layiswriting Layse Amaral

A última entrega do dia de um mero courier acaba se tornando uma experiência que sempre irá se questionar se foi real ou não. Considerado a introdução da série de contos I'm Not A Woman, I'm A God.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#Halloween
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Capítulo Único

O clima de escuridão atípica enfeitava a rua. Conferiu três vezes o endereço no GPS para garantir que era mesmo ali que deveria estar. Obviamente estava desconfiado, é claro. Em uma rua com a maioria das casas abandonadas, ser chamado para fazer uma entrega em uma das últimas casas da rua não era algo que realmente parecia ao menos auspicioso. Porém retornar com o pedido lhe causaria uma multa alta, e não era como se estivesse realmente podendo perder dinheiro no final do mês. Por isso, manteve a cabeça erguida e a coragem se arrastando do jeito que dava enquanto o carro passeava cada vez mais dentro daquela rua abandonada. Um poste piscava precariamente no bloco anterior, como se a qualquer momento sua luz pudesse se extinguir. Um gato laranja andava de modo preguiçoso em meio às lixeiras com um conteúdo que apodrecia a céu aberto, sem nenhum indicativo de que alguém estava por vir ali removê-lo ou sequer tinha consciência de que ele estava ali, em forma putrefata e virando comida para ratos e vermes. Viu uma sombra ou outra por trás de janelas ridiculamente imundas e quebradas, duvidando muito que para morar naquelas condições, a pessoa ali dentro estava de fato pagando algum aluguel ou estava minimamente em uma situação regular. O mato crescia como se fosse um gramado de uma colina, sem qualquer controle e completamente selvagem, ameaçando subir e dominar a entrada das casas por completo. Facilmente ocultaria até a altura dos joelhos ao se embrenhar no meio daquele matagal, inconsciente de onde exatamente estava pisando.

Conforme o carro deslizava, lentamente, procurando o número da casa referido no seu pedido, se aproximava de uma grande e imponente casa. Grandes de ferro fundido altas, com pontas do estilo gótico. A casa era muito angulosa, e ao contrário dos outros imóveis daquela rua, realmente parecia habitado, com luzes acesas dentro da residência, o gramado aparado e verdejante, além de contar com um poste em perfeitas condições à sua frente.

Conferiu o que deveria ser a quarta vez o mesmo endereço no celular. Era aquele exato local, é claro. Dentro do prazo, também, como deveria ser. Respirou fundo, pensando que seria uma ideia muito ruim descer do carro pequeno de entregas e manter a chave na ignição naquele bairro. Seria o mesmo que entregar o automóvel nas mãos de algum espertinho. Guardou o celular no bolso da camisa, fechando o botão. Se esticou, apanhando o embrulho no banco de trás, abraçando a embalagem que continha a palavra FRÁGIL escrita em gritantes letras vermelhas na parte de cima. Tirou a chave da ignição, abriu a porta e deixou o vento gélido e noturno abraçar suas curvas, pensando que passava por um bando de perrengue cotidiano por causa do serviço de entregador e que as coisas seriam diferentes se tivesse um emprego regular como foi a recomendação de seus pais por toda a sua vida. As botas de solado de borracha preto bateram contra o asfalto e o som oco de seus passos foi o único som presente naquela rua. Fechou o carro e bateu a porta com o maior cuidado, não querendo atrair ainda mais olhares em sua direção enquanto se afastava em direção a entrada da casa.

Parado ali, o peso do caixote de papelão nos braços se fazendo cada vez mais presente, procurou por algum botão de campainha, até perceber que o portão já o aguardava entreaberto. O que ele encarou como se fosse uma aposta muito alta na familiaridade dos donos da locação quanto aos seus vizinhos; só de deixar o carro para trás ele sentia um peso no fundo do estômago, sequer imaginaria a coragem daquele que cogitou deixar um nível de segurança de seu próprio lar assim, vulnerável e livre para qualquer um que ousasse transpassar a barreira que era do asfalto para a calçada.

Enquanto adentrava o território livre, percebeu como as árvores do jardim eram bem aparadas e que a grama era verdejante pois alguém havia recentemente tingido-a. Certamente alguém com posses desfrutava daquele imóvel. O que o fazia questionar mais ainda a escolha de viver ali.

Atravessou todo um caminho de pedras polidas até alcançar uma escadaria curta, de três degraus, até a porta, que, sim, portava uma campainha ao seu alcance. Apertou o botão, ouvindo o ressoar dentro da enorme casa, e aguardou. Um morcego passou gritando e cortando o ar atrás de si, o fazendo se assustar e dar um breve salto no mesmo lugar. Os pelos de seu corpo inteiro se eriçaram com aquele som, mas concluiu que apenas estava impressionado com toda a atmosfera criada pelo espaço. Aguardou mais alguns segundos, até ver a silhueta feminina que antes parecia tão menor, mas aos poucos aumentava de tamanho, até alcançar a altura de uma mulher adulta. Ouviu o ressoar de engrenagens, possivelmente trancas sendo deslizadas, até que a porta, finalmente, se abriu.

— Boa noite, senhor, com o que posso ser útil? – A mulher lhe perguntou, em um tom de voz que ele só poderia descrever como sedutor. Ela era um exemplar e tanto, deveria dizer. Seus cabelos eram de um tom de vermelho que em lugar algum passaria despercebido; assim como suas roupas, era algo que exalava dinheiro. E não qualquer dinheiro, mas algo ancestral. A face da mulher não possuía uma ruga alguma, e suas vestes, um vestido longo coberto por uma manta que escorregava por seus ombros pontudos, também era tão impecável quanto a sua dona. Os pés estavam carregados por um salto alto, preto, assim como todo o resto do visual. Os lábios estavam pintados em um carmesim próximo a tonalidade de seus fios, porém muito mais fechado e conservador. As unhas eram longas e bem cuidadas, como a de todas as madames que jamais perdiam a hora da manicure. E sua pele era reluzente, com um brilho que não parecia pertencer a este mundo. Definitivamente, estava melhor do que qualquer um morador refugiado daquele bairro. O entregador agitou a caixa mais acima, sem emitir palavra alguma, de repente se recordando o motivo de estar ali. A mulher sorriu, apoiando uma mão no peito. — É claro! Eu jurei que a entrega só seria amanhã, mas que bom que realmente cumpriram a promessa sobre entregar dentro de 72 horas.

O entregador sorriu de volta, é claro, uma vez que a cordialidade era algo mais do que obrigatório em sua profissão. Porém, além de ficar extasiado com a visão da mulher, o que entrevia através da pequena brecha aberta o deslumbrou. A casa possuía uma suntuosa escadaria, ornada em tinta branca e detalhes em dourado, subindo para um imenso pé direito que, se fosse um pouco mais entendido do assunto, poderia dizer claramente que era um duplo. As paredes possuíam um tom de branco gelo neutro, carregado de quadros que deveriam representar os membros da família. Quadros pintados, há muitos anos, lado a lado de fotografias profissionais, emolduradas com zelo. Não haviam muitos móveis ao redor, apenas um pequeno jarro de vidro com algumas flores recém-colhidas despontando de dentro como se estivessem se derramando de dentro do recipiente. Enquanto entregava a encomenda a mulher, puxava do seu bolso o celular, pronto para pedir sua assinatura digital, quando viu que a mulher o encarava com atenção.

— Gostaria de entrar? – Ela lhe perguntou, com o que pareceu uma voz ainda mais melodiosa. Isso o pegou de surpresa, uma vez que não esperava que houvesse realmente cortesia em meio ao seu trabalho, ainda mais em uma entrega feita tão tarde, ao final de seu expediente. O entregador a olhou confuso, engolindo em seco, antes de ser atingido por seu sorriso, os dentes brancos reluzindo sutilmente na luz da lua que os banhava ali naquela soleira. — Tomar um copo de água talvez?

Era como se fosse o canto de uma sereia: ele ouvia as palavras, mas era difícil de distinguir com exatidão, ainda mais enquanto a encarava. Os seus olhos pareciam encontrar uma espécie de brilho diferente enquanto direcionava suas palavras a ele, um acréscimo que ele não achou que fosse humanamente possível. Seus membros falavam por si, os joelhos fraquejando e os pés arriscando um meio passo em frente, arriscando passar do limite do batente da porta e aceitar aquele convite inesperado, independente de seus instintos.

De última hora, outro morcego passou gritando pelo campo mal iluminado do lado de fora, arrepiando até mesmo os cabelos da nuca do homem, o trazendo de volta a realidade. O brilho nos olhos da mulher parecia algo próximo do vermelho, o fazendo recuar de imediato. O canto da sereia, agora, parecia muito próximo a um ronronar de uma fera, ameaçando sua presa e brincando com ela enquanto ela está distraída demais para entender que era seu momento final. A pulsação acelerou, de imediato, enquanto procurava por palavras exatas para recusar aquele convite sem parecer mal educado e muito menos assustado.

— Não posso. Só preciso que a senhora assine isso aqui antes de encerrar a entrega – estendeu o aparelho celular na direção da mulher, a distância de um metro dos dois estabelecida naquele gesto, torcendo muito para que ela não percebesse a brusca mudança de comportamento.

A mulher misteriosa o olhou longamente, menos sorridente dessa vez. Ela o avaliava; seu olhar se detinha na mão tremendo sutilmente e se erguia para os pelos arrepiados em seus braços, seguindo diretamente para os ombros tensos e por fim alcançando o seu rosto muito mais pálido do que antes. Engoliu em seco, evitando o olhar cruzar com o dela, mirando atrás de sua silhueta agora assustadora. Seus olhos alcançaram mais uma vez a parede repleta de quadros, percebendo que os ali retratados se pareciam muito um com o outro. Se fossem uma família, mesmo, estava vendo uma sucessão de clones um dos outros através de gerações. Uma das fotos emolduradas, inclusive, se parecia muito com uma pintura a óleo que estava disposta do outro lado do cômodo, porém com a aparência desgastada. E bem ao lado…

— Meu Deus!

As palavras saíram de seus lábios sem querer, justamente por ter sido surpreendido com a informação. Mas a pintura antiga ostentava uma mulher. Longos cabelos ruivos, olhos redondos e escuros, pele intacta e muito pálida. Vestia roupas de época, arriscaria que pelo menos do século passado. E o mesmo brilho vermelho no olhar que tinha acabado de vislumbrar se fazia presente no mais sutil toque da pintura. O sorriso, também, não se alterava. Era impossível.

— Aqui está – a mulher entregou o celular de volta, o observando com um ar agora mais curioso, especialmente por não deixar passar batida aquela expressão e o ar de espanto do homem.

O assistiu apanhar o celular de volta com as mãos ainda mais trêmulas do que anteriormente, abrindo pouco a pouco um sorriso ladino em sua direção. Jogou os cabelos para trás, em um movimento muito bem calculado. O perfume de sua roupa o atingiu como uma brisa suave, o trazendo de volta brevemente para aquele canto de sereia anteriormente, porém sem os mesmos efeitos. O pavor o deixava em estado de alerta, obrigando o homem a engolir em seco enquanto abotoava o bolso com pressa.

— Está tudo bem? – Sua voz era a mais pura inocência calculada, uma tranquilidade de quem consola alguém prestes a encarar uma dor terrível, mas necessária.

Essa noção arrepiou o homem dos pés a cabeça.

— Tudo ótimo! Tudo... Certo. Obrigado e tenha uma boa noite! – Ele lhe respondeu, dando passos apressados para trás, quase tropeçando nos próprios pés.

Sentia que precisava correr, correr por sua própria vida, sem jamais olhar para trás. Era uma questão de sobrevivência: ou faria isso ou jamais conseguiria escapar. Um suor frio começava a brotar em suas costas e testa, escorrendo lentamente e aos poucos o ensopando, o deixando ainda mais atrapalhado e confuso. A mulher não movia um centímetro a mais, apenas o observando, daquela forma hipnotizante. Como se estivesse tentando atraí-lo apenas com a força do olhar. E se não fosse o susto que tinha despertado todos os seus sentidos, claramente ela conseguiria. Fosse pela sua beleza ou sua insistência. O coração batia com força e descompassado, e assim que girou em seus calcanhares, ele correu. Correu com os ouvidos carregados dos silvos dos morcegos que voavam cada vez mais baixo, quase o tocando, assim como a voz da mulher permanecia em seus ouvidos, mesmo que estivesse a uma distância cada vez maior dela.

Suas mãos tremiam tanto que tinha certeza que não conseguiria apanhar as chaves do carro a tempo, apalpando os bolsos até fazer as chaves saltarem. Adentrou no carro e o ligou com tanta pressa que nem mesmo se preocupou em fechar a porta.

Apenas partiu, sem nem mesmo conferir uma última vez no retrovisor, indo embora daquela casa imponente com uma mulher que não parecia envelhecer com o passar de décadas.

18 de Outubro de 2021 às 23:27 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Layse Amaral Escritora desde o começo de 2010, acrescentando referências a cultura pop em qualquer ocasião possível desde sempre. Contato: Twitter e Instagram.

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