Tchaicovsky!
Uma das mais geniais sinfonias russas compunha-se por inteiro. Em todo o seu intrínseco e surreal arranjo. Elaborada por um perfeccionismo de notas inimaginavelmente harmônicas. Sonorizada por uma etérea capela de arcanjos. Vinda de quaisquer lugares possíveis e impossíveis, acima e abaixo do firmamento. Ressonava deslumbrante. Suave. Lenta. Onipresente. Preenchedora de todos os sentidos, além, claro da audição quase deteriorada. Anestesiante. Feito uma morna brisa de verão ao cair da tarde. Antiga. Familiar. Empática por razões mal sepultadas à seu constante inferno interior.
Reconstruindo nota por nota, acorde após acorde, a colcha de retalhos esfarrapada que consistia sua deturpada ligação com seu passado de merda.
Evocando o suave toque dos dedos calejados de sua mãe, vagando trêmulos por seus cabelos antes encaracolados e infantis. Ambos temerosos, sozinhos na varanda da casa em ruínas do fétido e derrotado bairro industrial. Em um tempo tão distante que, por vezes, se perguntava se seria mesmo real. Uma doce cumplicidade em raros momentos de paz.
Até que seu pai retornasse de Deus sabe lá onde, entorpecido pelo álcool, fracasso e ódio contra o mundo e si mesmo. Até que suas botas tão fétidas quanto ele, gritassem como demônios num puteiro, esmagando o assoalho de madeira podre da entrada.
Antecipando o caos que só se dissipava depois que sua mãe tivesse mais ossos quebrados e que o arremessasse pela janela emperrada de seu quarto, erguida pelo boneco do Batman sem uma das pernas nem o braço direito e corresse.
Muito! Mas, muito!
Impulsionado por pernas bambas, urgentes em se livrar de profundos hematomas ou de dentes quebrados e ossos partidos também. Afugentado por gritos cada vez mais altos. Vindos da casa que urrava por um socorro cada vez mais desesperadamente improvável e de ecos enfraquecidos. Abandonados. Desamparados.
Corria.
Até que por entre a mata que permeava o esgoto a céu aberto à dezenas de metros dali, alcançava seu refúgio na árvore. Um abrigo improvisado feito por sua mãe em ocasiões em que seu pai e as provisões sumiam com as protitutas por dias, sem nenhum aviso e dependurava-se veloz como um fuzileiro pela escadinha de corda e degraus de grandes nós.
Então, silêncio! Ouvidos comprimido pelas mãos trêmulas e olhos tão apertados que empurravam os globos oculares para dentro do crânio. Forçando a abertura de uma passagem escura e segura para bem longe dali. Por toda a longa noite. Uma Nárnia onde permanecia faminto, mijando de medo sem sequer se levantar. Até que adormecesse e sua mãe, cada vez mais murcha e violada, viesse lhe buscar. Cantarolando, quando seus lábios não estavam rachados ou inchados demais para isso, uma estranha canção de uma terra onde a infeliz nunca mais tocara os pés, mas que sonhava em fazê-lo um dia, antes de seu último suspiro.
Mas, de volta ao momento presente, não havia nada! Nem as botas do demônio, nem gritos, nem ossos maternos partidos. Nem medo ou urina.
Apenas Tchaicovsky...
E o canguru!
Obrigado pela leitura!
FCA violência em cinza e sangue, ilustrada em uma casa da árvore como refúgio de uma infância destruída, lugar silencioso, onde só o cantarolar da mãe machucada faz breve sorriso deixar aquela existência menos desgraçada. Marcelo Farnési já começa com o velho e bom "soco no estômago".
FCPersonagem angustiado, tem vida amorfa, mergulhada em drogas e álcool. Tenta o suicídio algumas vezes. Passa a impressão de que ele só queria ter tido uma vida feliz, de verdade.
Antes do idiota do Totó ser sugado pelo furacão
FCLer este capítulo em uma segunda-feira é revigorante!
Corra! Ou, roube o relógio da lebre
FCA conturbada vida de desequilíbrio familiar, sem proteção ou direcionamento, apenas o ato de permanecer para continuar, às vezes, sem motivo, apenas a vontade de sentir-se viva!
FCA História de Jessy, que namorava a Jessy, que a traiu com um motoqueiro, tem TOC e ansiedade. Fala demais e não conclui o que começou a falar. Adorei!
Crônicas dos Turvos: (#1) O canguru, a feiticeira e o guarda-roupa.
Para aliviar o peso da vida escrevemos. Colocamos no papel tudo de bom que gostaríamos de ter vivido e descrevemos nossas dores como forma de remediar as dores da nossa alma. Sua escrita vai de encontro com as vivências de muitas famílias, não tem como não sentir as emoções conflituosas de seus personagens. O sentir é palpável e de uma densidade inquietante.Parabéns pela escrita sensível Marcelo.
Crônicas dos Turvos: (#1) O canguru, a feiticeira e o guarda-roupa.
FCAs Maldades! Principalmente as maldades da infância têm um fator determinante na merda de adultos que nos tornaremos.
Então, ao terceiro dia... (Que essa merda realmente funcione!)
Mais capítulo incisivo. Cheio de significados, que me fez rir e também me apertou o coração, pois ele dá início a despedida de personagens que passamos a ter como parte de nós (fui convidado a ser um integrante nesta viagem inesquecível no Simca e agora, ela começa a se despedir). Com um modo único e fantástico de nos guiar para seus sonhos, o Marcelo Farnési é inexplicável. Só lendo. Uma lenda.
Um capítulo simplesmente maravilhoso. Diminuindo a marcha por um momento, somos levados por tantas reflexões e lembranças (vividas, lindas, como as lanternas japonesas) que não há como não se emocionar ! Seu realismo fantástico é uma genialidade, meu amigo. E ele precisa brilhar para todo o mundo. 🙏🏻
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