DEMÔNIO
Almir Ribeiro de Almeida
É difícil tentar explicar, não necessariamente por timidez. Não é como subir em um palco de escola para se apresentar numa peça obrigatória, com todos os pais e professores olhando pra minha cara e eu só querendo poder transportar todos a uma ilha deserta. Não é como explanar um relatório no trabalho e ser avaliado ou questionado sobre cada vírgula, deixando nas entrelinhas que minha autonomia ou autoridade no assunto sejam falhas. É só difícil porque falar de mim sempre foi difícil, mas um dia eu teria que romper o tabu.
Meu tabu. Falar de demônios internos.
Um demônio interno. Meu demônio.
Agora nem é um momento especial, bem poderia ser qualquer um. Quem sabe falar de nosso caso agora funcione bem porque ainda está fresco, pouco tempo passou, memórias bem vívidas em cores e texturas, sons e cheiros. Complicado saber o dia de amanhã, lembranças escorrem fácil da cabeça e às certeza de como aconteceu parecem de alguma forma mais teatrais, com o andar do tempo. Selfies ou postagens não servem pra guardar tudo. Melhor desabafar enquanto posso contar com os detalhes a meu favor. O perfume azedo não evaporou. A retina ainda queimada pelo vermelho brilhante.
Olha só. Eu aqui me desviando, enrolando, cavando desculpas esfarrapadas para estender o assunto ao infinito, sem largar dele nada que seja de verdade factual.
Não disse que era difícil tentar explicar?
Posso só contar com tua paciência. Apenas um tiquinho dela será suficiente. Para cobrir de terra o demônio em mim… torcer para que sua presença na minha mente desça pelo ralo ao mesmo tempo que falo tudo o que tenho para contar… E eu aqui, enrolando de novo… Péssima mania… Melhor abrir o rasgo de uma vez.
Como as histórias começam?
Que tal assim?
Era uma vez, eu e o demônio em mim.
Pode ser?
Atraiu sua atenção?
Bom.
Não saberia dizer direito desde quando notei, mas ela sempre esteve aqui. Em mim. Quem sabe, sua presença tenha me dado meia dúzia de petelecos quando eu era criança e minha capacidade de entender estivesse em formação demais para que eu pudesse dar-lhe nome. Quem sabe eu a tenha classificado entre grilos, encucações e hormônios, na adolescência, como adolescentes fazem, tapando o sol com peneira e falhando em enxergar o óbvio ainda que este tenha cambiado de petelecos para socos fortes, daqueles capazes de rachar o crânio. É… Não saberia dizer quando, mas acho que sempre esteve aqui. Sem forma, só presença. Sem peso, apenas volume… E bem ALTO. Como falei antes.
Dentro de mim. O demônio.
E me sussurrava a cada instante, a cada momento ou decisão. Ao invés de sentado em meu ombro, capetinha miniatura de desenho animado, falava de dentro e em um determinado dia consegui reconhecer sua voz. A princípio achei que passeava livre entre meus membros, o som. Pulava de perna para braço, do fígado aos dentes, dedos, coração. Logo dei conta que tinha deitado em pose na minha cabeça e por isso sua voz ressoava tão forte e perturbadora.
Tal qual a um vizinho que nada tem de melhor a fazer em sua aposentadoria e resolve se dedicar a tomar conta de vidas alheias pela falta de ter uma própria, o playground era eu. E que vizinha dedicada no ofício, o demônio se provou ser. Acho até que nem precisava dormir. Babando em meus assuntos, vasculhando em minhas decisões, metendo o maldito bedelho em tudo, até eu bater pé de que não éramos um só, nunca havíamos sido um só.
E um basta precisaria ser dado, em algum momento.
Meu demônio esforçado em se mostrar ativa e vibrante, gastava seu tempo em me deixar claro que tinha muito e bota muito nisso a dizer sobre mim. Como uma rede social pessoal, tecendo opiniões, julgamentos, críticas, preconceitos, escárnio e ódio sobre tudo e todos, sendo esse todos, eu. Minha sucursal pessoal do Facebook, ha ha, que piada.
Me apontava as pessoas em volta, ao passo em que eu andava. “Olha pra aquela mina”, dizia, mal disfarçando o risinho sob máscara de opinião. “Quase dá pra ver na cara dela o quanto de zoado você parece, notou? Olha a tua imagem na cara dela. Viu? O que é que eu te disse? Pessoas são melhores que espelhos, teu reflexo tá bem ali e você pode se medir pelo que ela vê. Saca só, quase virando a cara, enjoada.”
E regularmente pontuava usando um “Ha ha ha, como é ridículo!”, para maximizar o efeito.
“Quê? Acha mesmo que eles curtem te ter por perto?”, vociferava, parecendo indignada, quando eu saía com amigos. “Você é tipo o alívio cômico da galera, um mal necessário, o bobo da corte, eles contam contigo para poderem rir, se sentirem melhores com as próprias vidas neste mundo de merda. Ah, que é isso? Não fica assim, desfaz essa fuça torta, não acabei de mostrar que até você tem uma serventia? Não é a toa que todos já se arrumaram com alguém, teus parça sempre se arrumam com alguém, e você sobra, fornece as risadas. Mas não me entende mal, infeliz, você é praticamente um serviço de utilidade pública e, no fim, sempre temos um ao outro, certo?”
— Ah, temos? — eu costumava retrucar, quando ainda me dava ao trabalho de não ignorar ou me fartar de ouvir aquilo. — Se meu trampo é ficar sozinho por que você não pega teu rumo também? Por que não desaparece, viaja, se escafede e me deixa sozinho? Essa regra de que todo mundo sempre se arruma com alguém não se aplica a você? Me deixa em paz com meus pensamentos, porra!
Mas isso era antes, bem antes de enjoar da resposta invariável:
“Não está na cara? Primeiro doçura… Porque gosto muito de você pra te deixar sozinho”, e sua voz se tornava afetada, como tentando inferir a ela uma importância emocional que não havia. “Segundo, você em paz é muito chato. Sempre veste uma cara de palhaço alegre, te curto mais assim, carrancudo”, e então soava suave, quase uma menina apaixonada. “Finalmente, o terceiro: eu sou teus pensamentos, tesouro. Vem com o pacote, não dá pra se livrar assim, como uma troca de roupa.”
Isso o tempo todo, em cada virada de esquina, interação social ou tomada de decisão. Vinte e quatro por sete, mesmo quando dormia e meus sonhos teciam realidades as quais ainda completamente alheias a minha vida, conhecimento ou posses, deveriam por direito ser só meus para viver. Se direito se aplicasse a mim.
Sempre comigo, a voz estava.
Por que você não se mata, é isso o que está pensando? Não diga que não, me tornei bom em ler reações com o passar dos anos. Tive uma professora e tanto. Tentemos ser sinceros, nem que seja durante este testemunho. Meu evangelho para você. Não me mato, matei, matarei, justamente por ser isso que meu demônio mais queria. Pense na mais longa e angustiante morte que se pode ter, sendo cozinhado em fogo brando como costela, com algo que te mata a cada frase mas não vai querer te deixar nunca.
Porém, respondendo a teu pensamento, sim, já tentei. E tentei. E tentei.
“Anda, vamos, acaba logo com essa porra”, provocava o demônio, a cada chance que tinha. “Já não cumpriu sua parte, no teatro de arena falido da tua vida? Já não interpretou a piada pronta o bastante? Anda, vai fundo, são dois passos pra frente e a gravidade continua pra ti.”
Ao sentir minha insegurança, o som transmutava em um palestrante, quase motivador. “Olha aqui, eu bem tenho um infográfico pra me basear. Juntou casais o suficiente, os quais partiram felizes independente de te deixarem pra trás? Check. Ajudou sua família, principalmente quando te viraram a cara? Check. Amparou amigos, mesmo quando sequer te consideravam um, e contavam contigo por puro interesse? Check. Tá acompanhando o resultado? Tanta chance de felicidade que você alavancou em troca de coisa alguma, se é que felicidade existe, eu mesma nunca vi. Agora é só um par de passos pro teu descanso, meu campeão retardatário. Descanso de tudo, de todos, imagina só, não é um sonho tornado realidade? Eu e você, no silêncio eterno, na tão sonhada paz.”
Várias e várias vezes fui levado por essas palavras à beirada da janela, ao meio fio do trânsito veloz, ao faqueiro da cozinha. Lembro, mais vezes do que valeria a pena contar, de analisar cada faca, testar lâminas, encontrar a mais afiada e fria, a que daria o talho limpo, rápido e profundo. Escolhida, a segurava rente ao pescoço, ensaiando um degolador experiente.
“Isso! Uma punhalada funda e depois é só circundar, deixar a junção do tronco à cabeça igual articulação dum action figure! Vai! Não perde a pilha agora! Não vacila, você vai me agradecer depois! Vamos vamos vamos, seja homem, faça, vai!”, quase em suplício para que eu completasse o ensaio, afinal. Voz soturna tremendo de antecipação. Como a tentação gostosa, a aliciação de explodir uma bomba no clique de um botão. O dedo raspando, ameaçando, sofrendo deliciosamente com a possibilidade.
O que nos traz mais perto do ponto em que decidi te contar tudo, como estou.
O dia em que finalmente fiz.
Um corte firme de lado a lado, lembrou o ato de rasgar um saco de iogurte. Certo e forte, e consciente de estar derramando todo o conteúdo. Senti a garganta travar, aos poucos. O pomo de Adão, um pouco mais rígido, rompendo fibras e cedendo ao fio implacável da lâmina. O caldo rubro enegrecido, quente, vivo, espalhando como chafariz seu conteúdo líquido, inaugurando o começo do fim.
E eu a matei.
Nem sei ao certo como te dizer, mas eu a matei. Curto e grosso assim, sem meneios ou formas de circundar o assunto antes de sua conclusão. Eu a matei. A vadia demoníaca que há tanto fazia usucapião da minha alma, e eu simplesmente a destrocei. Sem pensar realmente a respeito, ou entender como aconteceu, um talho de respeito que nenhum assassino maníaco se recusaria a aplaudir. Bem quando estava prestes a cortar minha própria garganta, girei em minhas certezas e o pouco restante de minha autoestima, virei o torso, corte ainda em embalo inicial e mirei certeiro nela. No demônio. Na voz que não deveria existir em mim, e não voltaria jamais.
O demônio pareceu aturdida com a situação. Ela caiu de joelhos, sua imagem se formou em mim, clara como o dia. Olhar misto de pavor e surpresa. Tateava sem ter como, errando em fechar o corte, inutilmente. Todos os ensaios que fiz. Todas as vezes em que me desequilibrei na corda bamba do abismo. Cada incerteza sobre voz dela ter razão.
Valeram a pena demais.
“Como? Como pôde fazer isto?”, a voz primeiro saiu baixa e gorgolejante, mas logo se tornou um grito de acusação. “Como se atreveu? Ficaríamos juntos! No vazio! Em paz, afinal!”
Ao gritar, toda aquela torrente negra imparável de sangue irreal parou de esguichar para se abrir de vez, uma represa vermelha de comportas abertas, anunciando inundação.
— Vou ficar perfeitamente em paz — disse calmamente, meus olhos fechados para o mundo, completamente abertos para ela.
Sua resposta foi um sorriso. Dois. Sua boca e o corte. Em paralelo. Ambas cheias de sangue, dentes, pedaços rompidos de músculos e nervos. E um sarcasmo, multiplicado por maldade e desdém, que nunca sairia completamente de meus pesadelos.
O sorriso se alargou mais e mais. Ambos alargaram. Rasgando fundo cabeça e pescoço, até a lâmina se desprender do osso entalhado em seu centro.
“Ha ha ha ha! Você ainda vai me chamar de volta, vai me implorar pra voltar!”, o demônio ralhou, em uma última cartada. “Quando notar nessa cabeça de merda que não resolveu nada. Quando perceber que a vergonha dos outros em tua presença não diminuiu. Quando a solidão te engolir, e ninguém suportar tua presença, e ninguém te abrir a boca nem pra perguntar as horas, e teus sonhos forem de ruas porcas vazias refletindo o que sobrou de tua vida pobre e triste sem mim!”
— Possível, mas prefiro acreditar que não — a conversa já tinha ido longe demais.
Agarrei a faca novamente pelo cabo, e a puxei. A força da retirada fez meu braço traçar uma meia lua de movimento. Quando a tensão chegou ao ápice eu o deixei voltar à origem, faca bem segura no punho, e cortei a cabeça daquela puta do inferno.
De vez.
A face horrenda inumana desceu como num tobogã, pelo corpo ajoelhado em minha mente. Quicou duas vezes ao bater contra o chão e desatou a rolar. Soltou um último riso, que soou gaguejante e amedrontado pelo movimento, até parar, e cessou.
De vez.
Eu estava livre.
De vez.
Concluindo, isso foi há quase um mês.
A vida segue. Às vezes segue melhor. Muito melhor. Fico satisfeito em dizer que o demônio e sua voz de conciliadora passiva-agressiva — ao contrário de tudo o que dissera por tantos e tantos anos, minha vida inteira de possessão — não fez a menor sombra de falta.
Enfim, solidão, se é que se aplica, não é tão ruim quanto o quadro que me foi pintado desde que nasci. Nem é tão solitária, aliás. Ou, se solidão é o que chamaria não ter aquela maldita presente e incessante em cada minuto dormindo ou acordado, ela é muito bem vinda.
Não pretendo te negar ou enganar. Às vezes até juro poder ouvir um grito, um sussurro, um murmúrio. Quando a noite está no fim, a bebida bateu, o trabalho é árduo, a caminhada é longa, a festa é curta, o cansaço tomou conta, ou a incerteza bate levemente na porta de minhas decisões, escolhas e caminhos.
Mas é como eu disse, pode muito bem ser o cansaço.
Finalmente estou em paz.
Para todas as outras coisas, há diversas soluções a se experimentar ou comprar.
O que sinto agora não tem preço.
Obrigado pela leitura!
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