Naquele fim de tarde, a pequena e escura taberna estava enevoada de fumo de tabaco e as vozes tonitruantes de homens enchiam o espaço.
Por entre as mesas toscas de madeira, ladeadas de bancos corridos, o chão de lajes grosseiras estava manchado e sujo de anos de vinho entornado. Os candeeiros a petróleo, nas paredes de madeira enegrecida, travavam uma luta desigual com as trevas e o fumo que dominavam o estabelecimento. Uma imensa lareira crepitava e emitia mais um pouco de luz bruxuleante para o espaço.
Estavam os clientes todos amontoados, ao fundo, em volta da mesa onde eram decididos destinos.
Sentados, cercados pela pequena multidão, estavam quatro homens. Dois deles eram sem dúvida camponeses; vestes modestas e rostos tisnados do sol com barbas crescidas, cortadas há muitas horas. Outro, envergava um jaquetão preto, discreto e rosto barbeado, mas também queimado de muitas horas ao ar livre. O último deles aparentava ser o mais abastado de todos. Casaca preta comprida, cabelo impecavelmente cortado, rosto pálido e barba curta, devidamente aparada, sobreposta por um respeitável bigode de pontas retorcidas.
Os três primeiros habitavam aquela aldeia e eram jogadores assíduos de dados na tasca do António “Bisarma”, um gigante com um metro e noventa e mais de cento e vinte quilos de peso. O último deles era um recém-chegado que se apresentou como um negociante de propriedades chamado Fernando Sarmento.
Os dois camponeses, o Manel “Esbarrola” e o “Chico da Horta”, jogavam habitualmente com o João Morais, lavrador proprietário conhecido pelo “Fanhoso”, em apostas relativamente elevadas. Muitas vezes as partidas levaram os magros rendimentos dos camponeses, mas outras tantas, o lavrador deixou gordas maquias nos necessitados bolsos dos companheiros.
Naquela tarde, o forasteiro entrou na taberna para beber e, após algum tempo a assistir ao jogo, mandou servir mais uma rodada de tinto a todos os presentes, apresentou-se e perguntou se podia juntar-se ao trio.
Após um olhar rápido entre todos, assentiram e Sarmento sentou-se ao lado do Fanhoso.
Em cima da mesa, além dos quatro dados e uma caneca de barro com vinho, havia três copos de madeira e pequenos montes de moedas que ficavam à direita de cada jogador.
Jogavam aos vinte e um. Cada jogador lançava os quatro dados e, se o valor fosse inferior a vinte e um, escolhia um ou mais dados e podia jogar duas vezes até atingir o valor máximo menor ou igual que vinte e um. Se o valor fosse ultrapassado, perdia imediatamente, senão, finda a ronda de todos os jogadores, ganhava o que conseguisse o valor mais elevado.
As moedas corriam em cima da mesa ora para um lado, ora para outro e, após algumas jogadas equilibradas, o forasteiro rapidamente começou a arrebanhar todo o dinheiro da mesa.
Mais duas canecas do tinto adamado beberam-se antes do Chico da Horta, nervoso, gaguejar um “Já não tenho tusto” e levantar-se, juntando-se aos assistentes.
O Manel Esbarrola, assim conhecido pelo temperamento irascível e pelas gabarolices que lhe eram características, começou a “ferver” assim que as últimas moedas se lhe escaparam da mão:
— Demónios dos infernos. Excomungado jogo que não me dá sorte nenhuma. — Ferrou um soco na mesa que fez saltar dados, moedas, copos e canecas. — Não consegui fazer as sortes virarem.
Sarmento olhou surpreendido para o Fanhoso, que acenou negativamente, de olhos no chão, desaprovando a já esperada conduta.
— Eh, lá, ó Manel! — Trovoou o Bisarma de trás do balcão. — Já sabes que não quero cá coices! Se escoicinhas na mobília ponho-te na rua.
O Esbarrola voltou-lhe as costas e atirou um braço ao ar enquanto resmungava um “Deixa-me cá”.
Os outros dois jogadores olharam-se e o Fanhoso negou com a cabeça, informando que também para ele o jogo estava terminado.
O forasteiro ficou-se sentado à mesa a brincar com os dados enquanto os restantes clientes retomavam os lugares que ocupavam antes do jogo se tornar interessante.
— Deixe-me jogar mais uma. — Pediu o Esbarrola de repente.
Sarmento olhou-o nos olhos antes de responder:
— Não me disse que não tinha mais dinheiro?
— Sim, mas posso jogar outras coisas. — Voltou-se para o companheiro que se mantinha ao seu lado. — Chico, arranja-me cá um cigarro.
— Arre, porra, homem, os últimos dois que fumaste fui eu quem tos deu. Achas que a mim não custam dinheiro? — O Chico da Horta atirou. — Hoje não larpas mais nenhum que eu te dê.
Manel deitou um olhar azedo ao amigo antes de tornar ao forasteiro.
— Então? — Inquiriu. — Que me diz vossemecê?
— Que tem que me possa interessar? — O indivíduo tornou o olhar para a mesa enquanto brincava com os dados numa atitude descontraída. — Tem terras?
— Terras não tem. Esse lorpa perdeu, nessa mesa, as que o pai lhe deixou quando morreu. — Interveio o taberneiro, de braços pousados no balcão e atento à conversa.
— Não tenho terras, mas tenho um cavalo. — Afirmou o Esbarrola, ignorando o Bisarma.
— E quer jogar o seu cavalo? O seu ganha-pão? — Perguntou o estranho, fitando-o nos olhos.
— Não faças isso, Manel. — Avisou o Chico da Horta. — Se o perdes ficas sem emprego ou vais para carrejão.
— Sim quero! — Respondeu ele ignorando completamente os restantes.
— Sente-se, por favor. Eu aposto todo o dinheiro que aqui ganhei esta noite contra o seu cavalo. — Convidou Sarmento. — Senhor António, traga mais uma caneca.
Assim que o adversário se sentou, o homem tirou do bolso do casaco um pequeno molho de papéis. Soltou um deles, que se revelou uma folha amarelada dobrada em quatro e perguntou:
— O seu nome é Manuel...
— Esbarrola! — O grito, coroado de gargalhadas, veio de uma das outras mesas. Todos estavam atentos à conversa.
— ... Bugio. — Esclareceu Manuel, ignorando-os.
Continuando o seu ritual, o forasteiro retirou de outro bolso uma caneta que destapou e começou a escrevinhar enquanto lia alto:
— Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade do meu cavalo e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
O tasqueiro pousou a caneca sobre a mesa e olhou espantado para a caneta de tinta permanente que o homem empunhava. Nunca vira nenhuma, embora já tivesse ouvido falar, até o senhor abade escrevia com aparos que molhava na tinta.
— Senhor António. — Interpelou Sarmento. — Quer ser nossa testemunha, ler e assinar este contrato?
O Bisarma repetiu, de forma errática, as mesmas palavras que escutaram e garatujou o seu nome, numa letra infantil.
— Agora você, Manuel. — Pediu o forasteiro.
— Eu... não sei escrever. — Lamentou.
— Não há problemas. Pegue na sua faca e faça um corte num dedo. Ponha uma pinga no fundo do papel e calque com um dedo...
Lentamente, os restantes clientes da taberna levantavam-se e refaziam o círculo à volta da mesa com os dois contendores para observaram o estranho ritual.
Tiraram as sortes e Manuel começou... era prometedor, encheu o copo e esvaziou-o. Ganhou a primeira mão e passaram à segunda, também iniciada por ele, mas foi Sarmento quem arrebatou maior pontuação. Estavam empatados e a próxima decidiria tudo. Manuel encheu o seu copo e despejou-o quase de um trago.
O forasteiro lançou os dados e na sua jogada não conseguiu mais que um dezoito. Animado, Manuel iniciou o seu jogo; o lançamento só lhe deu quinze pontos; uma quadra, duas quinas e um ás. Pegou no dado com apenas uma pinta e lançou-o. Saiu um duque; fez um gesto de contrariedade, dezasseis ainda não chegava, só tinha mais uma hipótese. Relançou o dado novamente para obter, de novo, o um. Perdeu.
Sarmento, calmamente, dobrou o papel que comprovava a propriedade do cavalo e meteu-o no bolso.
Manuel, ainda debruçado sobre a mesa, estava em transe, mas, de repente, levantou-se com brusquidão, atirando o banco onde estivera sentado para o chão. Deu dois murros com os punhos fechados na mesa. Sarmento recuou instintivamente, mas não se levantou. O taberneiro agarrou no braço de Manuel e preparava-se para o “acompanhar” à porta quando ele mudou de atitude:
— Senhor Sarmento, por favor. Não me faça isto... — Implorou.
— Isto o quê, meu amigo? Jogamos ambos, de boa-fé, conforme o que nos propusemos. Eu ganhei, você perdeu.
— Por favor. Eu prometo que lhe pago o valor do cavalo. Só preciso de mais algum tempo.
— Não posso. Tenho de ir embora daqui a pouco.
— Por favor. Não me deixe assim. Dê-me mais uma oportunidade...
Havia um silêncio pesado na taberna, ninguém respirava a aguardar a resposta.
— Está bem. — O forasteiro anuiu enquanto se ouvia um suspiro aliviado de toda a audiência. Mas ele logo continuou. — Que mais tem para jogar?
— Vai-te embora rapaz! — Aconselhou o Bisarma.
— Manel, não insistas, hoje o mar não tá para peixe. — Pediu o Chico da Horta. — Deixa ficar assim. Alguma coisa se há de arranjar.
Outras vozes faziam coro, condoídas com a situação do homem, que apesar de tudo era responsável pela sua própria desgraça.
— A minha casa. — Manuel sentenciou de forma quase inaudível. — Quero jogar a minha casa.
— Espera Manel! — Interveio o Fanhoso — Não faças isso! Eu ajudo-te alguma coisa, adianto-te algum dinheiro. Não jogues a casa que te desgraças, homem.
— Ouve, Manel! — Agora era o taberneiro que insistia. — Não faças isso, esse homem não quer saber de ninguém, está a causar a tua desgraça! Mataste a tua mãe de desgosto quando perdeste as terras, deixas a família passar fome, porque gastas tudo no jogo. Agora vais deixá-los sem teto? Valha-te Deus, lembra-te que a tua mulher está grávida e que tendes já um filho. Que queres fazer da vida, celerado?
Manuel sacudiu a manápula pesada do Bisarma e insistiu com Sarmento:
— Que me diz? — Tudo o que ganhou hoje, cavalo incluído, contra a minha casa. Não disse que está interessado em propriedades?
— Sente-se Manuel! — Sarmento permitiu-se um sorriso de escárnio enquanto tirava novamente o pequeno maço de folhas amareladas de onde tirou uma cuidadosamente dobrada. — Vamos escrever isto, sim? Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade da minha casa e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
— Eu não assino isso! — Recusou-se o Bisarma. — Não vou ajudar a desgraçar esse infeliz.
— Por que não? — Perguntou Sarmento. — E o senhor Chico da Horta? Quer assinar? Devolvo-lhe o dobro do dinheiro que perdeu esta noite.
O homem corou e notou-se que travava uma terrível luta interior. No entanto, a necessidade de dinheiro era mais forte, aproximou-se e gemeu um quase inaudível “Desculpa Manel”.
— Testemunha deste acordo foi o senhor Francisco... — Continuou o forasteiro, após riscar o nome do taberneiro.
— …Terroso. — Concluiu o Chico. — Eu também não sei escrever.
— Não tem mal. — Descansou-o Sarmento. — Só preciso de uma cruz. A promessa dele é que exige sangue.
Depois de todo o ritual terminado, a mancha de sangue apensada em mais um contrato, o forasteiro define mais uma regra:
— Apenas uma jogada cada um. Estou a ficar sem tempo. Pode começar o Manuel.
A tremer, Manuel apertou os dados com toda a força antes de os lançar para o meio da mesa. Olhou incrédulo para o resultado. Contou por duas vezes as pintas, todos festejaram, vinte de uma mão só! Era um milagre, todos gritavam, ia recuperar tudo e ficava com lucro.
Sem perder a calma, Sarmento atirou os seus quatro dados que pareceram demorar uma eternidade a imobilizar-se e... não era possível! Dois seis, um cinco e um quatro! Vinte e um! Ele conseguiu suplantar de uma mão só uma jogada quase única, só podia ser obra do Diabo!
— Por todos os demónios!!! — Berrou Manuel fora de si enquanto atirava com os dados contra a parede e escacava a caneca no chão.
— Chega! — Gritou o taberneiro, arrastando Manuel pelo braço. — Eu avisei-te, todos te avisamos, não vais agora fazer baderna aqui e partir-me a tasca toda. Põe-te lá fora. O frio vai arrefecer-te essa cabeçorra e pensar na grande merda que fizeste esta noite.
— Senhor Sarmento, por favor! — Implorou Manuel enquanto era arrastado pelo gigante. — Não se vá embora! Espere um bocadinho, eu arranjarei algum dinheiro e falamos outra vez, espere...
— Só vou beber mais um copo e depois vou embora. — Anunciou o forasteiro em voz alta antes do taberneiro bater a porta na cara ao destroçado Manuel.
Cá fora já estava escuro. Pequenos fiapos de neve esvoaçavam empurrados por um vento ainda suave, mas gelado. Ele estremeceu com a mudança de temperatura, mas isso não impediu que se sentasse na pedra friíssima que servia de banco.
Chorou. Chorou ali, que ninguém o via. Sozinho, no escuro, porque os homens não choram e ele não podia passar por mais essa vergonha.
Os efeitos do vinho e dos nervos produziam um zumbido irritante na cabeça que tinha dificuldades em manter erguida.
Decidido, levantou-se, limpou as lágrimas com as costas da mão e caminhou em passos largos em direção a casa. À casa que já não era sua.
Entrou porta dentro como um furacão, abrindo-a com força e fazendo-a bater na parede.
— Credo! Homem de Deus que me matas de susto! — Alarmou-se Maria das Virtudes, sua mulher, que se afadigava na cozinha. A barriga proeminente anunciava mais uma boca para alimentar.
Não lhe respondeu e passou por ela, como se não a visse, com um olhar alucinado e o rosto sujo das lágrimas que escorreram.
Entrou no quarto onde dormiam e começou a remexer as gavetas da mesa de cabeceira e depois as gavetas da cómoda.
Maria aproximou-se lentamente, apavorada, sem se atrever a dizer palavra enquanto observava a revista descontrolada que ele fazia.
— Que está a fazer o pai, mãe? — Uma voz fina de criança fez-se ouvir quando um menino se juntou à mulher e agarrou a borda da saia.
— Shhh, filho, não digas nada. Vai para a tua cama, vais? — A voz tremente de Maria pediu.
Entretanto, Manuel atingira o seu objetivo e exibia, triunfante, um cordão em ouro que retirara de um dos gavetões.
— Que vais fazer com isso? — Ela esforçou-se por mostrar firmeza.
— Cala-te, mulher! Isto é a nossa salvação! — Retorquiu ele.
— A nossa salvação? Ou o resto da nossa desgraça? Há quanto tempo não entra dinheiro nesta casa, que o gastas todo na taberna e no maldito jogo? Esse é o último valor que temos, tirando a casa e o cavalo. Foram os meus pais que mo deram. Não deixarei que o leves.
— Não vais deixar? — Ele torceu o rosto numa careta de desprezo e desafio enquanto parecia crescer em frente a ela. — Já não temos casa nem cavalo. Com este cordão tentarei que ao menos fique a casa.
— Ah, excomungado, maldito! — Ela começou a agredi-lo com sapatadas pouco eficazes. — Amaldiçoada seja a hora em que o diabo te pôs no meu caminho!
— Está quieta, cabra estúpida! — Ele começou a socá-la, com o cordão envolto na mão. — Está quieta ou dou cabo de ti.
Ele continuou a bater-lhe enquanto ela caía e gritava e não parou depois que ela se calou. A criança chorava alto, agarrada à mãe, até que ele lhe deu um estalo que a atirou ao chão, atordoada. Deu mais dois pontapés na mulher e preparava-se para sair quando irrompem pela casa os sogros que acudiam aos gritos da filha.
Depois de uns segundos de espanto, o homem atirou-se a Manuel e envolveram-se numa sequência de murros e pontapés, arrastando-se até à cozinha enquanto a mulher acudia à filha que jazia no chão, balbuciante. Agora era outra a mulher que gritava e chorava agarrada à filha e ao neto.
Na cozinha, Manuel tentava, sem sucesso, soltar-se do furioso homem que o agredia. Devolvia os socos e tentava defender-se como podia até que chocou contra uma banqueta de madeira que quase o fez cair.
Evitando um último soco, pegou na banqueta e começou a agredir o sogro com toda a fúria até que este se imobilizou no chão.
Largou “a arma” e saiu a correr.
Dirigiu-se para a saída da aldeia, e, quando chegava à encruzilhada, avistou Sarmento que se afastava, montado num cavalo e levando outro pela arreata.
— Senhor Sarmento, senhor Sarmento! — Chamou.
O homem imobilizou-se e voltou-se para ver quem o chamava.
Assim que Manuel se aproximou o suficiente, com o rosto marcado e com sangue, as roupas rasgadas, o interpelado comentou do alto da montada:
— Você não desiste, homem? Não deveria estar a procurar um lugar onde ficar? Para a semana estarei cá de novo e quero a minha casa vazia.
— Por favor! — Implorou Manuel. — Não me faça isso. Veja, tenho aqui este cordão de ouro, pelo menos dê-me o papel da casa.
O homem desceu, pegou o cordão, examinou-o e devolveu-o ao proprietário:
— Acha que isso é suficiente para comprar a casa?
— Não. Eu sei que não. Mas se o aceitasse como boa-fé, para a semana terei mais dinheiro e vou pagando até ao valor que achar bem. Juro!
— Quer jogar uma mão? — Sarmento exibiu um riso de escarninho. — Ganha e fica com a casa e o cavalo...
— E se perder, perco o cordão também... — Concluiu o desgraçado camponês.
— Não. Apostemos outra propriedade que tens.
— Outra? — Admirou-se. — Não tenho mais nenhuma!
— Tens sim. Tens os teus serviços... a tua vida.
Manuel olhou-o, incrédulo. O vento continuava a atirar flocos de neve que esvoaçavam entre os dois homens enquanto eles tentavam ler os pensamentos um do outro, através dos olhos.
— Os meus serviços? Que eu seja seu criado?
— Não propriamente o meu, também tenho um patrão. Seríamos como colegas.
— Mesmo que eu perca... — Sentenciou Manuel — O senhor rasga o papel da casa?
— Sim, pode ser. — O outro anuiu, tirando do bolso mais uma folha amarelada que começou a rabiscar na sela do cavalo enquanto dizia em voz alta: — Eu, Manuel Bugio, declaro, através deste documento, que me entrego de corpo e alma ao serviço do Grande Comandante se o senhor Fernando Sarmento me ganhar numa partida de dados.
Sarmento passou-lhe o papel que ele olhou, com olhos vazios, tentando perceber a enormidade do significado daquele papel que não sabia ler.
— Quem é o Grande Comandante? — Questionou.
— Apenas uma pessoa muito importante com grandes exércitos de homens às suas ordens. Não gosta que usem o seu nome em vão, pelo que nunca o escrevemos e chamámo-lo sempre de Grande Comandante. Já sabes o que fazer, não é? Uma pequena gota de sangue?
— Não há testemunhas... — Observou Manuel, ausente.
— Não são necessárias. Este contrato não pode ser quebrado. — Rematou Sarmento, pousando os dados sobre a pedra talhada que servia para as pessoas descansarem das jornadas.
— Deixa mesmo a casa? — Perguntou uma vez mais enquanto marcava a impressão digital com sangue.
— Está aqui o papel. Joguemos em cima dele. Se perder pode fazer com ele o que quiser... e se ganhar também, claro. Está aqui o do cavalo. Jogamos só uma vez cada um!
— Jogue você primeiro. — Manuel convidou.
Sarmento atirou os dados e saíram nove pontos, uma quadra, dois duques e um ás. Ele jogou todos menos a quadra. Obteve uma sena, um terno e outra quadra; dezassete pontos. Jogou o terno e saiu um duque... ficou-se pelos dezasseis.
Animado, Manuel jogou. Estava ali a oportunidade de recuperar tudo... finalmente a sorte iria sorrir-lhe! Só precisava de mais um ponto que ele.
Os dados rolaram, preguiçosamente, até se imobilizarem, obscenamente, em quatro horríveis senas! Vinte e quatro pontos de uma só mão! Ultrapassou os vinte e um. Perdeu uma vez mais!
Em choque, deixou-se ficar a digerir lentamente tudo o que havia jogado e perdido...
— A casa fica para minha mulher? — Gemeu a pergunta de forma quase inaudível.
— A tua mulher não passa desta noite... perdeu o vosso filho e não está nada bem... o teu sogro nunca mais vai ser o mesmo, mas viverá. A tua sogra cuidará do outro menino e ficarão bem! — Explicou Sarmento enquanto montava.
— Como sabes tudo isso?
— Há muita coisa que eu sei... em breve, também tu saberás. De qualquer modo, essa família já não é tua, agora, pertences a outra maior. Anda, irmão, monta no teu cavalo e levaremos a desgraça a outro lado.
Os dois cavaleiros afastaram-se na estrada batida pela neve que o vento atirava com uivos fortes. Com ela voavam também dois papéis amarelos que atestavam a condenação do vício de um homem.
Obrigado pela leitura!
Podemos manter o Inkspired gratuitamente exibindo anúncios para nossos visitantes. Por favor, apoie-nos colocando na lista de permissões ou desativando o AdBlocker (bloqueador de publicidade).
Depois de fazer isso, recarregue o site para continuar usando o Inkspired normalmente.