middel04 Sophia Middeldorf

Um conto sobre a solidão e sobre o amor.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.
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Capítulo único

Meu tapete azul

Era vasto, chamei-o de tapetinho azul quando era criança. Amava o mar e tudo à volta dele: a areia, os guarda-sóis, os homens fortes de uniformes vermelhos, as mulheres oleosas de ancas largas e os carrinhos que carregavam milho. Mas o que eu mais amava acima de tudo, eram as conchas, perfeitas em sua naturalidade. Eu achava que eram feitas por pessoas e, abandonadas ali pelos seus fabricantes, assim como papeizinhos de chiclete abandonados na calçada por seus mastigadores. Aguardava ansiosamente o momento do passeio em que mamãe aparecia com um baldinho e me chamava para andarmos na orla. Andavamos e pegavamos o máximo de conchinhas que conseguíamos, até o topo do balde e, quando esse enchia, travávamos uma aventura: encontrar o lugar onde papai ficava sentado. Em meio à multidão de barracas eu sempre encontrava o caminho. Quando via uma barraca ou ponto de referência familiar e via meu pai, corria até ele e mostrava minhas novas aquisições, orgulhoso.

Meu amor pelo mar e pelas coisas que ficavam à sua volta nunca cessou. Brinco comigo mesmo que a praia foi minha primeira namorada. Sempre me deliciei com os beijos que a água salgada me dava, mas também me revoltava quando minha namorada avançava o sinal e engolia nossa barraca, levando meu castelinho de areia e meus instrumentos de construção. Escandalizada, minha mãe reclamava que a maré havia levado seu melhor chapéu, meu pai proferia ofensas ao ver seus chinelos de dedo sendo saboreados. O ressentimento durava apenas algumas horas, até que eu cedia ao conforto que a água me trazia e fazíamos as pazes.

Sempre me conformei que a amizade e a lealdade do mar seriam as únicas que teria ao longo de minha vida. Minha mulher engravidou do chefe e foi com ele para as ilhas Canárias, papai e mamãe faleceram tranquilamente em idade avançada e meu Pastor Alemão decidiu ir morar com a vizinha. Nunca apreciei poesia, mas acabei me identificando com Manuel Bandeira quando ele dizia que seu porquinho-da-índia havia sido a sua primeira namorada. No meu caso, o mar foi minha primeira e última namorada. Descobri um câncer terminal aos meus sessenta anos e decidi realizar meu único sonho.

Em uma madrugada fria, desci do meu apartamento e andei até a praia. Estava feliz, de terno pedi a mão do mar em casamento e dei-a o anel mais bonito que podia comprar. Naquele dia, nos casamos e senti seu perfume, deitei-me com ela e passamos a lua de mel diante da lua e ali, naquele momento, em tom de misericórdia, minha amada me deu meu último beijo.

3 de Julho de 2021 às 13:49 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Sophia Middeldorf Estudante de graduação do curso de Letras da UFMG (licenciatura em inglês). Ex-estudante de graduação do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (licenciatura em português/inglês). Ex aluna do projeto de canto do SESI.

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