vonwavy João Victor Guerra

Um canário parecia ter sido solto no meu peito. Um trem investiu contra nós dois numa velocidade anormal. A realização se chocou contra mim, atordoante.


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#curto #trem #passaro #sonho
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Canário

Um canário parecia ter sido solto no meu peito - ou talvez eu tivesse engolido o canário enquanto dormia -, batendo as asas, resfolegando e triscando as penas cor de limão nas paredes do meu interior, movendo minhas costelas levemente de lugar (da mesma forma que se ajusta um móvel que de repente ficou desalinhado no quarto). A qualidade do ar que chegava até mim era tão mística que tornava o ato de respirar um fenômeno artificial; as coisas estavam tão justas nos trilhos que esperei o primeiro trem para me levar daquele sonho. Esperei com um tipo de paciência melancólica, e, no fim, o trem veio rasgando a atmosfera com uma locomotiva que expelia fumaça suficiente para cobrir o céu puro da charneca.

Chuc-Chuc-Chuc-Chuc-Wooooooooooooooon

As imagens cativantes do horizonte tornaram a perder a vibração, ficando mais pálidas a cada tique e diminuindo o fluxo. Perder o fluxo tinha quase o mesmo impacto de uma desrealização compulsiva que fica casualmente na espreita, preparada para atacar sempre que uma pressão externa se torna um fardo muito pesado. Diminuir o fluxo significava que as pilhas estavam começando a falhar, que a energia diminuía e que o algoz te reclamava por fim. Eu estava agora sentindo os efeitos de uma transição do diminuir para o perder.

O canário estava ficando mais fraco, quase enfermiço. Era um copo de água deixado numa mesa perto da janela pela manhã que ficou vazio quando a noite chegou. Ainda conseguia sentir algumas coisas fora de ordem - coisas que o pássaro mexeu e se esqueceu de organizar. Tentei, mas não tive forças para segurar a imagem vibrante da charneca. O fluxo caiu para próximo de zero unidades por tique. A energia acabou, aquela realidade começou a morrer. O canário também havia morrido, mas seu pequeno corpo em formato de folha ainda permanecia, repousando sem vida e agarrado em algum espaço entre meu pulmão e fígado.

A pior parte de tudo era ter a realização de que não era real; era tentar agarrar uma mentirinha que sua cabeça transformou em uma peça de tragédia, uma piada cruel sem data para expirar.

Chuc-Chuc-Chuc-Chuc-Wooooooooooooooon-Chuc-Chuc-Chuch

21 de Novembro de 2021 às 02:05 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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