E houve grande comoção quando Deus se revelou. Por séculos, toda religião que se preza, profetizara Seu retorno. Mas não da maneira como ocorreu. Oh, não.
De início, o Todo-Poderoso não veio precedido por um coro de anjos a trombetear nem montado em uma nuvem, de túnica alva e uma hirsuta barba grisalha. Na verdade, Ele se apresentou a nós como um homem comum.
Sua aparência fazia lembrar Jesus. Não o clássico, inventado sob uma deturpada visão do que gostariam que fosse, mas o Jesus de Nazaré que podia muito bem ter vivido na árida e inclemente Galileia. A pele um tanto curtida, morena e cabelo basto e desgrenhado.
Escolheu uma maneira bastante... prosaica, para espalhar ao mundo Sua mensagem: um programa de TV. Jimmy Kimmel fora o escolhido, e, que decisão foi aquela!
Deus queria que o mundo O visse, mas não de supetão. E, para isso, a ABC passou semanas desde que foram contatados pela assessoria do Senhor, alardeando o evento de forma que deixaria o insuperável Super Bowl tão pequeno quanto a quermesse de uma humilde paróquia.
Vocês podem se perguntar: E quem era o assessor do Todo-Poderoso? A resposta é: ninguém sabia. Apenas um peixe grande, um dos homens no comando do que vemos ou não, conversara com o Enviado, e esse se recusava a sequer comentar de seu... convidado.
"Querem ver Deus?", respondera um de seus porta-vozes à uma revista quando tentaram sondá-lo. "Assistam ao show."
A revelação de Deus ao homem era o que faltava para que fanáticos se jactassem por toda parte, com seus cartazes e discursos triunfantes de "quem eram os birutas agora?" e a quem Deus recompensaria e quais seriam os enviados para o inferno por terem duvidado.
Não houve religião que não desse seu pitaco ou então reinvidicasse ao Senhor para si. "É conosco que Ele escolherá ficar!", diziam com peitos estufados os batistas, silós, muçulmanos, hinduístas, budistas, adventistas e, claro, os católicos.
Todos rejubilavam-se em pedante antecipação, e nunca houve tanto dinheiro feito em Seu nome, numa verdadeira conflagração espiritual de eventos, palestras e cursos para como se portarem diante de Deus, tendas de reavivamento, vendas e barganhas de lugares no Céu que – agora certamente viria! – Deus iria desvelar.
Histeria? Sem dúvida que houvera gente desesperada de sobra! Se um pecador pudesse se redimir ou um ateu decidisse se converter, aquele fora o momento. Milhões de almas podres e arrependidas gritavam a Deus para que os ouvissem e lhes perdoassem. Outros tantos davam cabo das próprias vidas, certos de que suas faltas eram indescritíveis e o preço cobrado seria alto.
A faminta cúpula dos executivos e lobistas da American Broadcasting Company e os showrunners que se contorciam em gozo por tamanha oportunidade, faltaram vender as próprias mães. De pacotes com os bastidores da produção (ou acham que não aproveitariam para elevar os preços da Assinatura Premium à estratosfera?) a bonecos de Deus nas mais divesas variações, foram comercializados à exaustão.
Estúdios de cinema disputavam no tapa quem teria os direitos à usar a imagem, voz e adaptar aquela que podia ser a obra máxima da Sétima Arte. Mel Gibson tivera um colapso nervoso e iria ver Deus de uma cama num balneário elegante (um sanatório, se preferirem) para figurões Hollywoodianos em Santa Clarita, após uma reunião com acionistas que escolheram a Robert Eggers para dirigir o filme que ele já planejava.
Evidentemente, muitos duvidaram da veracidade daquilo (Você não o faria também? Ora, vamos!), mas a descrença não impediria que eles também pagassem para ver.
Quando Deus fora chamado a vir se juntar a Kimmel – com o rufar de tambores costumeiro – metade do país viu um árabe, não muito bonito, entrar no palco e acenar para a plateia.
A bem da verdade, o público ali (talvez formado mais por céticos que crentes), no fim das contas, talvez fosse maior se Bono Vox, David Gilmour ou Stephen King fossem os convidados da noite no Talk-Show.
Mas aquilo iria mudar. Vocês nem fazem ideia.
Deus usava jeans e uma jaqueta de couro preto. Nada mais que o casual. Kimmel O medira de cima a baixo, apontando-Lhe os indicadores, aprovando o que via. A plateia também parecera gostar.
— Eu não estou muito certo de... o Senhor sabe... como proceder. — O apresentador recebera Deus de pé, mas perguntou se deveria ficar de joelhos ou se prostrar. Todo mundo riu a beça – inclusive Deus. — Definitivamente não é algo que costuma acontecer todo dia.
— Não é — concordou Deus. — E nem tornará a acontecer. Eu acho que um abraço já está ótimo.
— Bem, então aqui vou eu — disse o anfitrião. — Abraçar a Deus era algo que sempre quis fazer! Estava em primeiro lugar em minha lista.
— Fique à vontade, Kimmel.
— Oh, por favor, Senhor, só Jimmy já está ótimo!
Gargalhadas e aplausos.
Não havia como negar que, fosse o homem quem fosse, era simpático. Podia ser algum maluco (Jimmy já os entrevistara aos montes), mas o carisma estava lá, de sobra.
— O Senhor não tem o sotaque que eu esperava.
— E qual era?
— Algo... árabe, talvez?
Deus sorriu.
— Posso não ter para você. Mas o resto do mundo está me ouvindo como me imaginam falando. Cada um em sua língua.
Jimmy indicou o sofá e ofereceu a Deus uma bebida. Ele aceitou um copo d'água. Kimmel serviu-se de um uísque. Não devia querer fazer qualquer insulto ao criador, mas a expressão que deixava escapar de vez em quando por baixo daquele bom humor, era nervosa.
Uma vez instalados, o anfitrião o indagou de que "resto do mundo" Deus falava.
— Digo, é um programa bem visto, mas não creio que...
— Todos os lares no mundo estão nos vendo, Jimmy.
— E-Estão?
— Sim. Se não acredita, peça à sua equipe que acesse outros canais.
Jimmy não pediu, mas alguém nos bastidores o fez. No ponto em seu ouvido, uma voz disse a Kimmel: "Ele fala sério". A pessoa parecia ter visto a décima maravilha. "Não sei como está fazendo isso, mas todos os canais estão nos exibindo!"
O apresentador perdeu um pouco mais daquela irreverência. Antes de prosseguir, deu um gole nada sutil em sua bebida.
— Eu... — pigarreou. — Eu devo chamá-lo como? Javé? Jeová?
— Pode me chamar de Elvis, se for de seu agrado.
Uma nova onda de risos e aplausos se espalhou. Mas agora, algumas das risadas eram nervosas. Havia algo no sorriso de Deus, qualquer coisa desprovida de...
De quê? Bondade?
Outra vez, alguém informou algo a Jimmy em seu ponto. Disse-lhe que não só todos os canais no país os transmitiam, mas pelo mundo todo também. E a icônica tela de Times Square, a esquina da Broadway e o painel do edifício Barcelona Sant Joan, diversos prédios em Tóquio, na França, todos exibiam a Jimmy e seu convidado. "A cada minuto o número cresce! A fachada do Burj Khalifa os exibe!"
Sem conseguir disfarçar direito, o apresentador disse:
— Como está fazendo isso? É uma mega campanha publicitária? Olá! São vocês, Amazon?
Menos pessoas ainda sorriam.
— Não — respondeu Deus, dando outro sorriso brilhante. — Eu só quero que o máximo de pessoas possam nos ver.
Kimmel cobriu o microfone e disse ao homem que não detinha licença alguma sobre transmissões, senão as pré-acordadas com a emissora e seus patrocinadores.
— Jimmy... Esqueça isso. Posso ter nossa imagem exibida na lua, se quiser.
Ora, aquilo estava deixando de ser engraçado. A plateia também não sabia mais como reagir. Os risos se foram; todos se entreolhavam um tanto aturdidos.
— Você não é Deus! — As palavras saíram antes que Jimmy pudesse ponderá-las. — É algum, sei lá, bilionário saudita com senso de humor estranho. E não acho...
Entretanto, parou de falar quando viu sua plateia emudecida, olhos esbugalhados e bocas abertas. Ele mesmo quase caiu da poltrona ao notar que seu convidado passara a flutuar a mais de um metro acima do sofá.
— Vai querer me dizer que isto é algum truque de câmeras, ou de arames, como nos antigos filmes de Kung-Fu, Jimmy?
Pessoas gritavam no auditório. Na primeira fila, uma senhora obesa e com óculos de armação imensa, desmaiou.
— Pare! — pediu o apresentador, mas ninguém o ouvia mais, ou se ouviam, não podiam parar o que estava em curso.
— Jimmy... Ei, Jimmy — Deus fez um gesto cômico de passar a mão diante os olhos do anfitrião, daí estalou os dedos. — É tão difícil assim acreditar?
— Você não pode ser Deus!
— Sim, eu posso. Por que não nos levantamos — sugeriu o convidado e pousou de novo no sofá, leve e sutil como um dente-de-leão — e vamos todos lá para fora. Posso te mostrar bem mais que isso.
— Não podemos...
Algo estranho no olhar de Deus calou o apresentador. Kimmel apenas se levantou da poltrona e saiu do palco, indo para os bastidores. Deus o seguiu.
— Lá fora! — gritou algum diretor, quase num gemido. — Filmem os dois. Kimmel está indo para fora.
Umclose no convidado, mais sem querer que qualquer outra coisa, já que o operador de câmera saíra correndo e gritando ao flagar a cena, revelava que Deus, tranquilo feito um homem indo ao banheiro, não andava atrás de Kimmel, mas deslizava suavemente centímetros acima do piso.
Parecia ao mesmo tempo com um truque barato e efeito especial de ponta, por estarem ao vivo. Nem a equipe gráfica de Peter Jackson teria calibre para aquilo.
Ao saírem, uma multidão já podia ser vista, estacada feito uma horda de zumbis. Todos olhando para o céu. Jimmy também olhou. Não precisou procurar um ponto específico: a coisa cobria todo o firmamento.
— Meu Deus!
— Estou bem aqui, Jimmy.
Kimmel baixou o olhar e viu que o homem que estampava o mundo, como uma lona de circo cósmica, estava mesmo ao seu lado, sem gozação. Sua bexiga e intestino cederam.
— E então?
Agora, sim, Jimmy se prostrou aos pés do Senhor.
— Co-Como é possível?!
— Isso não importa. Tudo o que devem conhecer é a mensagem. — disse Deus.
Durante aquele tempo, o mundo parou. Não houve uma morte ou desentendimento. Todos eram, pela primeira vez na história, um só povo, admirando o céu vivo.
— Viu o que posso fazer?
— Sim, meu Deus!
— E eu não sou mais que um mero Mensageiro, uma... digamos, espécie de inteligência criada por Eles.
— Eles? — Kimmel parecia ter regredido à infância.
— Os verdadeiros Deuses. Os Grandes Antigos.
O apresentador cruzou os dedos em um estranho sinal, sem saber o que fazia, e disse:
— Eu os saúdo! Ouço as flautas e os saúdo. — Chorava e tremia.
— Em breve, Eles virão. Os que nos criaram para servir, e exigem que este mundo esteja pronto, ou que seja obliterado da existência.
— E aqueles que dormem? — Kimmel falava como num sonho, o olhar vidrado.
— Ah! Eles também despertarão e emergirão de suas moradas eternas.
— Venit tempus Azathoth. Veni! Ia Ia, Azathoth! — entoou Jimmy Kimmel, arrebatado.
— Sim. — O homem que dissera ser o deus daquele mundo, parecia satisfeito. — Ele aguarda sonhando.
— As estrelas...
— Sim, Jimmy. Do infinito, além das estrelas, Eles virão. E Eles têm fome.
Ainda que Kimmel não desse conta, à sua volta, todos entoavam o ancestral dístico do deus primordial. De novo e de novo. Pelo mundo todo.
Venit tempus Azathoth. Veni! Ia Ia, Azathoth!
Venit tempus Azathoth. Veni! Ia Ia, Azathoth!
— Adorá-los, Jimmy, é o que vocês devem fazer. Eu assim o ordeno.
Os que despertaram, por alguma razão, daquele sinistro transe, se desesperaram quando viram Deus se transfigurar em algo indescritível. Aqueles, morriam antes de caírem por terra; outros arrancavam os próprios olhos e rostos, ao berros. Jimmy se foi de vez, e o que restou dele, ali de pé, era uma casca vazia.
— A mensagem lhes foi entregue. O início do fim, chegou. — Eram palavras de um deus maligno, que se contorcia e não mais ocultava o sorriso de prazer, o rosto desfazendo-se e se reconstruindo em formas medonhas.
Então, em meio ao caos das massas, o deus arauto desapareceu. Ressurgiu não muito longe, no banco traseiro de uma limusine, onde um homem negro, careca e de traços egípcios esperava por ele. Usava um terno amarelo e não dissera nada.
Pai, Filho e Espírito (nada santo), desmanchou-se como plástico derretido e escorreu de volta para o Homem de Amarelo, tornando-se parte dele outra vez.
— Vamos — ordenou o egípcio ao motorista, que não passava de uma sombra disforme. — Já cumprimos nossa tarefa. Não faço questão de estar aqui quando tudo ruir. É sempre enfadonho.
Todos que ansiavam por Deus, agora teriam tantos quanto mereciam. As flautas cessariam, e Azathoth, o deus idiota, no centro da existência, enfim despertaria.
Obrigado pela leitura!
"Deus Exvetus" possui uma premissa cativante e reflexões filosóficas interessantes sobre o papel da tecnologia no futuro da humanidade. O personagem principal é bem construído e sua jornada em busca de respostas é convincente. Embora alguns momentos da história sejam previsíveis, a narrativa é envolvente e agradará e muito aos fãs de ficção científica. Recomendadíssimo!
Mais uma vez o autor supreende ao mostrar a imensidão do poder dos deuses antigos. Nesse conto, descobresse que o próprio Deus é uma simples inteligência artificial, um avatar dos grandes antigos. Terror cósmico é um gênero incrível que deveria ter muito mais reconhecimento. Tenho orgulho de saber que temos um gigante no terror brasileiro que retrata sempre tão bem o tema!! Recomendo muito!!
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