dissecando Edison Oliveira

Eva Maria é completamente cega, mas diz ser capaz de enxergar o filho recém nascido. Tudo ganha proporções assustadoras quando ela supõe que o bebê só pode ser algo ruim.


Horror Impróprio para crianças menores de 13 anos.
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O DIABO EM DETALHES




Durante nove longos meses, precisei alimentá-lo. Quando cuidava de mim, estava, na verdade, cuidando dele. Deixei de comer muitas coisas que gostava, porque me disseram que aquilo faria mal para ele. Em pouco tempo, senti meu corpo aumentar de tamanho. Passei a respirar pela boca quando andava mais de vinte passos. Ganhei quase quarenta quilos a mais, me disseram. Meus calcanhares doíam constantemente, e quando tinha desejos estranhos, os escondia como se eles fossem obscenos. Tudo para não fazer as vontades dele. Em resposta, ele me chutava e meu mundo ruía cada vez mais. Disseram que eu precisava pensar em algum nome. Se fosse menino, deveria ser João, Pedro ou José. Nomes bíblicos costumam ser a primeira opção, e isso é algo que nunca saberei o porquê. Se caso fosse uma menina, Maria estava no topo da lista. Era uma sugestão de minha avó, e ela provavelmente estava sorrindo quando disse aquilo.

Honestamente nada daquilo me preocupava. Qualquer nome que ele ou ela tivesse provavelmente eu iria esquecer. Então, depois de muitas dores intermináveis naquela sala, de ficar deitada com as pernas abertas e sendo acariciada por mãos femininas de alguma enfermeira, escutei ele chorar. E não apenas isso. Pude vê-lo também. Mesmo sendo completamente cega, eu pude.

Pude.


Guardei o segredo apenas para mim.

Não disse uma palavrinha sequer sobre o que quer que significasse aquele sinal. Acredito seriamente ter sido vítima de uma intervenção divina. Afinal, Deus queria minha segurança, minha proteção e possivelmente a de seu próprio mundo. Ele quis que uma cega fosse capaz de enxergar o mal e apenas ele, ficar de olho em seus movimentos, saber o que fazer e como fazer em caso de uma possível reação daquilo. Foi então que segui suas ordens, e já em casa, acompanhada de minha avó, não desgrudei os olhos do provável bebê. Ali era meu território. Vivia naquela casa há quase vinte anos, sabia exatamente as suas dimensões, onde pisar e onde recuar para não colidir. É mais ou menos como as pessoas falam: conheço tudo como a palma de minha mão.

E lá estava o bebê, deitado no berço, os bracinhos dançando no ar, e tudo era tão teatral que o que mais queria naquele momento era correr até ele, sacudi-lo e ouvir seus ossinhos quebrando.

Mas não pude. Não ainda. Haveria o momento certo, a oportunidade, o sinal divino, o ok de nosso Senhor. Escutei minha avó preparando o chá. A chaleira sendo cheia com água, a porta do armário rangendo para ela pegar o recipiente com açúcar.

— Vou fazer de camomila. Aceita? — a voz dela veio de trás.

— A senhora que escolhe, vó. O que a senhora decidir, está decidido.

Meus olhos não saíam daquele berço. De repente, quis que o bebê pulasse de lá e me enfrentasse. Seria o motivo perfeito para acabar com ele. Não seria nada difícil. Imaginei então um cenário ainda melhor; ele tentando pular, conseguindo, mas rachando o crânio na queda. O som certamente idêntico ao que os ovos fazem quando se chocam no piso. Brilhante! Nem sequer sujaria minhas mãos, e Deus me agradeceria na noite seguinte.

A ideia me faz sorrir, e logo fico surpresa pela voz de minha avó.

— Do que está rindo, querida? — ela está bem a meu lado. Consigo sentir o seu perfume de amêndoas.

— Nada, vovó. De nada.

Mas não consigo parar de sorrir.


Já é noite e vovó está no quarto comigo. Ela se recusou a dormir no quarto ao lado, disse que seria melhor para mim e principalmente para o bebê.

O medo dela era que aquela coisinha morresse dormindo. Que se afogasse com o próprio vômito, e eu, incapaz de ser ágil o suficiente por conta da cegueira, tropeçasse no caminho e não chegasse a tempo. Era uma preocupação evidente aquela, pude senti-la no tom de sua voz assim que se recusou a ficar no quarto de hóspedes. Sem alternativas, deixei que dormisse a meu lado. Foi como na minha infância, quando a visitava e então era eu quem dormia com ela. Confesso ter gostado da sensação de tê-la por perto, me trouxe uma lembrança agradável e pensamentos bons da minha época de criança.

Nós até conversamos bastante antes dela dizer que já estava exausta. Falamos sobre a novela, sobre como biscoitos de mel caíam muito bem quando acompanhados pelo chá e de como eu havia me tornado uma mulher linda.

— Seu bebê é sua cara, — ela disse, e então meu estômago embrulhou. Nunca vi o meu rosto na vida, e saber que ele se parecia com o daquela coisa quase fez os biscoitos de mel saltarem para fora.

E vovó continuou.

— Ele tem lindos cabelos escuros.

Disso eu já sabia.

— A pele branquinha, as bochechas rosadas.

Exatamente! Era assim, um lobinho disfarçado de cordeiro, pois tudo que é de índole maldosa precisa se infiltrar, desaparecer em uma multidão, não ser notado, ser capaz das piores coisas e ainda ter as mãozinhas acariciadas depois.

— Quando ele sorri, ficam duas covinhas nas… — e vovó não consegue concluir, pois, meu vômito a interrompe.

Ela parece se assustar. Pega em meu braço e pergunta se está tudo bem. Respondo que sim, e ela diz que vai limpar aquilo tudo. Escuto ela começar a andar e depois a porta se abre. Olho para o berço e vejo ele rindo. Existem dois pequenos furos em suas bochechas, e suspeito que são as covinhas que minha avó se referiu.

— Pode sorrir, — falo para ele e apenas para ele. — Mas não se esqueça de uma coisa. Posso ver você. E essa é uma vantagem que você não poderia imaginar.

O sorriso dele some. Ele finalmente parece perceber que não terá vida fácil.


Quando acordo na manhã seguinte, ouço chuva no telhado. Ao olhar na direção do berço, não vejo absolutamente nada.

Vovó certamente está com ele na cozinha, conversando com uma voz infantil ridícula, sendo enganada e ainda achando tudo uma graça.

Levanto-me e calço minhas pantufas. Dou dez passos e encontro a porta. Depois, ando mais doze passos até o banheiro. Sento no vaso, um trovão retumba lá fora, levanto e vou até à pia para lavar o rosto. A água morna parece finalmente me acordar. Ergo a cabeça e em minha frente está um espelho. É algo insignificante, um adorno, mas sei que ele está ali. Refletido nele deve estar o meu rosto (igualzinho ao do bebê!), e inutilmente tento enxergá-lo. Tudo que vejo são trevas. E olhar para elas é assustador mas também fascinante.

O escuro é como um lugar para mim. Estou nele o tempo todo, não importa a estrada que pegue. Conformada, caminho na direção da voz de minha avó. Ela está na cozinha, e até lá são quase vinte passos. Quando chego, puxo a cadeira e me sento. Pelo cheiro, há torradas na mesa e café.

— Como passou a noite, querida? — ela quer saber.

Antes de responder, encaro o bebê. Ele está sentado na cadeirinha, olhando para mim. Espero que meus olhos brancos o assustem, mas não percebo medo naquele rosto. Ele simplesmente olha para mim, ciente de que sim, posso vê-lo.

— Bem, — finalmente respondo. — E a senhora? Teve muito trabalho para limpar minha sujeira?

Ela solta uma gargalhada.

— Já limpei muito vômito nessa vida. Foram quatro filhos para criar, querida.

Verdade. Tia Gorete, tio Hélio, tio Bernardo e tio Hermes. Todos em algum lugar, espalhados pelo mundo, provavelmente felizes, longe da sobrinha cega que deu à luz ao…

— O bebê está querendo um colinho! — diz a vovó, e toca em meu braço. Sei o que aquele toque quer dizer. Significa: vá lá e pegue o bebê nos braços.

Felizmente, uma resposta apropriada surge.

— Acho que peguei um resfriado. Não quero passar para ele.

— Mesmo? Então melhor ir até à farmácia e comprar algum antibiótico.

E me deixar sozinha com… Ele?

Seria uma boa oportunidade para bancar a deficiente descuidada, mas, não, ainda não. Ele é muito sagaz. E é muito mais rápido também. Certamente fugiria de mim como uma lebre escapando de uma raposa. Imediatamente seguro minha avó pelo pulso.

— Prefiro que faça um de seus chás milagrosos. Sabe que adoro eles.

— Sei mesmo. Mas não creio que tenha alho e mel na sua despensa. Não que eu tenha visto.

— Acho que tem um pouco de mel no armário. Procure bem.

Ela afasta a cadeira e vai até o armário. O bebê segue olhando para mim, e tenho certeza que ele quer ficar a sós comigo. Para ele, seria a oportunidade perfeita de concluir o serviço. Escuto os recipientes sendo relocados de lugar no armário. Vovó resmunga que não está achando nada, e eu insisto que ela siga procurando.

Vejo o bebê sorrir de repente. Parece debochar de toda aquela situação. Então, descubro que não é apenas isso; ele sabe (e eu também), que sinto medo dele. Pavor do que ele realmente é. Percebo que seria muito fácil para ele saltar de onde está e cravar uma faca em meu pescoço. Vovó nem notaria. Quando se virasse, eu já estaria com a cabeça pendida e haveria uma poça de sangue ao lado da cadeira.

E o bebê sorriria para vovó antes de fazer o mesmo com ela. Começo a sentir receio de continuar olhando para ele quando ouço vovó gritar que encontrou o pote de mel. O grito dela me assusta e meu corpo estremece.

— Encontrei! Não é que você tinha razão?

— É. Eu tinha.

Na cadeirinha, o bebê sorri. Aquele sorriso me diz: essa foi por pouco, puta. Um pouco mais e eu faria um sorriso de orelha a orelha nesse rostinho parecido com o meu.


Alguns dias depois de finalmente me curar de um resfriado que não existiu, nada pude fazer para evitar pegá-lo no colo. Ele tinha um bom peso, era fofinho, e estava perto demais. Muito perto. A boca dele estava em um de meus seios, sugando, e seus olhos não saíam de mim. Era quase obsceno. O medo me cobria como um véu frágil, algo que se rasgaria facilmente com a pressão certa. Não havia nada a meu alcance, nada para me defender, e em último caso o deixaria cair, mesmo que arrancasse parte de meu seio. Embora, dificilmente algo lhe aconteceria com uma queda tão baixa. Com isso em mente, me ponho de pé. Alguns centímetros mais alto para mim, uma queda potencialmente mais perigosa para ele. O bebê percebe minha tática e solta meu seio. Vejo que ele olha para baixo e em seguida volta a olhar para mim.

— Que foi? Alto demais para você?

Ele sorri em resposta. Parece me desafiar, dúvida que eu possa fazer qualquer coisa, e talvez realmente eu não possa, mas minhas pernas estão tremendo e meus braços também. Seria um acidente trágico, mas não me culpariam. Provavelmente colocariam a culpa na vovó, que saiu e deixou uma mulher cega tomando conta de um bebê.

O bebê abocanha meu seio outra vez e de repente está dormindo. Passa pela minha cabeça deitá-lo no sofá e sufocá-lo com a almofada. Rápido e limpo. Um velório com poucas pessoas e um padre, um caixão muito pequeno, cheiro de flores de Jasmim e uma oração para encerrar. Quando essas coisas desaparecem da minha cabeça, o bebê já está no berço. O levei até lá e nem percebi, ou ele simplesmente pulou do meu colo e fez tudo sozinho. Não saberia dizer. O que sei é que passou muito tempo, e quando escutei que a novela já iria começar, me dei conta de que a vovó já estava sumida há horas.


Horas e depois dias. Encontrei a mala dela ao lado de meu guarda roupa, e meu celular não recebeu ligação alguma durante todo aquele tempo. Vovó não sumiria assim. Ela não faria aquilo comigo.

O bebê era o responsável, eu tinha certeza. De algum modo, ele conseguiu fugir de meus olhos atentos e fez alguma coisa com ela, minha doce vovó.

Provavelmente durante a noite, enquanto eu dormia. E agora ele sorria no berço. Às vezes, chorava. Alguma coisa fedia nele, e algo me dizia que sua fralda tinha de ser trocada, e obviamente não fiz o que ele queria.

É o erro de toda mãe, obedecer aos luxos do filho. Naquele dia, esperei pela vovó sentada na sala, escutando a chuva que nunca parava e o som que vinha de meu quarto. Não sabia se ele estava chorando ou sorrindo, mas posso garantir que aquilo era uma gargalhada. A coisinha estava se vangloriando. Cansada de esperar, fico de pé e ando até o quarto. Não tropeço em nada, e quem me visse assim diria que eu não era cega. Abro a porta com um empurrão. Vejo que ele está no berço, sentado.

— Você conseguiu, — digo. — Somos só você e eu. E já adianto que não vou facilitar.


Do quarto até a cozinha são dezoito passos. Da cozinha até a sala apenas oito. Da sala até o banheiro são dez. Sempre foi assim. Então, porque esta ordem não bate mais, sempre que a faço dentro desta casa?

Sei que é coisa dele, mas não será o suficiente. Ele é bom em tentar me desorientar, mas também tenho meus truques.

Não abro mais a janela do meu quarto. Quero ver se ele se adapta ao escuro assim como eu.


Ainda deixo que ele se alimente. Sento-me em meu quarto, ponho o seio para fora e ele faz a parte dele. Suga sem parar, estalando e olhando para mim, me desafiando. Não quero que quando aconteça, digam que eu fui uma péssima mãe. Ele estará bem cuidado. Tudo precisa acontecer no tempo certo, sem levantar dúvidas. Quando lhe dou banho, deixo sempre uma tesoura sobre a pia. Um movimento brusco e a enfio no seu peito. Admito ainda sentir pavor da sua presença. Ele sabe bem disso. Sorri toda vez que eu tremo.

Também estou evitando dormir tanto. Quando o faço, o faço na sala. Fecho ele no quarto e, por mais de uma vez, escutei a porta se abrir e agarrei minha tesoura. Fico encolhida no sofá, com a tesoura erguida, apontada para todos os lados. Peço a Deus que ainda tenha forças e reflexo para quando chegar a hora.

Então ouço o bebê sorrir, e na sala, me encolho ainda mais e choro sem parar. Ontem mesmo me cortei com a própria tesoura.

Me assustei quando o vi caminhando pela sala.


Alguém bate na porta e eu dou um pulo.

Uma voz dizendo ser da polícia me chama pelo nome.

— Eva Maria, está em casa?

Respondo que sim, e tremendo caminho até a porta e a abro. A mesma voz diz que precisa entrar, e logo escuto que existem outras pessoas com ele. Provavelmente policiais. Todos com más notícias sobre o paradeiro da vovó, possivelmente.

— Recebemos algumas denúncias, — começa ele, e eu o interrompo.

— Sim. Minha avó. Ela… Ela desapareceu!

Quase deixo escapar que o culpado está no quarto, mas me controlo a tempo.

— É exatamente sobre isso. Alguns vizinhos relataram que não a vem a dias, e estão se queixando de um mau cheiro. Confesso que há um cheiro ruim por aqui, senhora Eva Maria.

Seria possível? Mas eu estava banhando o bebê corretamente, não haveria possibilidade de um odor ruim.

Fico em silêncio e escuto as outras pessoas andarem pela casa. Eles estão procurando alguma coisa. Procurando por alguém. Vão achá-lo no quarto, e então precisarão atirar nele para sobreviver.

Outra voz anuncia que precisará arrombar a porta. Imediatamente isso acontece, e quando imagino que um tiro será disparado em seguida, não escuto nada além de um murmúrio comovente.

— Encontramos, — anuncia a voz. Ela não vem do meu quarto. Vem de mais perto. Do quarto de hóspedes.

— O quê? — balbucio. — Que foi que encontraram?

Estou perdida, tateando o escuro.

— Senhora Eva Maria, — é a mesma voz que me chamou anteriormente. — Terá de nos acompanhar até a delegacia.

— Mas porquê? — eu quase grito.

— Sua avó está no quarto que acabamos de entrar. Ela está morta, provavelmente há dias.


Antes que eu possa explodir e gritar para irem buscar o bebê, eles me levam pelo braço até o interior de um carro. De lá, escuto que alguém pergunta se eu sou aquela moça da televisão, que engravidou após ser estuprada. Outra voz confirma que sim.

Finalmente explodo e peço que alguém pegue o culpado em meu quarto. Chuto a porta do veículo para me darem atenção. A porta se abre e uma policial mulher me interroga.

— Quem está na casa?

— O bebê! — grito. Minha cabeça gira para todos os lados, procurando em meio a escuridão. — Ele fez tudo isso! Trancou minha avó naquele quarto. Posso vê-lo, sabia?

— Precisamos entrar no outro quarto. Há um bebê lá dentro! — grita a policial, fecha a porta e se afasta.

Em seguida, ouço passos de coturnos no carvalho e a porta do veículo se abre outra vez.

— Senhora Eva Maria? — É a policial feminina.

Estou tremendo e sinto que logo poderei desmaiar.

— Encontraram ele?

Silêncio. Apenas silêncio.





28 de Maio de 2021 às 01:38 1 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Atila Senna Atila Senna
Me prendeu do começo ao fim! Eva Maria, nome interessante... E tocante o modo como uma mãe cega vê' com maus olhos a prole indesejada.
May 28, 2021, 03:19
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