“Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana.”
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Recife Antigo, Pernambuco.
(2028)
A típica quentura da manhã caia-lhe sobre a pele morena. Como diziam os antigos: “O Recife tem dois sóis para cada um.” O suor já marcava as costas na regata vermelha, ainda que a brisa vinda do mar também lhe tocasse nos cabelos crespos. O sol refletia sobre a prótese metálica na perna esquerda, ainda prateada, embora tivesse alguns tons marrons de ferrugem aqui e ali. No ouvido direito posava-lhe um fone do encardido mp3 depositado no bolso da bermuda jeans. Rodrigo caminhava sem pressa sobre as rachadas calçadas da Praça Rio Branco, assobiando no embalo da melodia. Lembrando-se dos tempos em que ouvia a canção no carro do pai. (Com esse seu jeito faz o que quer de mim, domina o meu coração... Eu fico sem saber o que fazer...)
Aquelas antigas calçadas coloridas já desbotadas, que certo dia já nomearam a capital. Estas foram testemunhas de toda a desgraça causada pela Peste, da vida roubada e dos túmulos abertos. Aquelas ruas movimentadas, o trânsito terrível, pessoas no vai e vem do aperreio da vida. No carnaval, aquela mesma praça estaria tomada por milhares de foliões saudando o Galo da Madrugada. Agora só restava o silêncio do vazio, a visão dos veículos ao léu e a vegetação tomando os prédios abandonados. Para aquelas calçadas, tudo aquilo era uma sombra distante, um vulto do passado. Abriu o zíper da bermuda cantarolando o refrão enquanto mijava há poucos metros do Marco Zero.
― Então me ajude a segurar... Essa barra que é gostar de você... ― Quando terminou, um outro som lhe chamou a atenção. Um grunhido distante que aos poucos se aproximava. Olhou rapidamente por cima do ombro. Uma mulher de pele cinza e carne apodrecida rosnava para ele. Tornou a assobiar enquanto puxava uma doze por baixo da camisa e quando virou-se para atirar, um disparo transpassou o crânio dela. A infectada caiu diante dele enquanto um cara montado num cavalo erguia uma semiautomática. O homem de cabelo preto era um pardo barbudo, embora não fosse velho. Um tapa olho cobria-lhe o ocular direito e o tal sujeito que atirou primeiro tinha cara de poucos amigos. Ainda que fosse compreensível, afinal era um mundo cão. Trajava um colete de couro remendado, com cartucheiras cruzando-se ao centro. E por algum motivo, havia um chicote com um aguilhão enrolado á sua cintura. Rodrigo sorriu. O estranho baixou a arma e indagou:
― Então... é você quem chamam de Saci?
...
Acendeu o cachimbo com um velho isqueiro azulado. O caboco deu um trago demorado, expelindo a fumaça dos lábios quase que solenemente. Seus olhos negros dirigiram-se ao homem sentado do outro lado da mesa. Quieto e sisudo, mãos entrelaçadas, disposto a escutar o que Rodrigo tinha a dizer.
— Sabe mano, quando tudo começou eu acordava pensando: Como as coisas chegaram nesse ponto? O que diabos deu tão errado? Mas agora... agora eu entendo. Você não pode plantar maconha e querer colher uvas. A Peste meu chapa, é só mais uma consequência da nossa bela natureza humana. A gente cavou a própria cova quando viramos reféns da ignorância. Um bando de besta com alguma esperança na ordem e no progresso... — Deu outro trago pouco antes de indagar: — Faz quanto tempo mesmo?
— Oito... oito anos dessa merda.
— Cacete, parece que foi ontem né? Pois é cara, 2020... O ano que lascou todo mundo, do burguês safado ao sem-teto, a Peste não teve preconceito. Naquela época fazia bico entregando almoço de bike e á noite tinha um curso técnico em mecânica. Bicho... eu era feliz e não sabia.
— Não parece tão ruim assim.
— Não? Vai trabalhar com fome pra tu ver, sentindo aquele cheirinho de feijoada, aquela carninha na brasa... Se bem que eu acabei perdendo o trabalho porque botava um pouquinho de cada na minha marmita. Aí já viu, os clientes começaram a reclamar e o resto é história. — Comentou com ar de riso. — Meu pai ficou tão puto comigo...
— Queria ter tido mais tempo com o meu, mais tempo de... sei lá, tudo.
— É foda quando tu percebe que aquilo que a gente achava besteira era tão importante. Rodar pelo centro com o coroa, tomar caldinho na praia, o churrasco com aquele pagode, bater uma pelada... Ah sim, eu jogava. E olha que o pessoal entrava valendo. — Estirou a perna esquerda, exibindo a prótese. — Chegou um tempo que eu mesmo passei a consertar ela. É... o curso de mecânica até que foi útil. A vida nunca foi fácil mano, mas com certeza era melhor antes. Sem os cinzentos e a porra das facções.
— Tem razão, mas isso não muda a merda em que nos atolamos Saci... A sociedade que conhecíamos ruiu, e algo mais cinza tomou o seu lugar. Não tem mais lei nem ordem, não temos escolha a não ser sobreviver nessa terra morta.
— Eu já quis puxar o gatilho e estourar o quengo pra não ter que viver nesse inferno. Mas sei que se fizer isso, as lembranças, tudo que eu vivi um dia, as músicas do meu pai... também vão morrer comigo. — Após um pouco de silêncio, o homem pareceu estudar seu rosto com o olho que lhe restava.
— Como sobreviveu até agora?
—Bom, eu dei meus pulos.
Casa Caiada, Olinda.
(2023)
“Ela partiu, partiu e nunca mais voltou. Ela sumiu, sumiu e nunca mais voltou.”
Ao som de Tim Maia, cruzava o asfalto esburacado atrás do volante num Palio prata. O estado do carro não era lá dos melhores, mas dada a situação, era o suficiente para percorrer maiores distâncias com rapidez. Apesar dos pneus carecas e da lataria amassada na porta do passageiro, era um modelo econômico e isso lhe servia ao propósito. Achar gasolina era como garimpar ouro. Pensou consigo mesmo que não demoraria muito até as carruagens voltarem de moda. Reduziu a velocidade até parar em frente ao antigo Bompreço, ou melhor, do que sobrara dele. Próximo ao Shopping Patteo e outrora um forte ponto comercial em Olinda, o sucateado supermercado sequer lembrava seus melhores dias quando permanecia lotado. Carros no estacionamento, embora não houvesse um pé de gente ali. Rodrigo desligou a ignição e pôs a chave no bolso. Olhando para os lados, abriu a porta sem fazer muito barulho, levando consigo uma mochila preta nas costas. Puxou a arma ao pôr os pés no chão de concreto, atento aos arredores pouco antes da porta do carro fechar-se com uma batida leve.
Na entrada, logo de cara haviam vidraças despedaçadas com tons de vermelho e as pedras lá dentro. Primeiro veio a inflação e os preços exorbitantes, a Peste foi o estopim para tudo virar um caos. Rodrigo nunca achou que sentiria falta das filas. Os saques aos mercados eram violentos, desordenados, frequentes. A perigosa combinação do medo da morte e o desespero da fome que ceifou a vida do seu pai... Esfaqueado por causa de um mísero quilo de feijão. Quando o perdeu, rapaz sabia que não teria jeito senão fazer o possível para sobreviver. Muitas certezas sobre certo e errado se perderam quando o mundo virou uma grande selva. Ou talvez apenas tenha revelado o verdadeiro lado primitivo de uma frágil sociedade, cuja hipocrisia de igualdade logo teve seu fatídico fim.
Adentrou no estabelecimento com cautela. Era até estranho lembrar que aquele piso empoeirado fosse um brinco anos atrás. As disputadas televisões smart de variadas marcas e polegadas, ainda se erguiam no mostruário, embora algumas telas estivessem quebradas. Lâmpadas queimadas, produtos danificados, prateleiras reviradas e salpicos de sangue seco adornavam a paisagem. Ao Leste ficava o setor de hortifrúti, de onde vinha o cheiro podre da decomposição de frutas e verduras. Com certeza a maioria dos produtos havia vencido, mas talvez teria menos problemas comendo um enlatado do que uma maçã cheia de tapurus. Seguiu com os passos atravessando o salão em busca de alguma comida. Seu café da manhã foram alguns amendoins e um gole de água. E se tinha algum lampejo de certeza era que aquela não poderia ser sua última refeição. Subitamente, Rodrigo ouviu um barulho e algo se mexeu nas prateleiras.
— Merda! — Um timbu saltou, fazendo Rodrigo puxar o gatilho no susto. Errou o tiro e o rato saiu correndo. O rapaz até pensou na possibilidade de fazer um churrasco com o mascote do Náutico, mas o miserável era rápido e já devia estar longe. Apressou os passos. Certamente os malditos cinzentos nas redondezas ouviram o tiro e ele não podia ficar ali muito tempo. Pegou as últimas unidades de miojo, por algum motivo só tinham sobrado os de galinha. Detestava aquele sabor, mas sentiu-se grato por aqueles poucos pacotes de macarrão instantâneo. Colocou-os rapidamente na bolsa, junto com biscoitos e salgadinhos restantes. Logo se pôs a arredar o pé dali correndo para a saída. Apesar do sucesso na busca, lá fora a coisa tava feia. Dois motoqueiros acabavam de entrar no estacionamento. Vestiam coletes pretos com uma cruz vermelha pintada ao centro. Rodrigo xingou. Eram os arrombados dos Cruzados, uma gangue barra pesada da capital que fazia o que bem entendesse com os mais fracos. Sua maior rival era a Utopia, que na maioria das vezes era tida como pacífica, embora Rodrigo preferisse não pagar pra ver. Era comum vagarem pela cidade fazendo patrulhas. Mas agora, não havia tempo para se preocupar com a outra facção. Desceram das motos um coroa e um cabra mais novo. Ambos empunhavam pistolas ponto 40 e logo apontaram na sua direção. Aproximaram-se até certa distância, quando Rodrigo ameaçou atirar.
— Quê que tu tá levando nessa bolsa? — Perguntou o coroa.
— Um monte de bosta! — Cuspiu-lhe a ríspida reposta ao passo que movia lentamente os pés para trás. O outro comparsa propôs:
— Só por essa eu te metia uma bala pivete, mas a gente tá de bom humor hoje. Abaixa o cano aí oh aleijado! Passa o que tu tem e a gente vaza! — Disfarçou a raiva com um sorriso ao ouvir aquele adjetivo.
— Caceta, quanta gentileza! Falam assim com todo mundo antes de cancelar o CPF?
— Passa a bolsa pra cá porra! — O coroa exigiu, levantando a voz.
— Oxe, tu não é o machão? Vem pegar então! — Rodrigo puxou o gatilho, recuando rapidamente para dentro. O disparo atingiu o joelho direito do maldito. Gritou de dor enquanto caia e sangrava. O coroa puto, logo reagiu respondendo na bala. No entanto, o colete preto do velhote não escondia aquela barriga de cachaceiro, e o rapaz usando de esperteza logo derrubou o mais rápido dos dois. Dentro do mercado, escondeu-se por entre as prateleiras. O velhote berrava insultos, tolamente revelando o quão próximo estava dele. Rodrigo concentrou-se no turvo reflexo que se movia nas telas das tvs. Deslizou, rolou, atirou. O coroa gritou, caindo como uma jaca ao ser baleado no saco, pouco antes de receber o tiro fatal no peito. Tomou a pistola que ele portava, achando que suas dores de cabeça do dia tinham terminado. Mas então ouviu os tiros, e logo depois, os gritos horrendos vindos de fora. Ergueu a cabeça.
— Puta merda... — Alguns cinzentos devoravam o outro cara. Abrindo o intestino, retirando órgãos... Rodrigo não ficaria ali para assistir aquela carnificina ou seria o próximo. Mais deles se aproximavam sentindo o sangue no interior do mercado. Foi-se para a esquerda contornando a saída. Correndo como nunca correu nas peladas que havia jogado.
O retrovisor denunciava a horda de mortos que vinha na direção do veículo. Dezenas de bocas podres famintas que ansiavam por sangue. Rodrigo soltou um palavrão enquanto tentava desesperadamente ligar o carro. Eles estavam perto demais para que tentasse correr, ou fizesse uma ignição em outro carro. Abandonar os alimentos que conseguira na última busca seria uma ideia tão estúpida quanto. Ser morto pelos cinzentos ou deixar a fome terminar o serviço? Ele preferia não escolher. Então vieram os tiros. Os mortos ao redor caiam com os miolos estourados diante de um grupo armado. Rodrigo viu-se diante de uma tropa vestida com coletes brancos, cujo símbolo destacavam-lhe no peito: Mãos negras rompendo correntes. Uma lança falciforme atravessou a cabeça de um morto que subia no capô do Palio. O homem que a arremessou era um negro alto, com dreads grisalhos sobre a cabeça e uma cicatriz no rosto. Rodrigo ouviu as histórias sobre ele, o líder da Utopia, um homem com um ideal de liberdade, Zumbi dos Palmares.
...
— Daí o carro finalmente pegou e eu vazei. Fiquei assustado demais pra agradecer ao cara. Mano, ainda bem que foi a Utopia, se fossem os Cruzados eu tava muito lascado. — Rodrigo concluiu espreguiçando-se ao levar as mãos na cabeça, dando um bocejo. O homem ouviu o relato em silêncio, só o quebrando quando comentou:
—Típico, o Zumbi tem essa mania de bancar o herói. É garoto... tu passou por poucas e boas.
— Basicamente foi isso que rolou. Desde então eu fiquei na minha, longe das facções e tô vivinho da silva até agora.
— Foi inteligente. Eu devia ter feito isso invés de me meter em muita merda. — O homem cruzou os braços num semblante pensativo.
— Falando nisso, então diz aí, qual é a tua história... Lampião? — Rodrigo indagou, acendendo o cachimbo mais uma vez.
Notas Finais
*Arte por @mathpassos, personagens: Lampião e Zumbi.
Esse conto é uma história paralela à O Silêncio dos Túmulos onde o "Lampião" é o protagonista. Digamos que esse capítulo também se encaixa na cronologia principal e o Saci deve aparecer por lá. Em Silêncio dos Túmulos existe o foco no confronto entre as facções e outros "personagens históricos" como o Zumbi e alguns outros que são importantes na trama. Caso não tenham entendido a referência, *Náutico é um clube de futebol do Recife e seu mascote é um timbu.
Neste universo, uma pandemia fez os mortos saírem dos túmulos ruindo toda organização política e social do Brasil. Enquanto mortos-vivos vagam pelas ruas, facções armadas lutam por sobrevivência e poder. A trama acompanha João da Silva, um sobrevivente que busca desesperadamente uma cura quando se vê envolvido pelos confrontos entre esses grupos. Leia mais sobre O Silêncio dos Túmulos.
Obrigado pela leitura!