victor-hugo Victor Hugo

"Eles prometeram tanta coisa um para o outro. Mas então vieram os filhos, o trabalho e as contas. E tudo o que eles fizeram... Foi apenas existir."


Drama Impróprio para crianças menores de 13 anos.

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Capítulo Único

Murilo mal deixa o casaco na cama e já pode sentir o mau-humor de Carolina emanando pela casa. É por isso que não se surpreende quando vê a mulher – e, aqui, a palavra não se refere apenas ao gênero de uma pessoa, mas também ao seu estado de cônjuge – de braços cruzados, no sofá.

Os olhos dela estão avermelhados, ele percebe.

— Aconteceu alguma coisa?

— Eu estou bem – ela responde, mas sua voz não consegue esconder que ela está mentindo.

Murilo se senta ao lado dela. Ela se contrai um pouco quando ele se aproxima.

— Foi alguma coisa com os meninos?

Carolina torce o nariz.

— Eu só estou cansada.

— Cansada?

— Você não entenderia.

— Você pode tentar.

A resposta de Carolina demora a chegar.

— Como foi o seu dia?

— Você quer mesmo perguntar sobre o meu trabalho?

— Você não vai me responder que não aconteceu nada demais, não é?

— Mas não aconteceu.

Os ombros de Carolina sobem e descem antes de ela dizer algo.

— Ah, mas é claro que não.

— Ahn... Tem algum problema com isso?

— Com nunca acontecer nada?

Murilo levanta as sobrancelhas.

— É com isso que você está chateada? Com o meu emprego?

— Você não está?

— Ele me dá dinheiro. É isso que importa.

Carolina volta a suspirar.

— O salário é horrível.

— O que eu posso fazer? Pedir demissão? Porque a gente tem filhos...

— Três.

Murilo demora para responder.

— Carolina? Você tá bem?

Ela suspira.

— Eu sinto falta das nossas viagens.

— Das nossas viagens?

— Você se lembra daquela vez em Porto Seguro? Não fazia nem dois anos que nós estávamos casados, mas tudo o que nós fizemos... Deus, nós acampamos na praia, Murilo!

— Toda aquela areia demorou anos para sair do meu corpo – ele comenta.

— E as marcas de batom também, não é?

Murilo deixa escapar uma espécie de sorriso bobo, mais para Carolina que para si mesmo.

— Você não sente falta disso?

Murilo demora para responder.

— Então... hum... É disso que se trata? Você acha que eu não passo tempo suficiente em casa?

— Eu acho que eu passo tempo demais em casa.

Agora é Murilo que suspira. Esse é o jeito que ele arruma de conseguir tempo para formular sua resposta.

— O que você quer dizer com isso?

— Eu sinto falta do meu emprego, de ter alguma coisa pra fazer.

— Carolina... Você sabe que...

— É, é, nós conversamos sobre isso na época e a gente concordou que era melhor eu ficar em casa e que o seu salário podia melhorar, mas... Não melhorou, não é? E agora as crianças já estão maiores...

— Você não estava costurando?

Carolina solta uma espécie de muxoxo.

— Ah. Claro. Costura. Não é bem assim que eu queria passar o resto da minha vida.

— Você...

— Além disso, onde estão todas aquelas coisas que a gente dizia que ia ter? Uma casa maior, com um quarto pra cada um, com um espaço para você jogar sinuca e um ateliê para mim....

— Um ateliê? Você ainda quer isso?

— E sofás maiores. E uma cozinha planejada. E uma estante de livros. Daquelas enormes, como a de uma biblioteca... Eu sempre disse que queria uma e você me prometeu que eu teria, lembra?

— Eu não acho que isso seja possível...

— E eu acho... Eu não sei... Ás vezes eu acho que a gente só não está fazendo as coisas do jeito certo, sabe? Quer dizer, eu nunca imaginei que, quase nos quarenta, seria assim que eu estaria.

— Carolina...

— Você lembra de todas as coisas que eu costumava fazer? Desenhar, dançar, até mesmo os protestos... Você lembra deles?

— Eu não acho que você sente falta de todo aquele tumulto.

— Bem, certamente não, mas... Era divertido, não era? Era como se nós tivéssemos um propósito no meio disso tudo. Como se fossemos parte de algo maior. Mas olhe só para nós agora.

— O que isso quer dizer?

— Ás vezes, eu sinto como se eu não estivesse vivendo, mas apenas existindo.

É silêncio que se segue às palavras dela.

— Só não é assim que eu imaginei que eu estaria. Nós prometemos mudar o mundo, Murilo, mas olhe só para a gente, hoje...

— Como nossos pais.

— Exatamente. Como nossos pais. Sempre preocupados com as crianças ou com o trabalho ou com as contas para pagar, mas... E a gente? E você? Quanto tempo faz que você não sai para beber?

— Você nunca gostou que eu saísse pra beber – há uma pontada de divertimento nas palavras dele, como se ele estivesse tentando fazer uma piada, mas ela não se sobressaí do tom melancólico também presente ali.

— Eu não gostava que você fizesse isso todo dia, mas também não gosto que você não faça isso nunca. A gente também precisa se divertir, não é?

Mais uma vez, há silêncio.

— Você sabe de uma coisa, Carolina? – Murilo chama, por fim.

Carolina ergue o olhar como resposta.

— Eu acho que ia ser uma boa ideia a gente passar um tempo na praia, o que acha?

Os braços de Carolina ainda estão cruzados, mas, nesse momento, ela não consegue evitar que um sorriso escape por entre os seus lábios.

No meio de toda essa bagunça, ela tem que admitir que um sorriso é bom.

3 de Março de 2018 às 23:44 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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