asheviere Marianna Ramalho

Por ter roubado o fogo dos deuses, o castigo de Prometheu deveria ser infinito. Ainda hoje o titã sofre a sua pena.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#Fantasia #Mitologia #Mitologia grega #Suicídio
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Castigo

A cidade de Nova Iorque era uma bela vista do topo do edifício Empire State. Ficava ainda mais bela durante a noite, quando suas luzes se acendiam, tornando a cidade mais viva até do que o Monte Olimpo. Àquela altura, todos os sons da cidade pareciam distantes, quase como se soassem de outra dimensão, uma que não poderia perturbar ou atingir a observadora solitária no topo do prédio.

Aquela insignificante criatura… Nem sempre fora assim. Já estivera no topo do mundo, e até mais alto ainda! Assim como já vira o inferno, e sentira na pele as consequências de externar seus próprios demônios. Inclinou-se sobre o parapeito, olhando para as distantes criaturas, tão insignificantes quanto ela era. Vergonha…

Havia perdido toda a sua divina essência.

E as pessoas continuavam andando. Algumas nem mesmo sabiam a dimensão do ser que as observava do seu prédio histórico, outras logo irromperiam pelas portas, prontas para capturá-la, torturá-la, prendê-la, matá-la, para que enfim todo aquele jogo pudesse ser reiniciado, a fim de que perdesse mais uma vez.

E outra, e outra, e outra…

Mas aqueles na rua, eles não tinham nem ideia. Se preocupavam demais com suas próprias vidas, eram o centro de seus respectivos universos. Raça desprezível e traiçoeira… Mais uma vez seus olhos se encheram de lágrimas, e seu coração de amargura. Nada tiraria aquelas pessoas de seu ciclo. Nem mesmo quando seu corpo atingisse o chão, na frente de dezenas de pessoas. Seria apenas uma história que as testemunhas contariam para seus familiares, ao chegar em casa. Ninguém se importaria em saber o motivo da morte, e já estavam tão ligados a sua rotina, que não encontrariam o motivo se quisessem. Seria apenas mais uma morte que aquela raça causaria. E o pior: eles nem teriam consciência de sua culpa. Mas era contra eles que jogava, sendo sempre derrotada. Sua morte era sempre o fim da partida, mas logo outra começaria, outra que também iria perder.

E de novo morreria, e morreria, e morreria…

Seus algozes se aproximavam, ela sentia sua essência de longe. Aquelas miseráveis criaturas nada seriam sem sua ajuda, e agora se viam no direito de atormentá-la na eternidade. Era agora que devia quebrar o seu ciclo, ou perderia uma oportunidade que só voltaria anos depois. Apoiou-se com os braços e subiu no parapeito, inicialmente de joelhos, mas depois se ergueu sobre seus pés. A cidade noturna agora brilhava como uma fogueira. As chamas a engoliriam quando caísse? Ou seria fria e indiferente sua morte?

— Prometheu! — Ela virou o rosto, a tempo de ver um homem jovem entrar correndo no local. — Prometheu!

— Você é o único que ainda insiste em me chamar assim, Héracles… — Ela murmurou, mas sabia que ele estava ouvindo. — Sente prazer em me lembrar de minha vergonha?

— Por favor, não faça isso! — Ele estendeu a mão, com a face pálida de temor, o receio de que ela se jogasse. Não havia se aproximado, no entanto. Achava que se chegasse perto, ela pularia. Ao mesmo tempo estava certo e não estava. Ela pularia de qualquer maneira. — Desça! Venha comigo…

Uma risada sarcástica escapou dos lábios de Prometheu. A mulher se virou totalmente, ficando de costas para o abismo da cidade.

— Você acha que é fácil, não acha? Ridículo… Você não faz ideia… — Cuspiu as palavras, entredentes.

— Você precisa parar de tomar essas decisões egoístas. — Héracles falou.

— Decisões egoístas? Você não sabe como é! — gritou, gesticulando energicamente. — Toda vez que eu pisco, toda vez que abro os olhos… Eu estou em um corpo diferente, em uma época diferente! E eles… — Estendeu o braço para a a cidade. — Eles ficam vindo, me caçando, em seu jogo sádico… Sempre condenada a morrer, para alimentar seu ego estúpido.

— Você não precisa encarar isto só! Mas não desista de novo! Não é só a você que diz respeito… Ou esqueceu que esta maldição também é minha? — Ele arriscou se aproximar dois passos, mas parou quando a mulher ameaçou se jogar.

— Não fui eu que te coloquei aqui! Seu pai não exitou em amaldiçoá-lo junto!

— Não fale besteiras… — Ele abaixou o tom.

— O que? E por que? — Debochou. — Eu me arrependi há muito tempo, mas nada mudou. — Ela caminhou de costas, se afastando. Não na direção do abismo, mas linearmente sobre o parapeito. — Eu reconheci meu erro, Héracles! Mas ele não retirou a maldição! Sabe por que? — Ela virou-se para a cidade, colocando as mãos em concha ao lado da boca, e gritou: — Porque Zeus está morto!

— Cale-se! — Héracles pediu, se aproximando mais.

— Por que deveria? Depois de tudo, você ainda o teme… Esqueça-o! Está morto como os outros! Seus salões estão vazios e seus tronos de pedra viraram poeira! Desde que a humanidade os abandonou por seus novos deuses egoístas e gananciosos, que os representam mais fielmente do que os antigos. — A mulher se agachou para que seu rosto ficasse mais ao nível do de Héracles. — Somos os últimos que sobraram. Condenados a essa… vida miserável. — Héracles podia ver as lágrimas nos olhos dela.

— Nós vamos quebrar o ciclo, nós vamos romper a maldição, você só tem que ficar aqui…

— Você tem o poder de acabar com a maldição. De me libertar, de nos libertar… — Prometheu concordou, mas diminuiu o tom de voz para o que seria quase um sussurro. — Mas você não tem ideia de como fazer isso.

Héracles agarrou-a pelo pulso.

— Pense bem, por favor. Quando acaba com a sua vida, está burlando os termos. Estará me condenando também. Você já fez isso antes, veja quanto tempo demorou para voltar!

— Não foi tempo suficiente. Tente você me entender, pelo menos dessa vez. Sempre um novo corpo, nova época, nova família. Então eu paro e penso: “Dessa vez terei mais tempo. Dessa vez eu posso viver um pouco.” Nunca me deixam nem respirar. Tenho que deixá-los, ou eles me deixam, ou são tirados de mim… Eu estou enlouquecendo, Héracles, eu sinto isso dentro de mim! Minha alma está apodrecendo. Somos os restos de um conjunto há muito extinto, nos agarramos à vida já bem além de nosso tempo. Não é culpa nossa. Eu estou sempre morrendo e voltando… Você não sabe o quanto isso dói! Quando eu desisto, mesmo que prolongue o jogo, não sinto tanta dor. — Ela piscou, virando o rosto. Sentia tanta vergonha, tanto ódio e desprezo. Há tanto tempo já não sentia coisas boas, que nem se incomodava mais com a amargura de seus pensamentos. Mas era a primeira vez que falava como se sentia. E era pior quando lembrava que Héracles nunca a entenderia. — E, é claro, temos você… apesar de achar que partilhamos um castigo, sua maldição é diferente. Os mortais me odeiam, Héracles. Depois de tudo o que fiz por eles. Você não sabe o que é ser caçado pelas pessoas por quem você deu literalmente tudo o que tinha! Eu roubei o fogo dos deuses… Eu permiti que tudo isso existisse! — Apontou para a cidade. — Zeus só precisou colocar uma recompensa um pouco maior. Eles não precisavam aceitar. Mas a ganância deles é totalmente desmedida. Em troca de uma pequena vantagem, eles esquecem tudo que você fez. E o mais engraçado é a criatividade dos mortais… — Ela ficou de pé, rindo com amargura. — “Amarrado a uma rocha, para que uma ave todo dia viesse lhe comer o fígado, que toda noite se regenerava, tornando o castigo infinito”. Será que não percebem que são eles a tal ave? É claro que percebem, mas não se importam. Tornam o meu castigo infinito e sentem prazer nisso.

— O mito diz que você se liberta. — Héracles tornou a tentar convencê-la. — “O castigo de Prometheu deveria ser infinito, mas foi interrompido pelo herói Hércules, ou Héracles, que quebrou as correntes e libertou o titã.”

— E você sempre tenta, você sempre aparece. Mas sempre chega tarde… — falou, com a voz carregada de tristeza.

— Não dessa vez.

— Sim. Dessa vez também. Você chegou tarde, Héracles, e ainda não sabe como quebrar nossas correntes.

— Eu descobrirei!

Ela sorriu serenamente. Sentia que seus perseguidores estavam quase ali. Talvez já estivessem até dentro do prédio.

— Então eu lhe conseguirei mais tempo. E quando eu voltar, esteja pronto para acabar com isso. Para sempre. — Ela olhou para baixo uma última vez. — Se eu tivesse a chance, mudaria tudo. Queria nunca ter lhes entregado o fogo.

As portas irromperam, liberando passagem para um grupo de homens e mulheres armados. Um apontou na direção deles. Outro acertou um tiro em Héracles, bem na cabeça. Ela não esboçou reação. Héracles não morreria de verdade. Horas depois o sangue da poça ao seu redor voltaria para o corpo e ele se regeneraria. Sua alma não passava pelo submundo, diferente da dela.

— Esteja pronto quando eu voltar. — Murmurou.

Os caçadores avançaram, mas ainda estavam na metade da distância quando a mulher se deixou cair para trás, despencando do topo do edifício Empire State. Abriu os braços e fechou os olhos, sentindo o vento acariciar seu corpo ridiculamente frágil. Era um mergulho para a morte, uma morte temporária, como sempre. Mas era o único momento em que sentia estar no controle de sua vida.

O impacto quebrou todos os seus ossos, e a morte foi instantânea. Aquele corpo estava destruído, era inútil. Mas voltaria em outro, como sempre voltava, para cumprir mais uma vez a sua pena e sua maldição.

Torcendo para que cada morte fosse a última. 

28 de Fevereiro de 2018 às 20:29 6 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Marianna Ramalho Também posto no Nyah, no Spirit e no Wattpad sob o nome de Jupiter L. Se houver interesse pela minha escrita de forma "integral", sugiro acompanhar pelo Nyah ou Inkspired. Nem todas as histórias são postadas no Spirit e no Wattpad.

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Gabriella Gabriella
Eita, como você escreve bem!! Eu amei demais o modo como você narrou a dor e o sofrimento de Prometheu, deu até uma ansiedade aqui lendo sobre as reencarnações hehehehe Gostei bastante :) sua escrita é tão equilibrada... Muito inspirador!
December 12, 2021, 15:59

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Olá! Que bom que gostou desse conto, eu não achei que ele ainda atrairia alguma atenção haha! Fico feliz que tenha gostado. Muito obrigada por ler! January 06, 2022, 01:54
Carlisle Petrycovisk Carlisle Petrycovisk
Eu jurava que já tinha lido esse texto no Spirit e parece que li mesmo! Aliás, favoritei lá. Amei demais e reli só para amar de novo.
March 06, 2018, 18:06

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Hey, é mesmo! Acabei de ver aqui. Bom, se eu já fiquei feliz por você ter dedicado seu tempo a ler uma vez, imagine agora, que você leu duas vezes! MUITO obrigada por ler e comentar, fico muito feliz que tenha gostado, significa muito vindo de alguém com uma escrita que eu admiro. March 06, 2018, 20:05
Miss Salieri Miss Salieri
Nooossa, que história interessante! Adorei como você trabalhou o castigo de Prometheu, e inclusive o uso metafórico das correntes... LINDO =D
March 02, 2018, 15:31

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Obrigada! Fico muito feliz que tenha gostado, esse é o meu texto preferido entre os que já escrevi <3 Muito obrigada por ler e comentar <3 March 02, 2018, 16:04
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