joao-neto1633683396 João Neto

Um conto de natal do ponto de vista dos miseráveis e excluídos de nossa sociedade. Após passar boa parte do ano juntando o dinheiro necessário, pai e filho vão a um shopping comprar o tão esperado presente de natal.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#natal #violência #racismo #preconceito #pobreza #são-paulo
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Feliz Natal

O sorriso do pequeno Matheus abre uma fenda de luz no circuito de videomonitoramento do Shopping Morumbi.

Mesmo daquele ângulo isométrico e com aquelas lentes de baixa resolução — cinematografia tão comum na reportagem policial dos jornais da tarde — pode-se ver o sorriso incompleto de Matheus, que há poucos dias perdera seu primeiro dente de leite. Ele não sabia, mas seu dente caiu prematuro, fruto de uma má nutrição que o acompanha desde o primeiro dos seus cinco anos de vida.

O garoto entrou no shopping acompanhado por seu pai, por sua mochilinha azul desbotada e pelos olhares dos seguranças. Não percebeu os últimos, posto que haviaoutros e mais interessantes estímulos ao seu redor.

Ao passar pela porta do shopping, Matheus foi recepcionado por uma corrente de ar fresco que em nada lembrava o abraço quente do vento que sopra nesta época do ano nas ruas onde cresceu.Esse ar gelado trouxe consigo um cheiro que nunca havia sentido antes. Um cheiro doce, que lhe embriagava os sentidos e que lhe fazia esquecer-se de seu próprio cheiro.

Quando seu olfato se adaptou à nova realidade, seus ouvidos passaram a registrar asuave música que parecia vir de todos os lugares e de nenhum ao mesmo tempo.

Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells chime in jingle bell time

Dancin' and prancin' in Jingle Bell Square

In the frosty air

Reconhecia na música o coro e o ritmo do refrão, mas ela entoava um idioma estranho, com palavras que seu pai ainda não tinha lhe ensinado.

Por falar em seu pai, Jerônimo segurava a sua mão. Desenlaçou-a brevemente paraimparo suor que se acumulava em sua testa negra e rugosa. Foram quarenta minutos de caminhada sob o sol de dezembro até chegar àquela parte da cidade. Sua velha camisa bege estava ensopada de suor, mas cada botão pendia abotoado.

Jerônimo vive há 48 anos na rua.

Aos 12 anos perdeu a audição devido a uma infecção não-tratada. Foi abandonado por sua mãe e passou a mendigar. Depois: engraxate, flanelinha, carpidor, carregador de caminhão. Há quatro anos decidiu aprender a contar e virou vendedor de balas. Hoje ensina o ofício a seu filho.

Ao passar pela porta do Shopping Morumbi, Jerônimo viu o mesmo teatro que maravilhou Matheus, mas com duas importantes exceções: não ouvia os sinos e já conhecia aquela peça. Ele viu a grande árvore de plástico, a neve de algodão, as renas de gesso com seus narizes de lâmpadas incandescentes, viu o boneco de gorro vermelho e barba sintética, viu os pisca-piscas: montes de vagalumes coloridos e mortos.

Acima de tudo, viu os rostos — multidões sorridentes indo para lá e para cá. Achou todos tão mais limpos e claros e bonitos que ele. Não sabia porque, mas sentiu raiva. Uma raiva que só tem aprendeu que existir é uma grande humilhação. Teve vontade de sair dali.

Mas não pôde, pois seu filho sorria.

Matheus era uma criança. Uma criança sem televisão, sem internet, sem acesso à literatura, mas era uma criança. E, por ser criança, ele adorava super-heróis.

Alguns meses atrás, Jerônimo encontrou seu filho gritando, próximo a sacos de lixo. Seu coração disparou, sabia que as sacolas que guardavam o alimento que precisavam para sobreviver por mais um dia também escondiam perigos. O homem correu até o garoto e o viu segurando um pedaço de papelão. Era uma embalagem de fastfood. Nela, via-se em letras amarelas as palavras “PANTERA NEGRA” e uma ilustração do herói saltando para frente, mostrando as garras como se quisesse ser o primeiro a revirar a xepa da feira em busca de alimento. A criança sorria, pulava e abraçava aquele pedaço de papel. “Pantea, pantea!”.

Aquele naco de papelão logo se tornou o brinquedo preferido de Matheus. O “Pantea” lutava contra garrafas plásticas, chinelos velhos e todo o tipo de imundices que lembrassem um vilão. De alguma maneira, o “Pantea” sobreviveu a todos os encontros, e acompanhava seu filho para onde quer que fosse — dentro de sua mochilinha, envolto aos inimigos de sempre.

Aquele pedaço de papelão fez o garoto começar a sonhar alto. Agora ele queria um boneco do herói.

Aos cinco anos, Matheus passou a trabalhar mais horas nas ruas. Além de caixeiro, aprendeu a encontrar vagas de estacionamento, assar amendoim e quais os melhores horários e cruzamentos para mendigar.

Se é verdade que o trabalho dignifica o homem, então — respeitada a justa proporção — com a criança não deve ser tão diferente. Por isso hoje, antevéspera de natal, Matheus sentia-se digno. Compraria o boneco, colheria os louros de sua labuta.

Os três atravessaram a multidão de rostos lindos e rosados. Não precisaram procurar muito até acharem uma grande loja de brinquedos.

Do lado de fora, um palhaço gesticulava e brincava com as crianças que passavam. Matheus olhou para ele e viu sobre seu olhar alegre o mesmo suor que se acumulava nas rugas da testa de seu pai. Cumprimentou-o sorrindo e recebeu dele um pirulito e um sorriso ainda maior, embora menos espontâneo.

Se o natal realmente existia, então não havia equívocos: tinha que ser aquele lugar.

Entraram na loja.

A mão de seu pai se apertava mais firmemente à de Matheus quanto mais pessoas se aglomeravam ao redor deles. Era uma imensa loja de departamento, e o fluxo incessante impedia que eles examinassem com a atenção necessária as prateleiras. Ficariam perdidos em meio a tanta gente não fosse a experiência que acumularam nos anos em que viveram entre os incontáveis carros, ciclistas e pedestres nas ruas da capital.

Os dois andaram mais um pouco pelos labirínticos corredores da loja, sem sucesso.

Até que uma mulher veio ao encontro deles. Ela vestia um uniforme com as cores da loja, em seu peito um crachá trazia em letras grandes a palavra “GERENTE”. Ela perguntou o que eles queriam e, antes de qualquer resposta, completou dizendo que eles deviam ir embora. Jerônimo olhou para o filho e fez um gesto ansioso com as mãos. A criança entendeu. Abriu a mochila e entregou seu estimado pedaço de papelão ao pai. Na aflição do momento, nem lembrou-se de fechar a bolsa.

Jerônimo mostrou a imagem amassada, suja e desbotada do herói para a gerente. “Quero boneco”. A mulher gesticulou com a cabeça, falou qualquer coisa num tom ríspido e acenou para a saída, aparentemente já não havia mais bonecos daquele, esgotara.

A decepção nos olhos do pai comunicou a Matheus tudo o que ele precisava saber. O garoto pegou de volta seu recorte do Pantera Negra e segurou-o delicadamente com as duas mãos.

Seu pai sentiu em seu próprio peito a tristeza que estampava o rosto do filho. Buscando uma saída, olhou para os lados e viu, numa prateleira um pouco mais acima, um carrinho de polícia. Apontou para ele. Matheus sorriu, pensou que o carro seria um substituto adequado, ao menos por enquanto. Ele nunca tinha visto os filmes ou lido as revistinhas mas, naturalmente, um herói justo e correto como o “Pantea” andaria pela cidade em um carro de polícia para combater o crime.

Vendo o sorriso do filho, o homem deu-lhe as costas para encarar a prateleira e esticou-se para alcançar o carrinho.

Nesse momento, uma criança se aproximou do filho de Jerônimo. Ela era branca, cabelos pretos e brilhantes, olhos azuis e devia ser um ou dois anos mais nova que Matheus, embora fosse ao menos um palmo mais alta e 10 quilos mais pesada.

O garoto viu o encarte que Matheus segurava. “Você também gosta do Pantera Negra?”. Matheus assentiu. Então o recém-chegado mostrou o boneco que segurava: era ele, o Pantera Negra. Um boneco grande, ainda na caixa, lacrado e com o adesivo da loja. A gerente mentira? Não importava. A criança estendeu o boneco a Matheus, “Presente de Feliz natal pra você”, disse, na gramática torta da infância.

Matheus não reagiu. Ficou parado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Levou as mãozinhas ao rosto, tentando segurar o choro, mas não era mais possível. Chorava e não sabia se de alegria ou de surpresa: não sabia que coisas boas também pudessem acontecer na vida. Se o natal realmente existia, devia ser aquele instante.

Vendo que Matheus não estendia as mãos para receber o presente, seu novo amigo colocou o boneco em sua mochila, em meio aos chinelos e garrafas plásticas. Em seguida, a criança abraçou Matheus, numa tentativa de consolá-lo.

Foi quando a mãe do garotou chegou e puxou seu filho com violência. “O que está fazendo, Henrique? Sabe que não pode se afastar de mim. Sabe que não pode falar com estranhos”. As bochechas rosadas do garoto se avermelharam e ele foi embora, chorando.

Jerônimo não ouviu nada, nem poderia. Viu a criança ir embora sem entender. Viu o filho aos prantos. Gesticulou pedindo que o filho explicasse o que havia acontecido, mas Matheus ainda estava em choque com o gesto de inocência e carinho do garoto Henrique, e da reação violenta da mãe dele. Matheus conhecia mais a reaçãodela do que a ação do filho, conhecia mais o desprezo que a caridade. A contradição era demais para seu pequeno cérebro, que reagia como sabia: chorava e chorava.

Ao ver a situação do filho e a cena estranha da mulher carregando a outra criança para longe, Jerônimo teve um mal pressentimento. Pensou que seu filho tivesse brigado com a outra criança. Pensou que aquela mulher já estava, neste instante, falando com a gerente. E que a gerente, por sua vez, falava com a polícia. E que a polícia, como era hábito, devia estar com armas em punho, gritando ordens às suas costas. Ordens que ele não poderia ouvir.

Jerônimo segurou mais uma vez a mão do seu filho e foi ao caixa a passos rápidos. Tirou as notas amassadas e moedas do bolso da camisa bege suada que vestia. Sua mão tremia, o pensamento era difuso, queria ir embora.

Matheus, por sua vez, notou a preocupação do pai. Queria explicar-lhe que aquele era o dia mais feliz de sua vida, queria contar que acabara de ganhar de presente o boneco com que tanto sonhou, queria dizer que o natal é um dia em que a lógica da fome, da suspeição e da violência não se aplicam.

Pagaram pelo carrinho e saíram apressados, um sem conseguir falar e o outro sem poder ouvir.

As luzes de natal piscavam em vermelho e branco.

Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells swing and jingle bells ring

Enquanto se aproximava da saída da loja, Jerônimo foi se acalmando. Tudo está bem, não tem ninguém atrás de nós, o presente está pago, deve ter sido uma briguinha besta, coisa de criança. Matheus é uma criança esperta, sabe que não pode se meter com essa gente. Jamais faria uma maldade a outra criança.

Snowin' and blowin' up bushels of fun

Now the jingle hop has begun

Enquanto se aproximava da saída da loja, um pensamento passou a tomar conta de Matheus. Algo está errado, como um menino menor do que eu ia me dar um boneco de presente? Tudo no mundo tem um preço, é o que meu pai me ensinou. Eu vi quando ele colocou na minha mochila, o boneco ainda está com a etiqueta da loja. Isso não é presente, ninguém pagou por ele. Henrique é uma criança inocente, eu sou uma criança burra.

Foi quando pai e filho atravessaram o portão de saída.

What a bright time, it's the right time

To rock the night away

A luz antifurto se ascendeu em vermelho, mas Matheus não compreendeu: deviam ser luzes de natal.

Jingle bell time is a swell time

To go glidin' in a one-horse sleigh

A sirene antifurto soou. Mas Jerônimo não ouviu nada, nem poderia.

O palhaço na porta da loja olhou assustado para os dois.

Giddy-up jingle horse, pick up your feet

Jingle around the clock

Os seguranças os abordam, tentam tirar o carrinho de polícia das mãos de Matheus.

Jerônimo não aceita, “Paguei, paguei”, grita. Tenta se colocar entre o filho e os seguranças. Recebe um soco.

Mix and a-mingle in the jinglin' feet

That's the jingle bell rock

Um dos seguranças empurra Matheus. O carrinho escapa de suas mãos e seu corpo se choca contra uma vitrine. Seu rosto bate contra o vidro e ele perde mais um dente, este também caiu prematuro.

Jingle bell, jingle bell, jingle bell rock

Jingle bells chime in jingle bell time

O segurança pisa sobre o peito de Matheus para mantê-lo no chão. O fedor que vem da sola bota do homem dissipa o aroma doce e artificial do ar condicionado e faz Matheus recordar-se de seu próprio cheiro.

Seu pai salta contra o guarda, que puxa a pistola.

It’s Christmas.

Dentro da mochila, o boneco do Pantera Negra quebra-se sob o peso da bota do guarda. A garrafa plástica e o par de chinelos — seus antigos inimigos — dobram-se ao seu redor, como uma cadela vela sobre sua ninhada para protegê-la dos perigos da noite.

As lágrimas do pequeno Matheus abrem uma fenda luminosa no circuito de videomonitoramento do Shopping Morumbi.

Nesta sexta-feira, véspera de Natal, um homem identificado como Jerônimo da Silva foi morto após tentar roubar uma loja no Shopping Morumbi. Jerônimo estava acompanhado de um menor de idade, que foi encaminhado para um instituto sócio educativo. As câmeras de vigilância registraram o momento em que, durante a fuga, o alarme da loja disparou e os dois suspeitos foram abordados pelos seguranças. A loja não divulgou os valores furtados, mas a polícia afirma que esse tipo de crime é muito comum nesta época do ano...
27 de Dezembro de 2021 às 17:31 2 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Nana Cardoso Nana Cardoso
Nem sei o que comentar... Você conseguiu passar a realidade nua e crua de um jeito fantástico, parabéns. Só gostaria que histórias assim não acontecessem na vida real, mas infelizmente acontecem todos os dias...
January 15, 2022, 16:16

  • João Neto João Neto
    Sem dúvidas, o mais dolorido nessa história é saber que, em algum lugar do Brasil, violências como essa estão se repetindo neste instante e não ficamos sabendo. A capacidade da arte em jogar luz nos locais mais sombrios da nossa sociedade (e humanidade) é o que mais me fascina. É como se a arte operasse uma inversão dos valores, colocando em destaque tudo aquilo que tentamos esconder. Mais uma vez, muito obrigado pelos comentários. <3 January 15, 2022, 17:08
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