renan_pereira Renan Pereira

Um jovem filho de dois seres mágicos improváveis está apaixonado pela atendente de uma loja de roupas de boneca, porém, ela só tem olhos para um espadachim alto e musculoso. Entre canecas de chope e uma conversa com um mago vendedor ambulante ele descobre um meio de conquistá-la, só não esperava pela confusão incendiária que causaria.


Fantasia Épico Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#conto #341 #32816 #humor #folclore
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Pietro Pranada e o abismo do bairro Sem Saída

Existia um bairro na cidade Pendurada onde todas as suas ruas não tinham saída. Elas terminavam em um abismo sombrio que ressoava um som gutural quando o vento passava por ele. As pessoas geralmente não escutavam esse som, ou pelo menos nem o percebiam mais. Nesse bairro habitado por várias raças de seres inteligentes, ou pelo menos quase isso, um sacichau, uma espécie de saci com leprechau, tomava cerveja em cima de um barril vazio no lado de fora de uma bodega.

Ele era filho de uma leprechau que tinha apenas uma perna, consequência de uma briga com um pinscher demoníaco das sombras, e de um saci que nasceu com duas pernas por algum erro no seu DNA mágico. O sacichau por sua vez nasceu com duas pernas bem saudáveis, porém, não herdara nenhum dos poderes de seus pais, ele não conseguia criar redemoinhos de vento e muito menos viajar dentro de um, nem ao menos conseguia beber sem ficar bêbado como a sua mãe. Mas ele tinha dúvidas se este último era realmente um poder, pois todos os bêbados que ele conhecia diziam que nunca estavam bêbados, incluindo sua mãe.

O sacichau se chamava Pietro Pranada e era da altura dos joelhos dos humanos medianos de Hy-Brasil. Tinha uma barriga saliente que lhe impedia de abotoar as pequenas calças, as quais ele comprava em uma loja de bonecas de pano. Aliás, todas as suas vestes eram compradas na tal loja, pois a atendente Judite Coisalinda sempre lhe tratava bem e com gentileza, fazendo com que Pietro se apaixonasse por ela, uma descendente de elfo alta e muito bela.

Os elfos ao chegarem em Hy-Brasil séculos atrás, encantaram-se com as mulheres nativas que viviam aqui e inevitavelmente se envolveram com elas. Quando Hy-Brasil acabou desaparecendo no meio do mar tenebroso, os elfos ficaram loucos, pois perceberam que iriam passar a vida inteira deles naquela ilha esquisita e teriam de assumir seus filhos. Então lançaram-se ao mar à procura de encontrar as suas terras novamente e nunca mais foram vistos desde então, deixando para trás muitas mulheres grávidas e algumas dívidas.

O que estava acabando com Pietro, era o fato de Judite não querer nada com um sacichau baixinho e sem poderes. Ela e suas amigas sempre saiam nos bailes da região com guerreiros valentes, musculosos e altos, bem altos. O que partia ainda mais o coração de galinha de Pietro Pranada. Naquele dia em específico ele estava desolado, havia presenciado o pedido de namoro que um jovem espadachim de pele negra e besuntada, havia feito para Judite Coisalinda. Ao ver a moça aceitando o pedido e dando um beijo demorado na boca carnuda do guerreiro, Pietro caiu por terra.

Após chorar copiosamente no banheiro para seres abaixo de um metro, em uma bodega de uma esquina qualquer, ele foi até o balcão e pediu logo duas canecas de chope, uma delas esquentou enquanto ele entornava demoradamente a outra, mas ele a bebeu mesmo assim. O chope amargo e quente não era pior do que a dor do amor não correspondido. Pietro Pranada, enquanto bebia no lado de fora da bodega, observava com certo ódio o cotidiano do bairro Sem Saída. Tanta gente feliz andando de um lado para o outro, ignorando o sofrimento alheio. Nesse momento o som gutural do fosso que contornava o bairro ressoou ao longe e o jovem sacichau olhou de canto para o final da rua onde estava.

Ele viu o horizonte além do abismo, cercado de montanhas verdejantes e nuvens estupidamente belas, fazendo um contraste com a cor rubra-acinzentada do abismo medonho. Uma voz lúgubre entoou em sua mente.

“Venha até mim! Lhe darei o que deseja.”

Obviamente, Pietro que até então estava desesperado pelo amor de Judite, correu na direção oposta à do abismo. Seu amor por Judite Coisalinda era grande, mas não a ponto de aceitar convites de vozes sepulcrais para obtê-lo, foi então que um camelô atravessou a frente do pequeno ser que agitava suas perninhas apressadas pela rua movimentada. O sacichau que olhava assustado para trás bateu-se na pata traseira do cavalo que puxava a carroça do vendedor, que freou arrastando as rodas do veículo.

— Cuidado aí o duende esquisito! — Berrou o homem de cima do veículo.

— Perdão senhor! Eu não notei sua carroça. — Disse Pietro.

— Se continuar assim vai acabar não notando mais nada na vida. — O homem balbuciou e continuou. — Digo, é claro que isso não aconteceria, pois vocês duendes são como pragas. Nunca morrem.

— Não sou um duende senhor! Sou filho de um saci e uma leprechau. — Pietro levantou-se e tirou a poeira das vestes.

— Que coisa estranha. —Disse o vendedor.

— Obrigado pelo elogio. — Pietro fez uma reverência irônica.

— Não que não existam coisas mais estranhas nessa ilha, mas é que nunca tinha visto uma coisa como você — O vendedor tentou consertar em vão.

— Não se preocupe com isso senhor, eu só estava de passagem, com sua licença. — O jovem Pietro despediu-se erguendo a pequena boina em sua cabeça e passou por debaixo da carroça.

—Está de passagem de um bar pra outro pelo visto. — O homem que segurava as rédeas esperava o sacichau sair do outro lado.

— Como disse? — Pietro aparecia do outro lado da carroça levantando a cabeça.

—Olha seu estado garoto! Está um trapo só. — O homem ajeitou a carroça na beira da calçada e desceu. — Eu já vi este rosto antes, não importa de qual raça você seja, essa cara é sempre a mesma. É um amor não correspondido, não é?

— Bem, não ... —Pietro ficou um tanto consternado com a forma incisiva do vendedor.

— Ora, deixa de ser turrão. Todo mundo chora por amor meu jovem ou já chorou algum dia. — O vendedor que vestia um colete verde, e nele estava escrito em um bordado roxo “Muambas do Tan...”, O restante do bordado aparentemente havia se desfeito a muito tempo. — Você ainda é jovem, tem muito o que viver e aprender, mas vê-lo assim me deixa angustiado, venha cá tenho algo que pode lhe ajudar.

— Não senhor eu não tenho dinheiro, obrigado! — Pietro que até agora não havia se desvencilhado do hipnótico palavreado do vendedor, recuou e prosseguiu a caminhada.

— Ei moleque! Quem disse que irei te cobrar? —Disse o vendedor. —É uma amostra grátis! Se gostar, estarei aqui por mais uns dias. — Ele tira de dentro de uma caixa, na parte detrás da carroça, um pequeno frasco preso a um barbante.

O pobre sacichau parou de andar, demonstrando certo interesse.

—Aqui está! Um gole disso e sua amada estará em seus braços até o fim do dia, porém é preciso uma dose maior para que o encanto seja permanente. — Disse o vendedor sorridente — Vamos pegue, não custa nada amigo, se gostar podemos negociar.

— Não! Obrigado senhor. — Disse Pietro dando meia volta.

— Só não vá cair na tentação de escutar a voz na sua cabeça. — O vendedor acenou levemente e voltou-se para a caixa de onde tirou o frasco.

— O que disse? — Pietro havia parado novamente.

— Pra não aceitar o convite da voz em sua cabeça.

— Como sabe disso? Você também ouviu?

— Não jovem lepre... Saccc... como devo lhe chamar? —Disse o vendedor fazendo um teatrinho forçado.

— Me chamo Pietro Pranada.

— Pranada, esse sobrenome não me é estranho. — O vendedor refletiu por um instante. — Enfim, existe uma lenda muito antiga aqui na cidade pendurada, me admira não conhecer.

— Lendas são histórias de gente velha! — Disse Pietro impaciente.

— De certa forma são mesmo, — riu o vendedor — porém, o que acabei de falar é um velho ditado daqui “Não dê ouvidos a voz em sua cabeça!”. Segundo o que os mais velhos contam, existe um dragão aprisionado em uma caverna lá embaixo no abismo e ele é capaz de realizar desejos em troca de algo de seu interesse.

— E o que tem a ver com a voz na minha cabeça?

— Dizem as más línguas que o senhor Elié Muirico, prendeu esse dragão lá embaixo a muito tempo e conseguiu suas várias fazendas de algodão e toda sua fortuna, fazendo um pedido ao dragão em troca da liberdade do mesmo.

— Deixa eu adivinhar, ele não o libertou e a voz que eu escuto é do dragão pedindo uma troca de favores? — Pietro era muito perspicaz quando o assunto era charadas.

— Exato, porém só escuta a tal voz quem tem um grande desejo, o qual a força com que é desejado é sentida nas profundezas do abismo pelo tal dragão. — O vendedor fez uma pausa dramática — E cá entre nós, ninguém é louco de querer libertar um dragão ou ficar em dívida com ele. Isso segundo a lenda, outra explicação para a voz na sua cabeça é que está perdendo a sanidade mesmo.

— Balela! —Pietro deu de ombros e continuou sua caminhada para lugar algum.

— Como queira meu jovem.

Foi nesse momento que Pietro viu a sua amada cavalgando em um imponente cavalo branco abraçada ao espadachim musculoso. Dois minutos depois, o sacichau corria pelas ruas de pedra com um pequeno frasco nas mãos, ele avistou o cavalo amarrado próximo a uma bodega que servia pastéis e vários tipos de bebidas. Judite e o espadachim estavam sentados em uma rústica mesa no lado de fora do estabelecimento. Pietro aproximou-se apressado, parou em frente ao casal encarando Judite, que o reconheceu e apenas acenou.

— Ah! Aí está o garçom com a minha dose de cachaça. — Disse o espadachim tirando com rapidez e agilidade o frasco da mão do pequeno sacichau.

Sem conseguir segurar o precioso frasco com suas mãozinhas, Pietro viu a poção do amor ser virada goela abaixo pelo seu rival. Judite de repente virou-se para o homem ao seu lado e pareceu derreter como gelo ao sol, estava feito, ela estava perdidamente apaixonada pelo espadachim e havia sido Pietro o causador daquilo tudo. Uma explosão de raiva tomou conta do pequeno moribundo e ele saiu esbravejando pela rua.

“Venha até mim! Lhe darei o que deseja.”

Pietro parou, mirou o final da rua, o abismo o chamava. Sentiu vontade correr na direção oposta, mas dessa vez estava muito bravo consigo mesmo, cerrou os punhos e foi em direção ao precipício. Um tempo depois Pietro estava descendo o carreiro que levava até a descida do paredão de pedra, o caminho era íngreme e estreito, por sorte Pietro era pequeno e tinha espaço o suficiente no carreiro.

Um bom tempo depois, o sacishau estava na frente da caverna que o vendedor lhe dissera. A voz do suposto dragão o havia guiado até ali, sentiu um frio na espinha ao ver a entrada da caverna escura e encarvoada. Ele entrou e à medida que caminhava, a frágil luz que chegava até o fundo do abismo se esvaía derrotada. Foi aí que ele esbarrou em algo, “uma rocha” pensou ele, mas a rocha deu uma baforada e dois grandes olhos amarelos brilharam no escuro iluminando o ambiente. O pequeno ser tremia como vara verde ao ver a cabeça grande do dragão erguer-se em meio a escuridão.

— Seja bem-vindo ao meu mausoléu Pietro Pranada, o sacichau. — Disse a voz gutural do réptil gigante na mente de Pietro.

— Obrigado! — Disse Pietro em voz alta, porém trêmula.

— Senti a força do seu desejo daqui e por isso o chamei, tenho um trato a lhe propor.

— Acredito que queira sua liberdade em troca do meu desejo! — Pietro engoliu em seco pensando ter sido um pouco rude.

— Está correto! Realizarei o que tanto deseja e em troca você me libertará.

— E se eu recusar?

— Vai virar carvão antes que chegue até o final da caverna.

—Como posso te libertar? — Disse Pietro o mais rápido possível, analisando as grossas correntes que prendiam o dragão ao chão.

— São correntes mágicas, só podem ser cortadas ou arrebentadas por um instrumento mágico e é justamente sobre isso que vou lhe falar. Você quer tanto o amor de um certo alguém, posso fazer com que ela se apaixone por você pelo resto da vida, porém, se ela não o ama agora, estará em eterno sofrimento por amar alguém contra a vontade. — Pietro escutava apreensivo — Se você a ama não vai querer vê-la sofrer.

— Não! — Pietro respondeu baixinho desviando o olhar.

— Mas posso dar-lhe algo para que possa conquistá-la. — O dragão estendeu a pata gigante com suas garras afiadas e nela havia uma faca prata com inscrições douradas — Essa é a Corta-vento, uma faca mágica forjada pelos anões de bombacha do sul. Ela pode cortar qualquer coisa que seu dono quiser, mas em mãos alheias é cega como uma pedra roliça de rio.

—E porque não a usou para escapar?

—Não sou o detentor de seu poder, apenas estou guardando-a. Ela só pode ser usada pelo dono e o mesmo já está morto a tempos. Mas dando-lhe de presente, ela terá um novo senhor e com ela você poderá se tornar um bravo guerreiro.

— Guerreiro?

—Sim, igual aos que sua amada tanto admira.

Pietro ficou pensativo, tentando decidir se deveria aceitar a proposta do dragão e pegar a faca ou ter o amor da amada sem precisar se tornar um guerreiro, porém, sabendo que ela iria sofrer por amá-lo.

— O que me diz? —Disse o gigante réptil.

—Eu aceito! —Disse Pietro um tanto relutante.

O dragão estendeu a pata e sob a luz fraca que emanava de seus olhos flamejantes, Pietro viu a faca mágica e a empunhou. A Corta-vento brilhou suas runas douradas por um breve momento. As correntes que prendiam o pescoço do dragão esticaram e o valente sacichau deferiu um pequeno golpe em uma das argolas, a faca cortou-a como se fosse manteiga e o dragão fez o resto arrebentando a corrente.

—Você é um sacichau honrado Pietro Pranada.

—O que vai fazer agora?

—Vou acertar algumas contas.

—Bem, então nos vemos por aí! —Disse Pietro temendo ser desintegrado, devorado ou esmagado pelo dragão.

—Não seria bom, pra você! — O dragão esticou as patas e começou a marchar para fora da caverna. —Lembre-se Pietro, nunca mais confie em dragão algum.

O grande réptil saiu pela entrada da caverna e Pietro pode ver melhor a figura amedrontadora com a qual acabara de ter conversado. O dragão esticou as asas e com um salto desapareceu da vista de Pietro. Logo em seguida o animal caiu desengonçado, muitos anos preso em uma caverna não era nada bom para um ser alado daquele tamanho. Então o dragão repetiu o movimento e conseguiu içar voo.

Ao chegar novamente à superfície cansado pela longa subida e assustado pela barulheira que escutava. Pietro viu ao longe a casa de campo de Elié Muirico e toda a sua plantação de algodão em chamas, várias casas do bairro também ardiam e caiam em brasas, enquanto as pessoas corriam desesperadas de um lado para outro. Um grupo de pessoas se reunia na praça e gritavam vivas ao jovem espadachim negro e musculoso que havia cravado sua espada na cabeça de um gigantesco dragão. Viu Judite Coisalinda abraçada com ele o enchendo de beijos.

—Que bela bagunça você fez moleque! —Disse o vendedor em sua carroça logo ali perto, observando o caos.

— Eu deveria ter lhe dado ouvidos, eu acho. —Disse Pietro com o olhar amedrontado.

— E eu achando que você estava ficando louco com suas vozes na cabeça.

— Quer saber de uma coisa? Eu não quero mais me arriscar ou ter como objetivo de vida a busca pelo amor de quem não me ama. Também não quero ser um guerreiro, já vivi emoções demais para uma vida agora a pouco. — Pietro virou-se para o vendedor — Qual é seu nome?

— Tanubur Gambar da Silva, um humilde mago vendedor ambulante, mas logo serei mago cozinheiro.

— Está indo para a escola Palmirine em Braga Mariana?

—Sim, vou estudar magia culinária, mas até lá tenho que me sustentar vendendo essas muambas.

— Tem alguma poção para que eu desperte os meus poderes de saci ou de leprechau? — Pietro estendeu a mão — Posso lhe pagar com essa faca.

Tanubur olhou, colocou a mão no queixo analisando a proposta e desceu da carroça.

—Podemos negociar!

Fim!

Curtiu a história? A Corta-vento aparece novamente no livro “A guilda dos andróginos malvestidos: Feitiços, espadas e bolos de cenoura.” Disponível em E-book na Amazon.com.

2 de Março de 2023 às 23:08 3 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Marcelo Farnési Marcelo Farnési
Orgânico. Inventivo. Inteligente e elegantemente fora da curva. O que , é lógico, é muito muito raro e bom! Parabéns!
March 03, 2023, 11:24

  • Renan Pereira Renan Pereira
    Muito obrigado pelo comentário, Marcelo! Fico feliz em saber que alguém gosta do meu estilo não muito convencional. March 07, 2023, 12:24
  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    É exatamente isso. Seu estilo. Seu D.N.A. Diferenciado e ousado. Parabéns! March 07, 2023, 13:01
~
A guilda dos andróginos malvestidos
A guilda dos andróginos malvestidos

A guilda dos andróginos malvestidos se passa em universo inspirado em lendas do mundo real, mais precisamente as histórias terão como cenário a ilha de Hy-Brasil, uma ilha fantástica que existiu apenas nos mapas das grandes navegações. Uma mistura de histórias medievais, lendas irlandesas (e da Europa em geral) e brasileiras, tendo sempre um tom satírico e bem humorado. Leia mais sobre A guilda dos andróginos malvestidos.

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