silva_verso Silva

Após uma tragédia pessoal, Peter Parker sente o peso da culpa e questiona se realmente é um herói. Ao receber cartas de uma criança num hospital, Parker percebe que talvez seja a hora do Homem Aranha retornar uma última vez. Conto disponível em áudio no canal Conto Um Conto. Narração: Marcelo Fávaro



Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#spiderman #homemaranha
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Poder e Responsabilidade

*Nota: Não há spoilers do filme nem nada que envolva multiversos. Podem ler sem medo. ;)



Era uma noite fria e nublada de dezembro quando ela deu seu último suspiro. Peter recebeu a ligação enquanto vagava por entre os prédios do Brooklyn, acompanhando as viaturas da polícia que corriam para uma ocorrência. Sirenes azuis e vermelhas ressoavam pela avenida tal como o reflexo de seu traje sobre as vidraças dos edifícios. E então ouviu o toque. Lançou a teia numa gárgula, balançando-se até a amurada onde pousou em pé. O celular tocava insistentemente. De novo e de novo como o baldar do sino duma igreja. Seu sentido estremeceu, embora negasse seu maior receio com veemência. Afinal ela estava melhorando, era questão de tempo até os antibióticos fazerem efeito e Tia May estaria em casa até o Natal, decorando a árvore e escondendo o presente que daria a ele como sempre fazia. "Vai ficar tudo bem..." Repetiu para si o que dizia durante às visitas na UTI, ainda que sua certeza fosse abalada quando olhou visualizou o número do hospital na tela do aparelho.

Hesitou, embora terminasse por atender a chamada, o compasso irregular na fala da moça o fez temer pelo pior. E este último temor chegou-lhe aos ouvidos pouco depois. Tia May havia tido uma parada cardiorrespiratória. Os médicos lutaram para reanimá-la, mas ela não resistiu. Parker já recebera golpes terríveis nos últimos 15 anos, tiros, tentáculos de metal, explosivos, choques elétricos, garras lacerantes... Entretanto, nenhuma dor se comparou ao que sentiu nos segundos que se seguiram após aquela ligação. A respiração pesou, e ele agachou-se enquanto a chuva caía sob a cidade ao som de trovões. Baixou a cabeça enquanto gotículas desciam pelas lentes brancas da máscara escarlate. Puxou-a do rosto molhado, ergueu a cabeça ao céu noturno enquanto uma tempestade de lágrimas corria em seus olhos aflitos. Gritou; sentindo um aperto no peito e o peso da impotência diante do destino inevitável que revelava uma cruel ironia. O Homem Aranha salvou milhares de estranhos, mas sequer conseguiu salvar as pessoas que mais amava. Tio Ben, Gwen Stacy e agora, sua querida Tia May o havia deixado com a angústia da solidão e da culpa de não ter feito o suficiente.

...

Havia uma linha tênue entre o cinza do céu, o preto das roupas e o choro de amigos que acrescentava o silêncio do pesar aos funerais. Ali todos se deparam com o fim pelo qual um dia haverão de passar. May fora sepultada ao lado de Ben, como passara a maior parte da vida. Parker ia visitá-los todos os dias, sob máscaras negras. Algumas vezes dizia poucas palavras, outras contava sobre os problemas no Clarim Diário e sua demissão, ou simplesmente ficava ali diante da lápide, quieto enquanto os olhos se enchiam d’água. O que mais lhe doía no peito era não ter tido a chance de se despedir, como se parte de si tivesse arrancada sem aviso algum. Ele podia ter força sobre humana, podia saltar de grandes alturas e escalar paredes, mas nada podia fazer contra um inimigo invisível, um vírus que ceifou inúmeras vidas em tão pouco tempo. Caminhou mais um pouco entre os túmulos, enfiou as mãos no bolso do casaco parando em frente em frente ao jazigo de Gwen Stacy. Próximo dali um senhor meio calvo de máscara, vestindo um macacão azul e cachecol vermelho sobre o pescoço, fazia a limpeza com uma vassoura, tirando o excesso de folhas mortas que caíam das árvores. Se aproximou devagar, assobiando a popular canção sobre o Cabeça da Teia. Peter olhou-o de soslaio, no bolso do macacão havia um nome bordado: “Excelsior.”

― Nossa, tá meio nublado hoje, mas acho que é só uma nuvem passageira. ― Comentou com uma voz suave e um pouco rouca.

― É, acho que sim. ― Peter concordou, levando os olhos ao céu que aos poucos adquiria um tom ensolarado. O velho, levou as duas mãos enrugadas ao cabo de vassoura e ficou ao seu lado.

― Sabe filho, já vi muitas despedidas por aqui. E com certeza ninguém quer dar adeus à alguém que ama. Todos temos o nosso dia, e infelizmente há dias como esse, em que tudo parece mais... escuro. Mas acredito que o mais importante é o que fica dentro de nós, quem eles foram e quanto marcaram nossas vidas. Talvez... talvez desse jeito, eles continuem vivos conosco. ― Pousou uma mão sobre o ombro de Parker e foi-se caminhando enquanto o sol aos poucos se erguia entre as nuvens. Peter instou ali por mais alguns instantes, lembrando-se de algo que carregava no bolso. Um envelope que uma das enfermeiras havia lhe dado no hospital. Seu conteúdo eram algumas pequenas cartas em folha de caderno assim endereçadas: “De Sarah J. Ditko para o Homem Aranha.” Afinal ele tirava fotos do Teioso, então talvez poderia encontrar o herói e entregar a correspondência de uma pequena fã.

...

De volta ao pequeno apartamento, acabou ignorando o aviso de despejo na porta e após um banho, preparou um macarrão instantâneo com o pouco do gás que ainda restava. Enquanto fazia a refeição, encarava aquele envelope branco na mesa. Por um instante pensou em jogar fora, mas por desencargo de consciência decidiu abrí-lo e pôs-se a ler aquelas cartas, onde haviam pequenos versos e desenhos sobre o Cabeça de Teia, alguns feitos à lápis de cor, outros com giz de cera. Por havia um bilhete da enfermeira sobre a situação da Sarah, uma garota de 12 anos, internada no quarto 62 que havia se recuperado da covid-19, mas ainda travava uma batalha contra a leucemia. Aquela garotinha com tão pouco tempo de vida fazia da escrita seu refúgio de esperança, como uma pequena fagulha de luz em sorrisos que superavam o medo do prognóstico. Naquele momento, Peter lembrou das palavras de sua tia quando segurou sua mão naquele leito de hospital pela última vez:

"― Peter meu querido... todos nós temos escolhas difíceis na vida, e nem sempre é fácil escolher o bem. Mas se tiver a chance de ajuda alguém, por mais difícil que seja o caminho, sei que tudo fará sentido depois. Mesmo que se sinta sozinho, nunca se esqueça de quem é, e do quanto seu tio e eu nos orgulhamos muito de você. "

...

O lápis vermelho percorria a folha de papel enquanto Sarah acrescentava mais um desenho à sua coleção. Uma tv com volume baixo exibia um talk show. O som repetitivo das máquinas ao redor que mediam seus sinais vitais não impedia a mente da garotinha de pele morena e cabelos enrolados de ir longe em sua criatividade. Abaixo da máscara branca, sua respiração ainda era suprida pelo cateter de oxigênio que repousava em suas pequenas narinas. O acesso dos medicamentos na veia direita atrapalhava um pouco, embora ela não deixasse de pintar e escrever sempre que tinha alguma ideia nova. Sentia-se melhor quando colocava seus pensamentos na ponta do lápis, era quase como se pudesse transferir sua ansiedade para algumas linhas de palavras e desenhos.

― Ei psiu... ― Sarah ouviu a voz e olhou confusa para os lados ao não ver ninguém.

― Oi, aqui em cima. ― O Amigão da Vizinhança acenou para ela do teto, pendurado de ponta à cabeça por um fio de teia.

― H-homem Aranha?! Não acredito! É você mesmo?

― Em teia e osso... ― Desceu pelo fio e aterrissou suavemente, ficando em pé diante dela ao acrescentar: ― Meu amigo Peter me passou suas cartas e disse que você queria me ver.

― Sim sim! Eu queria muito te conhecer pessoalmente, sou sua fã! Parece até um sonho!

― É, não escuto isso todo dia... Nossa, esse seu desenho é novo? ― Indagou-lhe admirado e ela confirmou com um sorriso por baixo da máscara. ― Eu li suas cartas viu? Você desenha e escreve muito bem, é super talentosa! ― Elogiou aproximando-se do leito ao se deparar com a ilustração. Era uma luta contra o Dr. Octopus num trem. ― Olha só os detalhes... queria ter tido esse talento na escola, me ajudaria muito em artes e literatura.

― Sabia que você ia voltar. Ouvi algumas enfermeiras conversando no corredor, elas achavam que você tinha sumido pra sempre.

― Eu também achava, tive uns problemas. Mas ainda bem que mudei de ideia né?

― Peraí... você tem problemas, mesmo com superpoderes?

― Bom Sarah, se alguém inventar um superpoder anti problemas eu quero ser o primeiro da fila. Além dos vilões, acho minha roupa entrega que eu tô vermelho, meu aluguel tá atrasado e também perdi meu outro emprego.

― Poxa, eu sinto muito. Mas você vai sair dessa né? O Homem Aranha nunca desiste.

― Vou fazer meu melhor. Mas e você? Há quanto tempo tá por aqui?

― Acho que hoje faz uns 6 meses. Ah! Tive alta da UTI ontem.

― Que maravilha Sarah! Você é uma guerreira aqui. Logo logo vai poder voltar pra casa.

― Sim! Tô com tanta saudade dos meus amigos do orfanato... Pena que ninguém pode vir me visitar até eu melhorar. ― Peter ficou em silêncio por um relance, e então revelou:

― Eu... Trouxe um presente. Acho que você gostar. ― O Aranha tirou uma luva, revelando um apetrecho de metal acoplado ao seu pulso. Para Sarah parecia uma espécie de relógio, exceto pela mola de aço que estendia-se até metade da palma.

― Wow, então é assim que você lança suas teias? Cara, isso é muito maneiro!

― Valeu! Não foi tão difícil de fazer, é como as pilhas do controle remoto que precisam ser trocadas. Só que nesse caso, as pilhas têm fluido de teia que com o gatilho criam linhas resistentes e flexíveis. ― Explicou enquanto ajustava o equipamento no pulso da garota. Sarah começou a atirar pelo quarto, com reações de empolgação e divertindo-se como se tivesse ganhado um brinquedo novo. De repente, a programação da TV mudou para as notícias de última hora. Imagens da Torre Oscorp foram exibidas com a manchete título: Sexteto Sinistro escapa e causa caos em Nova York. Segundo a reportagem, houve um confronto com a polícia nas imediações do local, e civis acabaram feridos.

Temos a confirmação de que três policiais morreram. Ainda não sabemos o paradeiro do Homem Aranha. Podemos ver cidadãos erguendo placas nas ruas, bandeiras nas janelas dos edifícios e uma corrente avassaladora nas redes sociais pede pelo seu retorno.”

― Agora eu preciso ir. Pelo jeito esses caras não aprendem.

― Você vai lutar contra os seis? É muito perigoso!

― Sempre gostei de desafios matemáticos, acho que vou ter que resolver esse.

― Mas...

― Vamos fazer um trato, Sarah? Eu luto lá fora e você continua lutando aqui até voltar pros seus amigos. É, vai ser um pouco difícil, mas nenhum de nós dois pode desistir. ― Peter fez a proposta e ergueu um punho fechado. ― Promete?

― Eu prometo. ― Respondeu repetindo o gesto e com um sorriso de convicção. Pouco depois, Peter caminhou até a janela, abrindo-a rapidamente, mas antes que saltasse, a garota o interrompeu.

― Sr. Homem Aranha?

― Sim Sarah? ― Olhou para ela por cima do ombro, a menina estava com os olhos marejados.

― Obrigada, obrigada de verdade... ― Parker respirou fundo e então respondeu:

― Não Sarah, eu que agradeço. Sinceramente, você me salvou.


...

O poente alaranjado tingia os céus de Nova York, reluzindo sobre as lentes. Acrescentando um lançador reserva ao pulso esquerdo, Parker fitou a cidade por um instante. E então respirou, pouco antes de correr pela cobertura do Edifício Baxter quando finalmente deu o salto. Sob as luvas vermelhas, os dedos do meio e o anelar chegaram à palma das mãos. Lançando-se entre os prédios, rodopiava no ar e corria pelas paredes enquanto cruzava velozmente o trânsito movimentado das avenidas com suas teias. No solo, cidadãos vibraram em polvorosa. Um nome ecoava pelas ruas, estampava-se em sorrisos e corria pela cidade como um fulgor de esperança. “Homem Aranha”. Alguns minutos depois, enfim chegou à Torre da Oscorp.

Numa cambalhota, desviou-se duma rajada elétrica amarelada, e em milésimos de segundo, seu sentido ressoou. Um grande punho de areia surgia por detrás de si. Disparou uma teia até uma das caixas d’água, escapando do golpe para em seguida ouvir uma risada horripilante, esta foi sucedida pelo arremesso daquela maldita granada alaranjada, vinda de cima onde um planador verde sobrevoava. O Teioso deu um salto mortal para trás, ao passo que um fio de teia correu até o explosivo, lançando-a contra o gigante e escamoso réptil que corria até ele exibindo uma fileira de dentes afiados. Veio a explosão, e da fumaça, um brutamontes com uma armadura de rinoceronte surgiu. Peter acionou os lançadores mais uma vez, pegou impulso e balançou-se no ar, indo de encontro, levando os dois pés até a face do grandão chifrudo. No entanto, sua perna esquerda fora agarrada por um tentáculo mecânico. Jogado violentamente contra uma vidraça, sentiu as costas arderem com o impacto, além dos cacos de vidro que deixaram rasgos vermelhos no traje e em sua pele. Ergueu-se rapidamente e revidou com as teias, acertando-lhe o rosto e os olhos. Apoiou as duas mãos num dos tentáculos e girou, fazendo piruetas à esquerda e à direita para esquivar-se dos outros três.

Pulou mais uma vez, acertando-lhe um forte soco no rosto, fazendo-o cair. Saiu pela janela e escalou de volta à cobertura onde deparou-se com olhares de fúria e satisfação pela desvantagem numérica. Octavius subiu logo depois, completando o temível bando que ansiava pôr um fim sangrento ao aracnídeo que inúmeras vezes arruinara seus planos. Agora, os seis inimigos cercavam-no como uma presa indefesa. O herói agachou-se com uma mão no chão enquanto erguia a direita, esperando o ataque. Por baixo daquela máscara Peter carregava seu fardo e privilégio, sua benção e maldição. As palavras de Tio Ben lhe vieram no momento. “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.” Por fim, soltou um sorriso e fez uma troça antes de seus lançadores dispararem mais uma vez.

― Só mais um dia na vida do Homem Aranha.


14 de Dezembro de 2021 às 00:11 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Silva Alguém que escreve para escapar das garras do tédio.

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