Aurora dos Tempos
A jabuticabeira finalmente foi plantada. Terminado o trabalho, Coaracy se sentou, junto ao tronco. Contemplava, enfim, a Criação.
Seus olhos estavam tão cansados quanto satisfeitos. E ali, recostado junto ao tronco, foram lentamente tosquenejando, não importava o quanto tentava mantê-los abertos. Até que os olhos flamejantes, cada vez mais pesados, não resistiram.
Com o fogo ocultado pelas pálpebras, a Terra caiu em trevas. Os bichos se encolheram em meio ao breu e as folhas, tão jovens, sufocaram.
E dentre as estrelas, ela ouviu a Criação gemer de medo.
Jacy desceu dos céus até a mata. Vagando entre as árvores primevas, finalmente o homem nu e de pele dourada dormindo junto a jabuticabeira.
O brilho flamejante do corpo adormecido de Coaracy foi refletido nos olhos e também e nos lisos cabelos negros da donzela. Reluzindo em prata, alumiou toda a Criação. Os peixes foram então reconfortados e as folhas, enfim, respiraram.
Jacy abaixou diante de Coaracy. Ao acariciar-lhe o rosto, ele acordou. Boquiaberto, contemplou os lábios delicados e seios firmes da donzela que, admirando-lhe o viril peitoral, desejava-lhe com a alma.
Num ímpeto, ela se lançou sobre ele, acomodando-se em sua ereta genitália, enquanto segurava-o pelos cabelos.
A paixão do beijo que se seguiu os fez arder.
Ele ofegava. Ela gemia. A penetração estremeceu a terra com o mover dos corpos, e a Primeira Montanha se formou com vento da libido dos amantes.
- NÃO!
A negativa dele fez chorar todos os pássaros da Criação.
- Coracy, meu amor! - ela suplicou, após ser tirada de sobre seu amante.
- Você não pode suportar meu calor – disse ele, subindo ao céu com lágrimas a descer pelos olhos – e a Criação precisa de você.
Ela também chorou, contemplando o céu. Ouvindo-a, feras e pássaros vieram consolá-la, enquanto as folhas caiam sobre seus cabelos, louvando silenciosamente por aquela que fora a Noite Primeva.
...
Minas Gerais, 1937.
- Quem será uma hora dessas? - murmurou dona Gestrudez, ao toque da campainha.
Abrindo a porta, a viúva recuou. Nunca vira na vida aquela mulher de longos cabelos negros e vestido longo azul. Ignorando sua estranheza, a mulher entrou pela porta, e olhava tudo em volta enquanto passeava pela sala de paredes brancas, estofados vermelhos e utensílios dourados.
Pasma, Dona Gertrudez apenas observava, ainda segurando a maçaneta.
No rádio, tocava Chão de Estrelas. O justo vestido, azul brilhoso, marcava o corpo esbelto da mulher.
-Você fará um favor para mim – disse ela, parada ao lado de um quadro na parede, onde figurava Dona Gertrudez, ainda jovem e vestida de noiva, ao lado de um homem de smoking.
- Que? - perguntou Dona Gertrudez, ainda junto a porta e segurando a maçaneta.
- Você comprará um imóvel abandonado na Cidade de Serafins. Lá, construirá uma casa de repouso, contratando médicos e enfermeiros. Haverá um único quarto, para um único hóspede.
Dona Gertrudes, franzindo a testa, suspirou antes de refazer a primeira frase que lhe viera à mente. Confusa, substituindo-a por uma pergunta:
- Quem será este hóspede?
A mulher então contemplou o relógio. Marcava meia-noite em ponto.
- O hospede surgirá quando você terminar de construir...
- E eu vou...eu...eu vou pagar pela estadia? Desta pessoa? – perguntou Dona Gertrudes.
- Não. E a pessoa ficará somente duas semanas. Depois, irá embora. Mas esteja atenta ao seu retorno. Ela voltará.
A anfitriã viu a mulher passar de novo pela sua sala, em direção à porta. Seguiu pelo quintal, indo embora com Lua Crescente sobre si. E, antes de ir embora, ela olhou de forma blasé por cima do ombro:
- Mais uma coisa. Você terá de inaugurar a casa de repouso e receber seu paciente na última noite da Lua Cheia, assim que concluir as obras. Tão logo o sol se ponha - concluiu.
A mulher então atravessou o jardim, saiu pelo pequeno portão e desapareceu virando a esquina, debaixo do olhar de D. Gertrudes, de pé junto à porta e ainda segurando a maçaneta.
...
Dona Gertrudes ouvia outra balada triste no rádio ao lado da cama. Lá ficavam um copo com água e comprimidos. Madrugada após madrugada, era a mesma coisa:
- Quem é aquela mulher? Que estanho pedido era aquele? Como não consigo tirar isso da minha cabeça? - se perguntava a viúva.
Quando o sol raiou, Gertrudes se decidiu. Foi até uma corretora de imóveis, e começou a agilizar a compra do imóvel. Chegou em casa cansada como nunca, deitando-se na cama. Mas, finalmente, após dias, dormiu. Dormiu como há muito não dormia. Sonhou como há muito não sonhava. Doces sonhos, nos quais dançava e bebia com seu falecido marido.
Assim se passaram as semanas. Conforme a obra se aprontava, os sonhos se tornavam cada vez mais intensos.
A última Lua Cheia se aproximava.
...
O sol se punha. Dona Gertrudez esperava em frente à casa de repouso, entre lojas, boutiques e cafés da movimentada rua de Serafins. Ao lado dela, esperavam também enfermeiro de roupa branca e uma cuidadora de uniforme azul.
- Me informe as horas, por favor - pediu Dona Gertrudez a um dos enfermeiros.
Ele não respondeu a tempo. Todos se voltaram para o fim da rua assim que notaram a cena. As luzes dos postes foram todas se acendendo, e da esquina surgiu um Chevrolet - 1915 vermelho sangue, avançando pela rua molhada da chuva que caíra durante o dia.
Dona Gertruzes arregalou os olhos. Lá estava ela! A mulher que havia lhe procurado semanas atrás! Ela vinha no banco elevado da parte de trás do carro, entre dois rapazes de smoking branco e flores-de-maio adornando o bolso de seus paletós. Beijava a ambos, mordiscando seus lábios entre gargalhadas e doses de champanhe.
O carro logo estacionou diante a casa de repouso. Auxiliada pelo motorista, a mulher desceu, afetada no andar, segurando parte do justíssimo vestido vermelho que trajava.
- Então? – perguntou ela, com sorriso aos lábios e voz embriagada – onde fica meu quarto?
A cuidadora a acompanhou para dentro da Casa de Repouso, cuja porta ficou aberta. E, do lado de fora, Dona Gertrudez observava a cena, boquiaberta, iluminada pelas lamparinas da rua e pela tênue Lua Cheia no céu.
Obrigado pela leitura!
Podemos manter o Inkspired gratuitamente exibindo anúncios para nossos visitantes. Por favor, apoie-nos colocando na lista de permissões ou desativando o AdBlocker (bloqueador de publicidade).
Depois de fazer isso, recarregue o site para continuar usando o Inkspired normalmente.