⠀⠀⠀⠀No auge de seu heroísmo, Cíntia Andorinha era uma guerreira crescida e independente, dona de seu próprio reino de cinquenta metros quadrados e domadora de duas feras brutais de dois e quatro quilos respectivamente.
⠀⠀⠀⠀Diariamente travava combates e quase nunca os perdia. Bestas de metal engolidoras de gente, insignificantes criaturas pouco civilizadas que berravam como crianças em seus ouvidos, e o pior de todos: O demônio ganancioso que tinha posse de sua alma. Lidava com todos sempre com muita resiliência, porém sempre era derrotada pelo mesmo inimigo: As águas negras ferventes, de sabor amargo como a morte.
⠀⠀⠀⠀A poção básica de estamina tinha a mais simples das confecções, mas a guerreira jamais pôde a dominar.
⠀⠀⠀⠀Todos os dias, antes de partir para suas aventuras matinais, colocava a poção no fogo, passavam-se alguns minutos e tudo transbordava. Obrigava à Guerreira Andorinha a usar um artefato mágico: O papel toalha.
⠀⠀⠀⠀Quando voltava para o reino durante a noite, novamente colocava a poção no fogo, distraía-se com a caixa mágica e tudo transbordava. Papel toalha de novo.
⠀⠀⠀⠀Foi em uma manhã de um fim de semana qualquer que Cíntia Andorinha começou a preparar sua poção, virou-se de costas e uma súbita chama queimou em seu peito. Havia decidido algo que mudaria sua vida para sempre.
⠀⠀⠀⠀— Hoje não haverá papel toalha! — sentenciou, erguendo sua fina arma cilíndrica, repleta de cerdas de um material maleável em uma das extremidades.
⠀⠀⠀⠀Agora era guerra. A guerreira doméstica Andorinha contra suas próprias distrações.
⠀⠀⠀⠀Marchou em direção à sua sala.
⠀⠀⠀⠀Sua audição se apurou para que fosse capaz de ouvir o som da ebulição iminente.
⠀⠀⠀⠀Com toda brutalidade, passou a manusear a vassoura nas áreas mais abertas do cômodo, juntando os pequenos montes de poeira, de uma forma um tanto destrambelhada, mas chegando aos cantos, sentia toda a traição de sua arma a qual um dia acreditou ser tão fiel.
⠀⠀⠀⠀Os barulhos do objeto batendo contra a parede quando Cíntia tentava alcançar as pequenas crostas que se acumulavam naqueles locais tão estreitos, tornava-se mais alto que os sons que vinham da cozinha.
⠀⠀⠀⠀Vamos, sua vassoura estúpida, pensou em todo seu ódio. A vassoura sucumbiria se continuasse daquela forma tão desesperada.
⠀⠀⠀⠀Os cantos e áreas abaixo dos móveis haviam sido bem varridos. A água ainda tinha um som baixo, mas já preocupante e a pobre vassoura possuía novas feridas da batalha que travou contra aqueles inimigos.
⠀⠀⠀⠀Agora só quem faltava era o chefão da sala: O grande sofá laranja.
⠀⠀⠀⠀Levantar tal inimigo era a mais complicada tarefa para a guerreira solitária. Teria que usar de toda a sua força ali, e sua recompensa seria justamente aquela poção de estamina, preparada sem o derramamento de uma gota sequer.
⠀⠀⠀⠀Então ali respirou fundo. Uniu a sua força e sua pressa, ao desespero da pressão do som da água borbulhante se tornando cada vez mais alto. Tensionando totalmente o seu braço esquerdo, levantou o grande móvel laranja o mais alto que pôde.
⠀⠀⠀⠀Novamente, já prejudicada, vassoura entrou em ação, puxando o máximo que podia dali de baixo. Poeira, pequenos restos de embrulhos, os artefatos tilintantes utilizados para o entretenimento das duas bestas. Havia outro mundo de baixo daquele sofá.
⠀⠀⠀⠀O perigo se aproximou ao escutar um borbulhar mais intenso e o tilintar do artefato. Ao presenciar o rugido de uma das feras, os olhos de Cíntia se arregalaram:
⠀⠀⠀⠀— Miau.
⠀⠀⠀⠀Largou o grande móvel ao presenciar a magnificência do grande Tom se aproximando dos pequenos montes cinzentos de sujeira.
⠀⠀⠀⠀De um lado estava um felino selvagem prestes a arruinar seu trabalho, do outro lado, a histeria da leiteira que tinha o líquido quase chegando em sua borda.
⠀⠀⠀⠀O tempo parou.
⠀⠀⠀⠀Era o momento da guerreira decidir suas prioridades. Um fogão sujo, ou um gato empoeirado?
⠀⠀⠀⠀A derrota de todos os dias se tornou menos preocupante do que um felino encardido subindo em sua cama e cutucando a sua maior fraqueza, bem conhecida como rinite.
⠀⠀⠀⠀A guerreira se agitou em direção ao bichano e com uma forte pisada no chão, o expulsou, mas também dispersou os pequenos montes que haviam ali, a fazendo se arrepender instantaneamente pelo ato. E ao olhar para a cozinha, vendo seu fogão aos poucos sendo inundando pela bebida escura, a guerreira percebeu que naquele momento havia perdido duas batalhas em seu próprio reino.
⠀⠀⠀⠀Respirou fundo, baixou os ombros e foi até a cozinha.
⠀⠀⠀⠀Ela precisaria de papel toalha.
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