequena colina, o dia já raiava. Outro dia cinzento numa vida sem maiores propósitos que não fosse sobreviver.
Hanzo achou que não faria mal ir antes até a praia, ver se seu sinal de S.O.S, feito com pedras vulcânicas, continuava intacto.
A fogueira deve ter-se apagado. Se é que a acendi.
De fato, Hanzo sequer havia feito uma. A madeira reunida jazia empilhada junto às árvores retorcidas. Mas o pedido de socorro ao menos permanecia lá.
Tão inútil quanto uma carroça sem bois, imaginou. Quem você espera que veja isso? A névoa que se espalhava muito acima da praia em fumarolas rodopiantes, cobria tudo. A ilha não era mais que um borrão, em toda direção por onde olhava.
Hanzo fitou o velho barco coberto de líquens, tombado no final do ancoradouro. Quantas vezes seus nervos arruinados não o tinham impelido a simplesmente lançá-lo à agua e tentar a sorte com o mar?
Vá embora. Ao menos morra com um pouco de honra, tentando.
Certo. Até onde poderia chegar, o nevoeiro toldando sua visão não muito além de seis ou sete metros adiante?
Até as escarpas, com um pouco de sorte. Os fantasmas escuros de um sem número de embarcações, com cascos fendidos pelas rochas riam dele. Ou era o que sua cabeça lhe dizia.
Havia quanto tempo que não via o sol? Aliás, outras ótimas questões eram quando e como chegara ali.
Quando você morreu, sussurrou a vozinha da loucura lá no fundo de suas engrenagens. Hanzo enxotou-a como a um mosquito.
Que, por sinal, também não existem aqui, já reparou, Hanzo?
Reparara, sim, é claro. Nada vivia ali, com excessão (supostamente) dele. Subiu o caminho de volta de cabeça baixa, sem se deixar levar por pensamentos extravagantes. A fome agora era maior que eles.
Hanzo passou pelo trieiro que ia até a boca de concreto do bunker. Era hora de fazer compras.
A vila ficava a uns dez minutos de seu refúgio, e, inexplicavelmente, tinha sempre o que oferecer, como se tivesse sido abandonada há um ou dois dias. A não ser, lógico, por um calendário que vira certo dia, no mercado de peixes, e que tinha o ano de 1945 estampado sob uma fotografia manchada do venerável imperador Hirohito, sentado atrás de uma mesa com o mapa mundi tomado por miniaturas bélicas.
Hanzo evitava passar pela loja. Se seus cálculos não o enganassem, 1945 ficara num passado distante. Aquele maldito calendário estava errado! Tudo ali era terrivelmente errado. Miyake Jima era uma ilha amaldiçoada. Todos lá precisavam usar máscara, para começar. O monte Oyama, seu maior vulcão, expelia dióxido de enxofre regularmente por suas várias caldeiras há séculos.
Mas isso não impedia seus velhos moradores de permanecer aqui. Onde estão agora?
Olhou para o avião Mitsubishi A6 Zero, destroçado sobre o telhado de uma casa do outro lado da rua e estremeceu. Era outra coisa que sempre buscava evitar, ainda que não soubesse a razão.
— Sorte tudo estar vazio — disse ele para o avião. O som da própria voz soando de maneira estranha. Passava dias e dias sem falar. Se começasse a matraquear sozinho, seria outro passo rumo à insanidade.
Mas pensar loucuras o tempo todo, pode, certo?
— Calado!
Foi até a mercearia local e, outra vez, apanhou uma sacola de vime e pôs-se a enchê-la com garrafas de água e mantimentos enlatados. Nunca que se atreveria comer dos peixes ou frutas expostas àquele ar pestilento.
No bunker, preparou o arroz, abriu uma lata de atum e outra de cenouras em conserva. Pôs um disco de Tokkoutai Bushi, chamado "Vento Divino", que era como um hino de despedida dos pilotos kamikaze durante a Segunda Guerra, e que, por algum motivo o deixava emocionado sempre que o ouvia. Comeu devagar, murmurando sua melodia.
Estava satisfeito, o ar era limpo novamente. Tão puro que se permitiu acender um cigarro. Era feito a mão e fora encontrado em uma bonita caixa de laca. Havia parado de fumar no mundo antes da sepulcral Miyake Jima, mas agora já não fazia diferença. Iria morrer ali – se já não o estivesse –, então, que se danasse.
Terminou o cigarro, tossiu, deu um suspiro e foi contemplar sua corda na viga acima do fogareiro.
Enforcar-se não era uma maneira muito honrada de morrer, mas ele não possuía uma wakizashi nem um companheiro para decapitá-lo depois de esventrar-se, então a corda teria de servir.
Colocou a no pescoço, sorriu com desdém de si próprio, olhou para a máscara de gás, enojado, e disse a ela que apodrecesse. Se tinha de partir, seria em seus termos, não envenenado aos poucos.
Deixou um dos pés pender de cima do banquinho... Parou. Tirou com raiva a corda do pescoço, colocou a odiosa Parafernalha no rosto, o cilindro nos ombros a tiracolo e foi para a praia.
A corda já devia estar gasta de tanto roçar em sua barba por cada vez que subira naquele banquinho e contemplara o fim.
Não pensou muito mais naquilo, só caminhou até o barco no cais, empurrou-o na água, encaixou seus remos e partiu, chorando.
Remou por horas, desviando-se das rochas, rumo ao grande vazio. Quando suas forças acabassem, se deitaria no chão do barquinho e dormiria. Que a morte o apanhasse nos sonhos, se quisesse.
— Venha me buscar — disse Hanzo entredentes. — VENHA! PARE COM SEUS JOGOS!
Logo a exaustão o fez largar os remos. Venha, venha...
Mirou o firmamento, desafiador. Para seu espanto, a cortina de névoas se abriu. Um olho... Por todos os deuses, por Buda, o que era aquilo?! Um olho, e depois outro, abriram-se no céu. Hanzo sentiu todo o mundo ser suspenso e o mar se agitar como numa tormenta.
— Feitiçaria! — gritou, sem deixar de encarar aquele assombro. — Eu não acredito em feitiçaria!
Mas parecia crer, sim, pois cobriu os olhos com as mãos quando tudo se agitou como no dia em que seus criadores voltariam para reclamar novamente o mundo.
Uma voz de trovão – ainda que de tom estranho (quase infantil) – se fez ouvir:
— Veja, Yuri... Acho que ele estava tentando fugir de novo!
— Bonitinho! — respondeu Yuri, a voz de um jovem que não escondia muito bem seu desinteresse.
Apesar do nome estrangeiro do rapaz que agora também surgia no céu, Hanzo podia entendê-los.
— Nunca me canso de observar este aqui.
— Deixe-o quieto.
— Ah, tudo bem... Vamos reiniciar.
— Boa ideia — disse Yuri. — Volte ele na prateleira antes que o vovô te pegue brincando com seus globos, Katioska.
A entidade chamada Katioska afastou os olhos e Hanzo viu claramente o semblante curioso de uma menina sapeca.
— Ei... Quem são vocês?! — gritava Hanzo Hashima, pasmo, sacudindo um remo em protesto contra o céu. — Que lugar é...
Então o mundo se apagou. As duas entidades se foram e o mar se acalmou.
Hanzo sentia-se tonto. Seu corpo foi ao chão e tudo deixou de ter importância.
Quando despertou, sabia Buda quanto tempo mais tarde, estava outra vez em seu catre, dentro do bunker onde talvez seria sua eterna morada.
— Não... NÃO! — mas as palavras se confundiam em sua mente e logo deixaram de ter significado.
Com um novo dia pela frente, o morador daquele estranho globo apanhou sua máscara de gás, o cilindro, e retomou a vida.
Ad aeternum.
Obrigado pela leitura!
Nem há muito o que dizer. É uma história de um dos grandes escritores de horror e sobrenatural da atualidade, um que não entendo como ainda não está por toda parte. Ou seja, satisfação garantida. Só o Wesley para dar certos nós nas nossas cabeças. Uma escrita prazerosa, muito bem feita e de nos deixar pensando um tempão depois sobre. Essa não podia ser diferente. Eu sempre o recomendo e sempre vou recomendar. É um monstro na escrita!
Sempre que venho até uma de suas histórias já venho preparado pra sair supreendido, e nunca falha: saio mais de boca aberta que esperava! Que talento, cara!! Essa história mesmo é de virar a mente de cabeça pra baixo. Parabéns!! Recomendo muito! 👏🏻👏🏻👏🏻
Não tem como nao ser fan de você Wesley! Que dominio em surpreender e me deixar boba com suas ideia e desfechos. Te recomendo pra todo mundo. É um talento selvagem no que faz. Tenha todo sucesso d mundo!!!
Quanto talento em uma história tão concisa, quanto estilo, uma escrita que domina e nos deixa sem nem saber o que pensar. Isso é talento puro!! Já estou recomendando! 👏🏻🙏🏻
Podemos manter o Inkspired gratuitamente exibindo anúncios para nossos visitantes. Por favor, apoie-nos colocando na lista de permissões ou desativando o AdBlocker (bloqueador de publicidade).
Depois de fazer isso, recarregue o site para continuar usando o Inkspired normalmente.