kztironi Karina Zulauf Tironi

É estranho possuir algo dentro de mim sem nome. Ele não é um pulmão ou estômago, embora envolva muitas vezes todos os meus órgãos, não é algo que possa dizer "meu vazio está doendo!". Gostaria de poder lhe dar um nome, um endereço, apontar exatamente onde ele fica e dizer para todos que cuidem ao atravessar a área, pois está constantemente em risco de desmoronamento.


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Vazio

Tem algo muito interessante na forma do meu vazio. Às vezes parece que tem formato de lugar, um quarto meticulosamente bagunçado, uma cozinha com móveis sob medida, uma sala (ah!, a sala onde reúnem-se as visitas), e às vezes parece que ele tem forma de pessoa, minha mãe, meu pai, eu mesma, ou uma figura que não existe, mas que cuja falta constrói esse vazio.

Parece que mesmo que eu saiba apontar exatamente os cantos, pontas e curvas desse vazio, dizer com o que ou quem ele se parece, como é seu papel de parede ou a cor de seus olhos, eu não realmente o conheço. É estranho possuir algo dentro de mim sem nome. Ele não é um pulmão ou estômago, embora envolva muitas vezes todos os meus órgãos, não é algo que possa dizer "meu vazio está doendo!". Gostaria de poder lhe dar um nome, um endereço, apontar exatamente onde ele fica e dizer para todos que cuidem ao atravessar a área, pois está constantemente em risco de desmoronamento.

Notei esse vazio pela primeira vez em meados de junho de 2019, contudo, tenho certeza que ele já era vizinho do meu coração há muito mais tempo porque, apesar de parecer novo, era como uma face que você reconhece, sem saber exatamente de onde. Então, todas as vezes que me via sufocando às duas da manhã, também parecia um deja vú, uma terrível sensação de identificação, uma música/cheiro/voz que puxa um cordão de lã imaginário em meu cérebro, algo que eu deveria lembrar, que deveria fazer sentido...

Mas poucas coisas na vida fazem sentido. Se é que alguma faz completamente.

Hoje moro com meu namorado e me sinto muito feliz. É maravilhoso compartilhar a vida e a casa com ele; como lhe disse algumas vezes, parece uma festa do pijama na qual não sinto vontade de ir embora no momento que começa a escurecer. Nós dividimos as contas, as refeições, as risadas, os beijos e abraços, assim como caretas, lágrimas e palavras duras ditas sem pensar. Mas é um relacionamento sendo construído com carinho e paciência, nós o regamos todos os dias, às vezes um mais que o outro, e faz parte.

A única coisa que me assusta nisso tudo é que meu vazio anda muito quieto ultimamente. O que é ótimo, mas por quanto tempo?

Agora que já sei sua proporção, e o quanto é mutável, temo ficar cara a cara com ele novamente. Sentir novamente a impotência, a tristeza e o cansaço...

Em 2019, lembro que poucas coisas proporcionavam uma sensação de calmaria e leve felicidade, então, quando eu encontrava uma, me agarrava com unhas e dentes. Coisas eram essas: sair para caminhar com a minha mãe e depois chegar em casa, preparar um sanduíche e assistir aos jogos Pan-Americanos e, quando estava na cidade, assistir aos jogos com minha oma. Eram momentos em que eu, além de me entreter, me sentia acolhida como uma criança, vigiada e protegida. Com minha mãe e minha avó, o que poderia me atingir?

Nesses momentos, o vazio também parecia se acalmar, enrolando-se em um cobertor felpudo e tomando um Nescau quentinho, sentado no meu peito. Essa era sua folga, quando eu ainda me sentia estranha, porém, muito mais segura, como se tudo fosse se resolver no dia seguinte.

Claro, eu sempre acordava e meu primeiro pensamento era "será que hoje vou ficar bem?", mas todos os dias, mais ou menos depois do almoço, quando minha mãe e minha irmã se recolhiam para fazerem suas coisas, eu sentia ele novamente, ficando suas raízes em meus pulmões. Tudo ficava cinza e pesado, como um pesadelo, e eu só consegui acordar dele mais ou menos pelas cinco da tarde, quando o dia já estava terminando. Porque seria um dia a menos vivendo o vazio que me encontrava.

Quando lembro desses dias, é misto de melancolia e satisfação. Com certeza foi minha pior fase, ter que enfrentar algo diariamente, sem previsão de término, era como andar de pés descalços em asfalto quente, sem nenhuma sombra fresca à vista. Mas fico feliz por saber que esses dias ficaram para trás e eu fui vitoriosa, aguentei firme e fui recompensada com um oásis que não se provou miragem no final.

Eu tenho medo que o vazio acorde novamente, sim, mas apesar de tudo, sei que superei ele uma vez. Posso fazer mil vezes mais.







13 de Junho de 2022 às 22:16 0 Denunciar Insira Seguir história
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Karina Zulauf Tironi Como escrever sobre mim, quando me torno tantas outras pessoas enquanto estou escrevendo?

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