Jerome Gein já não era mais nenhuma criança; na verdade, tinha acabado de fazer trinta anos de idade há pouco menos de dois meses. Não era alto e nem notavelmente forte; com alguma sorte, talvez pesasse uns 70 quilos. Tinha um tom de pele não muito saudável, um branco amarelado de quem costuma fugir do sol, e o cabelo loiro e sempre desgrenhado de astro pop incompreendido. Qualquer um que não o conhecesse e fosse questionado sobre o que achava que o rapaz fazia da vida, podia responder: “Sei lá, fuma meth do amanhecer até o anoitecer? É ajudante de legista? É extra em filmes de vampiros adolescentes?”.
Pois é. Sem maldade. O que se podia fazer se ele lembrava um artista atormentado por fantasmas, que pouco tinha aproveitado da vida além dos livros? Mas nem por isso podia ser considerado deslocado ou feio. Jerome Gein era somente um carinha enfadonhamente comum.
Seria mais um em meio a uma miríade de rostos esquecíveis – daqueles que não causam mais do que uma olhadela desinteressada ao chegar nalgum lugar, meio como quando esperamos nossa vez em um consultório e a secretária chama por um nome e damos aquela rápida levantadinha de olhos para fora da revista de futilidades, vemos alguém insosso se levantando e ajeitando as calças e mergulhamos de novo nas fofocas, apagando aquele rosto em dois segundos −, se não fosse pelo carisma incrível que, às vezes, indivíduos assim possuem.
E aquele era o caso de Jerome. O cara tinha a desenvoltura de um comediante de Stand-up e uma boa dose de inteligência e, porra, aquilo fazia toda a diferença!
Com a conversa mole de um vendedor que convenceria um esquimó a comprar um freezer para seu iglu e a simpatia que devia ter o cicerone da Mansão Playboy, ele vivia cercado de amigos e garotas atraentes. Fazia os homens lhe pagar bebidas e até apanharem por ele, se fosse preciso, por sua camaradagem. Quanto às mulheres, dificilmente Jerome terminava uma noite sozinho. Elas sempre caíam em seu papinho interessante e descompromissado.
A cidade o adorava, e não só por seu jeito Ferris Bueller de ser, mas porque, com apenas uma câmera, ele havia conseguido fazer com que sua pequena Falmouth deixasse de ser uma cidadezinha qualquer do Maine, apresentando-a ao resto do país em seu canal de vídeos semanais, onde falava sobre filmes, livros e games de suspense e horror para quase quatro milhões de inscritos.
Gravava seus episódios em diversas localidades sombrias que compunham a atmosfera local, e em cada um tratava de alguma das ligações entre elas e obras conhecidas. Sua maior revelação fora de que Howard Phillips Lovecraft teria visitado aqueles lados inúmeras vezes atrás de paisagens inspiradoras para seus contos sinistros. Aquilo definitivamente tornara a cidade parte do roteiro turístico dos milhares de fãs que viajam por toda a Nova Inglaterra atrás dos obscuros cenários das histórias do escritor, injetando belas somas nos bolsos de muita gente.
Jerome havia se formado em marketing e propaganda, porém nunca chegou a exercer nada profissionalmente. No máximo usou seu conhecimento para vender, por uns dois anos, artigos autênticos de produções clássicas de terror pela internet para colecionadores. Aliás, fora durante uma de suas viagens (negociara e fora buscar em Los Angeles uma estaca de madeira e um dos esquifes usados durante as filmagens de Drácula, de 1931), quando ficou em um velho hotel onde Béla Lugosi supostamente teria se hospedado, que tivera a ideia para seu canal.
Em pouco tempo, descobriria que algum talento (nem era preciso que fosse algo extraordinário) e uma ideia original podiam render muito mais que negociar itens de gosto duvidoso. Aos trinta, aquilo estava mais do que provado. Tinha uma boa conta bancária, amigos, mulheres e uma cidade que o tratava como celebridade.
Sendo assim, talvez não fosse necessário que seu pai precisasse estar naquele bar, vigiando-o como se tivesse 11 aninhos; mas lá estava ele, sentado à duas fileiras de mesas do balcão onde Jerome contava uma piada sobre uma competição entre um judeu e um pica-pau. Escolhera uma mesa sem abajur e longe dos archotes dispostos nas colunas marmorizadas. Usava um boné dos New England Patriots e uma jaqueta jeans comprida e escura. Baixara a larga aba do boné sobre os olhos como faria um traficante dando entrevista para a TV e bebia um uísque duplo com gelo e soda.
E, por Deus do céu, não tiraria os olhos dele por nada nesse mundo!
— E então? Qual dos dois vocês acham que conseguiu furar primeiro a porta do cofre à bicadas? — perguntou Jerome à roda de amigos; falava alto, animadamente, parecia até Oskar Schindler numa de suas confraternizações com seus freunds do Reich e uma explosão de risos cobriu por um instante a música da banda folk que tocava animada no palco à esquerda e o rápido matraquear do narrador do jogo de hóquei que era exibido na TV acima do bar.
Até quem não era da turma de Jerome riu junto e, sem saber muito bem por que, seu pai também rira. Não tinha mais motivo algum para rir, mas sempre gostara dessa piada (aliás, fora ele quem a ensinara ao filho) e seu rapaz, tinha de admitir, contava-a muito bem. — É... Nada como o cheirinho de diamantes para motivar o bico do velho Tenembaum!
A banda terminou a música e Leland Carlson, o vocalista, disse que voltariam em poucos minutos, após um breve intervalo para uma cerveja, afinal, também eram filhos de Deus. Ainda do palco, olhou para a turma de Jerome, o encontrou e fez um sinal com o polegar para a boca escondida entre a barba hirsuta e ruiva. Jerome lhe retornou um OK e segurou a mão fechada na frente das calças, simulando que iria dar uma mijada.
Passou bem perto de seu pai – perto o bastante para que o homem virasse para o outro lado, como se procurasse por um garçom, quem sabe – mas não o viu.
Estava com um amigo que fazia lembrar o Barney dos Flintstones e que também resolvera ir ao banheiro aliviar-se da cervejada, e este o avisava sobre a garota morena de calça de couro e suéter azul, June ou Julie, quem sabe (o pai não conseguiu compreender bem, já que uma gritaria havia começado entre o pessoal apinhado no balcão. Os Lewiston Maineiacs marcaram ponto num frenético tudo-ou-nada em cima dos Manchester Monarchs e os passaram faltando três minutos e meio para o final do último período).
Barney Rubble contava a Jerome que se a deixasse escapar, com todo o mole que a gata estava lhe dando a noite inteira, ele mesmo tentaria conquistá-la.
— Quando você está pondo a cerveja gelar, eu já mijei um tambor, Ted — disse Jerome, confiante. — Nada me escapa.
Ted riu com vontade. Quanto ao seu pai, que conseguira ouvir tal afirmação, o homem achou que não era bem assim, já que, com ou sem onisciência, Jerome já vinha sendo seguido havia um mês e até agora não dera conta disso.
Pensava nisso quando seu celular tocou. Johnny Cash o avisava que sua esposa, Brenda, queria falar com ele. Deixou o Homem de Preto lhe contar um pouco de como havia se machucado naquele dia, usando sua própria coroa de espinhos e se perguntou se não estávamos todos fadados a usá-la em algum momento na vida. Se certas pessoas, como ele, por exemplo, não tinham vindo para cá para se sentar no tal trono de mentiras e suportá-la lhe sangrando as têmporas no lugar de outros.
A foto de Brenda, escolhida para ilustrar seu contato, lhe retornava o olhar, paciente. Você continua tão linda quanto no dia que te conheci, pensou. Deslizou o dedo pelo ícone verde e por fim a atendeu.
— Oi meu amor.
— Arthur! Minha Nossa, você vai acabar me causando um piripaque qualquer hora dessas! Já não sou mais uma mocinha faceira, sabia?
Arthur achava bonitinho ouvi-la falar, ainda mais quando ela usava aquelas palavras fofas − e certamente extintas. Conseguiu rir do pito que tomou e sabia que do outro lado Brenda também já havia aberto um breve sorriso. Graças a Deus ainda tenho você para me fazer lembrar o que é sorrir.
— É que eu gosto da música de Cash que uso como toque — revelou (cansado de saber que ela já sabia). — E de ver sua foto quando estamos longe. Vê-la e saber que quer falar comigo, entende?
— Pois deveriam inventar um celular em que eu pudesse dar um pescotapa aqui e acertar a sua cabeçona aí do outro lado!
— E que permitisse compartilhar seus peidos também?
— Ora Arthur! Um cavalheiro nunca faz gozação sobre as flatulências de uma dama. Deveria saber disso!
— Certo. Mea culpa. Mas o que houve, amor? Está tudo bem aí em casa?
Arthur pôde sentir o sorriso de Brenda se desvanecendo. Houve um instante de hesitação e então ela disse:
— Eu queria saber o que está acontecendo desta vez, Art.
— Ora, mas como assim?
— Você está outra vez aí no McArtney’s, não está?
Arthur sentiu uma breve onda de calor. Vergonha. Uma esposa não deveria ter de precisar contabilizar o quanto seu marido passa de seu tempo pelos bares. Se isso acontece, é sinal de que algo está indo pelo caminho errado.
— Não, senhora — respondeu Arthur, sem graça. — Estou no Patriota.
— Não faz muita diferença.
— Está triste comigo, Bre?
— Não, triste, não. Mas, entende que tenho o direito de estar preocupada com você, certo?
— Eu... Eu compreendo.
— Nunca te perturbei com nada, como querer saber onde você está de dez em dez minutos. Confio no meu marido.
— Eu sei, e agradeço muito por...
— Mas minha cabeça me diz que algo está para mudar. Você estava estranho hoje quando chegou. E nosso Jerome... — Do outro lado, Brenda começou a soluçar. — Eu estou preocupada com ele.
— Eu sinto muito, meu amor — lamentou Arthur, sinceramente. — Ouça: sei que as coisas estão difíceis, mas não prefere que conversemos sobre isso depois, sem todo esse barulho aqui em volta?
— E você está vindo para casa, Art?
Não. Ele não estava.
— Ainda não. Não posso — deixou escapar, então corrigiu: — Digo, o jogo ainda não terminou, amor. Hoje é noite de hóquei e também do Campeonato da NFL.
Brenda parecia lutar para não se mostrar magoada. Todos os dias agora eram dias de jogos. Perguntou-lhe se não tinham televisores enormes na sala, nos quartos, e também assinatura Premium com todos os canais de esporte que Arthur quisesse acompanhar, mas o fez sem ironia.
Tinham completado 40 anos juntos (“Coisa raríssima de se ver hoje em dia!”, dissera Suzan, sua irmã, que tinha passado por dois divórcios e já cogitava o terceiro), e muito se devia justamente por não serem tipos neuróticos e pirracentos.
Procuravam entender um ao outro – por mais que as coisas não andassem bem –, conversavam com calma, e o mais importante de tudo: haviam aprendido a ceder, se assim pedisse a situação.
— É... — disse Arthur, tentando animá-la de novo. — Mas aí não tem o chope incrivelmente gelado do Laurent e nem os comentários idiotas do Randy!
— Sei que isso te ajuda esquecer um pouco dos problemas, Art.
— É. Como sempre, você está com a razão.
Um incômodo silêncio caiu entre os dois.
— Olha só, a gente pode conversar outra hora. Assista ao seu hóquei. Só não vá beber mais que alguns chopes pra passar mal amanhã. E, Art, pode me chamar para conversar se quiser; independente se eu já estiver dormindo.
― Oh, não. Podemos nos falar amanhã. ― Sentiu-se horrível por mentir para ela. O amanhã talvez não existiria.
Ele a ouviu fungar, doía saber que Brenda chorava. Com a voz quase por traí-lo também, Arthur disse:
— Brenda... Muito obrigado por ser como é. Eu gostaria de nunca ter de decepcionar você.
— Você, jamais — disse ela. — Eu te amo.
— Também te amo muito, querida.
Arthur desligou e a tela ainda continuou exibindo por alguns segundos a foto de Brenda. Ele a admirou, sua pele bronzeada, hoje já com rugas, mas nada absurdo; seus olhos grandes, amendoados e vívidos. Uma mecha de seu lindo cabelo castanho – infelizmente já tendo de ser pintado – caía por sobre um dos olhos e lhe conferia um ar de menina.
Namorou-a através da foto até que a tela se apagou, então deu um suspiro triste, virou o copo duplo de uísque e foi até o balcão para apanhar outra dose. Nada de chope hoje, pensou. Para prosseguir, terei de contar com o velho Deniels.
Jerome havia retornado a algum tempo do banheiro. Talvez não quisesse deixar a jovem morena à mercê de algum outro Don Juan com bafo de Martini e um par animado de mãos bobas. Se alguém fosse boliná-la naquela noite, seria ele!
Tinha se acomodado no banco ao lado dela no balcão do bar (Arthur percebeu quando a jovem cochichou no ouvido da amiga e esta se levantou para ir ao banheiro ou fumar, deixando o banco livre) após ser convidado a acompanhá-la.
Todos os amigos dele ainda estavam em volta, rindo, bebendo e bravateando, mas para Arthur, ficara claro que Jerome passara a operar em Modo Predador (como ouvira um comediante fantasiado de ave de rapina dizer certa vez) e agora dava pouca ou nenhuma atenção aos demais. Concentrava-se exclusivamente em convencer a já interessada jovem a não apenas ficar com ele ali – isso era para adolescentes –, mas em levá-la para sua casa.
Arthur era um daqueles casos em que o pai é mais bonito que o filho, indo bem na contramão da evolução. Era mais alto e atlético que Jerome, que por um capricho da genética, havia puxado para os avós maternos israelenses e um tanto atarracados, enquanto Arthur saíra à imagem de seu próprio avô, que tinha sido um estivador de 1.93 metros num movimentado porto de Dublin. Porém sabia que o rapaz tinha lábia (mais que ele jamais tivera, a propósito) e conseguiria o que desejava ainda que fosse caolho e perneta. Ah, pode apostar!
Não sabia se em sua época ele já era antiquado – talvez o fosse –, mas o fato era que Arthur tinha orgulho de ter namorado apenas com uma garota antes de conhecer Brenda Rosenthal e, dentro de um ano, torná-la a Sra. Gein. Nunca se arrependera disso. Sempre lia artigos tratando sobre pessoas sedutoras, libido, traição, homens e mulheres pirando nas chamadas crises disso ou daquilo e destruindo suas famílias por casos fúteis e agradecia por eles jamais terem titubeado, mesmo quando tempos complicados surgiam.
Lembrou-se de como os ânimos haviam esquentado em 1996, quando perdera o emprego na firma de manutenção de computadores de Albert Goines. O visionário achara que seria melhor se cercar de “jovens descolados” que realmente entendiam da nova era da informática e, supostamente, estariam mais preparados para o advento da Internet.
Arthur passara seis meses dentro de casa, de bermudas e chinelos, ranzinza, irritado com os conselhos de Brenda para que pensasse na ideia que tinha de abrir seu próprio negócio, com toda a porcaria que via na TV, com a bagunça das crianças... Mas nunca chegaram a discutir feio. Ele não permitiu. Se visse que iria explodir, subia e se enfiava sob o chuveiro quente, e de lá para a cama, onde lia algum livro até pegar no sono.
Tinham passado pelos perrengues unidos. Um dia, na metade de 1997, Arthur decidiu ouvir sua esposa e, juntos, esboçaram os planos do que viria a ser o primeiro provedor de internet da cidade de Falmouth, e que os tornaria, em coisa de dois anos, consideravelmente bem de vida. Muito mais que o idealista careca do Albert Goines, que faliria antes dos anos 2000 com seus jovens que, descolados até demais, acharam uma boa ideia abandoná-lo e abrir sua própria empresa de manutenção duas quadras acima, roubando-lhe todos os clientes.
O casal sempre conversava a respeito dos altos e baixos, dos momentos em que um quisera enforcar o outro, das vezes em que riram e choraram juntos, dos segredos tolos de cada um, das fantasias picantes e que jamais passavam disso, falavam das vezes em que hoje se olhavam e podiam sentir o amor, os olhares tão apaixonados quanto após terem se conhecido na Feira de Variedades de 1982.
Lamentavam que gente próxima não se entendesse como eles (igual Suzan, a Colecionadora de Desquites, ou Bill, o irmão de Arthur, que achara de bom tato deixar a mulher e os três filhos aos 51 anos de idade para ir viver com a secretária – pois é, a vida é feita de clichês – de 23 em Seattle) e, se tinham um sonho, este era envelhecerem e morrerem juntinhos, de mãos dadas.
Sentiam-se satisfeitos. Fora o modo que eles escolheram. O que não significava que iriam exigir de Jerome ou de Katty, sua filha caçula, que os imitassem. Portanto, estava tudo bem se o garoto não estivesse pronto para relacionamentos sérios ainda. Contanto que não prejudicasse ninguém.
Arthur, Brenda e o filho conversaram muito sobre isso desde sua adolescência, quanto a não magoar para não ser magoado, quanto a limites e também a respeito de Katty ter lhes revelado sem dramas ser lésbica, apresentando a eles sua namorada e estarem sempre juntas em casa.
No entanto, se eram todos tão cabeça aberta assim, o que Arthur fazia ali no Patriota, disfarçado, nervoso, seguindo o filho? E não só naquela noite, mas por um mês inteiro?!
Bom, talvez porque Jerome Gein tenha se esquecido das conversas com os pais sobre não prejudicar ninguém.
Obrigado pela leitura!
Meu amigo, vim deixar minha recomendação pra te ajudar. É mais uma história com a qualidade fora do comum de sempre. É com ela que vc tá no desafio né? Se tiver como votar, é sua pode ter certeza!!! Mais uma vez vc tras o relacionamento difícil entre pessoas amadas com um peso enorme. É uma história triste que me dá medo de pensa acontecendo de verdade! Pena que acontece. Recomendo de mais!!!!!
Oi Wesley! Deixei um comentário lá no último capítulo e fiz questão de vim deixar minha recomendação! História muito boa, bem escrita e conduzida, apesar de pesada e de deixar a gente pensando um bom tempo depois de acabar de ler. É o que eu imaginei quando ouvi seus contos narrados no canal do Professor Favaro. Já vou começar ler outras!! Abraço.
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