Blue Martell Blue Martell

Quente, instável e inconstante. Essa é a Belém de Maria Maya, uma jovem que desde muito cedo teve que fazer de farinha, caribé. Lutando pelos estudos e pelo trabalho em uma jornada dupla, entre os ônibus, as paradas e o rock doido, surge em sua vida algo que abala não só suas crenças, mas também seu estilo de vida.


Ficção adolescente Impróprio para crianças menores de 13 anos. © Todos os direitos reservados.

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Outeiro São-Brás.

Andava com o rosto afogueado, correndo com a companheira que vinha até em casa, cada chute era um riso e uma distância, a pedrinha ia cada vez mais longe toda vez que seu pé ia de encontro a ela, andou mais um pouco e chegou junto, chutando outra vez. A pedra caiu na água rasa. Seu sorriso morreu, e nem a aula de Estudos Amazônicos que teve aquele dia faria ele voltar.


Tirou o molho de chaves do bolso lateral e abriu o portão, retirando os cadeados do tamanho de maçãs, logo em seguida abrindo a porta, que rangeu, pesada, com um longo ruído que ecoou na água embaixo da casa e seguiu adentrando a mata verde e silenciosa.

Arrancou os sapatos e deixou próximo ao porta-chapéus da entrada, o qual usava para deixar pendurados todos os trecos que tinha. Como um companheiro silencioso que lhe brigava toda vez que chegava em casa.

Tirou a blusa do trabalho, pendurando e logo em seguida tirando a calça também, a deixando no assoalho de madeira e em seguida pulando no rio. A água estava fria, afinal, eram umas seis horas da tarde e isso a fazia sentir como se tivessem jogado ela na frente da geladeira depois de sair para comprar algo ao meio-dia. Era bom, até, esperava. Depois de dar algumas voltas e mergulhos ー sem a necessidade de abrir os olhos debaixo d’água, já que sendo o rio verde escuro, não conseguia ver nada mesmo àquela hora, apenas o reflexo da mata ao seu redor ー resolveu sair, já devia ser mais de sete e ela teria um turno às oito.


Assim que subiu, torceu os cabelos para que eles não molhassem o piso inteiro. A tinta amarela começava a sair demais, manchando as coisas, um intermédio entre o retoque e a necessidade dele. Repentinamente, ouviu a água respingar forte e com um baque surdo, virou-se, com o coração na boca, lembrando das velhas histórias sobre não poder ir ao rio depois das seis. Mas era apenas uma folha de açaizeiro que caíra na água, nada demais.


Mesmo assim, subiu os degraus com mais pressa que seu orgulho permitiria contar a alguém. Penteou os cabelos e todas aquelas parafernálias que se deve fazer antes de sair, ser cheirosa era uma das coisas pela qual prezava bastante. Pegou o casaco — estava afim de dormir no ônibus — e saiu porta afora, e logo depois voltando raivosa por esquecer de bater o cadeado.


As ruas começaram a encher de crianças e adolescentes, saindo ou indo para as escolas. Gostava de observar e catalogar para qual escola ia qual, já sabia até os nomes. Guillhobel, Avertano, aquela era uma aluna do Paes de Carvalho? Quase sentiu pena da moça, era uma viagem e tanto; Alguns perdidos sem uniforme, UEPA ou UFPA, tanto faz. Universitários exalavam sempre o mesmo ar de "Senhor amado, preciso resolver essa apostila…"


Enquanto seu ônibus não vinha — e ô onibuzinho pra demorar, aquele — ia observando um por um. Era engraçado ver o exagero de cada um, ver como pequenas coisas e pequenos dramas enchiam as vidas rápidas deles. Quantas saudades tinha daquelas preocupações que pareciam o fim do mundo quando, comparado ao que ela vivia agora, eram mais como pedras caindo em um lago, não faziam tanta diferença quando se juntavam a tantas outras no leito que era seus problemas. Mas ainda assim, achava uma fase tão bela. Quem dera poder voltar e só se preocupar com a sua nota em matemática e dar uma desculpa pra não fazer educação física.


As luzes dos postes começaram a acender, amareladas e difusas em suas lentes grossas de camelô. Anotação mental pra ir num oftalmologista de verdade. Quando viu, lá longe, um letreiro que dizia "São Brás". Ah, já não era sem tempo! Fez o sinal com a mão, sinalizando para o seu amor parar. Entrou nele, com pressa, notando ser o das 18:45. É, estava atrasada.


— Boa noite! — disse enérgica e saudosa, por ver a cadeira individual vazia.

— Boa noite, loirinha! — disse o motorista, já partindo da parada.

— Égua do apelido, hein? — disse, mortificada pelo apelido mas no fundo rindo dele.

— A loirinha do pop! — completou o cobrador.

— Agora me deu medo. — disse, passando da roleta e acenando pra ele, já sentando em sua amada cadeira. Há poucos prazeres na vida maiores do que a cadeira individual do ônibus e conhecer quem tá operando ele.


Puxou os fones da mochila e já conectou no celular. Pobres aqueles que não gostam de música. Só música pra se aguentar uma viagem de Icoaraci até o centro, meu compadre.


Logo uma música pop qualquer ecoou pelos seus ouvidos, mas era "São Amores" que abalava fora deles, na caixinha de som estridente do motorista, enchendo seus tímpanos e fazendo-a sentir o vento no rosto com mais agrado, quem não gostava de uma boa marcante que atirasse a primeira pedra. Poder abrir a janela sem ninguém encher o saco era um privilégio. E devia reconhecer, isso era muito bom.


Aquela era uma de suas preferidas. Mesmo que estivesse na correria sempre, quando entrava no ônibus e via o céu pintado de tons de roxo e azul, seu peito enchia de ternura. Não era todo mundo que podia dizer que morava em um lugar bonito desses, apesar de todos os pesares. As luzes dos postes passando em seguida, o cheiro das árvores… Enfim. Tudo era muito bom, apesar de tudo.


Logo as gotas começaram a respingar nas janelas, uma após outra sem cessar. Foi uma boa ter trazido o casado. Pôs ele e o capuz, dando uma última olhada nas notificações. Dando-se conta que nada de importante havia, enfiou a mochila do lado do banco, caso algum engraçadinho tentasse passar o sal nas suas coisas e encostou a cabeça no vidro, fechando os olhos. Só fechar os olhos, claro… Nada de dormir, não...


°°°

Estava à beira do lago outra vez. Era sempre assim. Quando sonhava, estava sempre na frente do lago. O lago da sua casa. Sabia que sonhava e dessa vez sentia que tinha poder para alterar qualquer coisa que quisesse. Mas ainda assim não queria de fato, sentia que tinha que ficar em terra. Porém, algo borbulhou no lago. Instintivamente deu dois passos para trás, apreensiva, e viu com alívio uma vitória-régia desabrochar. Entretanto, a flor era diferente daquelas que costumava ver no saudoso Bosque Rodrigues Alves.

Viu-a abrir, em lúgubres tons de roxo e preto, espalhando um ar mórbido e doce de putrefação. Viu a floresta e tudo que a densa névoa de morte tocava desvanecer e morrer, tentou se afastar porém as pernas tinham peso de chumbo, e o sono era tão grande. Não podia, não, não devia… Oh, por Deus...


O solavanco e as buzinas a acordaram freneticamente, com o coração em frenesi checou para ver se sua parada não tinha passado e, com um suspiro, constatou que não. Em algum lugar do centro se encontrava, era óbvio. Com as mangueiras e todo o verde, pelo menos havia alguma beleza. Sua pele se encontrava arrepiada e suada no pescoço e na testa, onde sua franja havia grudado. O chuvisco continuava a cair lá fora, constante e impiedoso, fazendo-a descer num asfalto alagado com uma sombrinha de dez conto. Chegou ao trabalho com a barra da calça molhada e o humor não tão dos melhores para atender clientes que se achavam donos dela. O bar aberto já demonstrava a vontade de alguns clientes de, faça sol ou faça chuva, tomar uma cerveja trincando de gelada acompanhada de um salaminho no limão e sal. Ou um limão e sal na cerveja acompanhado de salame… Bem, não importava, todos iam parar no mesmo lugar, que seria ou no banheiro do Dirochas ou no beco do lado dele.


Colocou o avental preto com olheiras lhe piscando em frente ao espelho, ensaiando seu melhor sorriso plastificado e descendo as escadas. Havia grandiosas xícaras para limpar e mesas para polir, alguns de seus colegas já encontravam-se servindo as mesas, competindo entre si pelos melhores sorrisos sarcásticos. Miguel, o dono do local, chegou pavoneando-se, como sempre, cheio de sorrisos e abraços inconvenientes em tempos pandêmicos, gritando um sonoro “boa noite, família” com sua voz anasalada. O nome dele na verdade era Gernâncio, mas se o chamasse assim, seria capaz de ele dizer que a pessoa estava sendo homofóbica com ele.


Os minutos andavam se arrastando com a velocidade de uma tartaruga cega, e já havia passado por tantos clientes quanto necessário para dizer que tinha trabalhado naquele dia. Quando terminou de limpar uma mesa ao lado de um casal que brigava, seu humor já estava no limite. O casal não parava de discutir desde que haviam chegado e muito menos de pedir coisas. Eles continuavam a se xingar quando Maria chegou com as duas cuias de tacacá fumegantes abarrotadas de camarões e jambu, mas eles continuavam como se ela nem estivesse ali.


… Então me explica o que era aquilo no Messenger, Guilherme. A garota sabia até onde você morava!

Todo mundo sabe onde eu moro, Ana Luíza! Eu tenho 15k no instagram, — disse, com ar superior — E dou bom dia todo dia pela mesma janela ouvindo a mesma música foda. Se você se atualizasse, saberia.

— Como se me interessasse! O que eu quero saber é sobre as fotos, Gui! Os áudios! Ela estava te chamando de amor… — disse, já com a voz embargada.

— Nada de mais. É só uma amiga. — retrucou o rapaz, com olhos nervosos pra comida. A mão que segurava o forcado de madeira falhou ao espetar um camarão fumegante.

— Sabe, eu tinha esperanças que você fosse sincero, Gui. De verdade. Estamos há cinco anos juntos, eu larguei tudo por você. Toma. — disse, de forma magoada, atirando uma ruma de papéis na cara dele, junto com o anel prateado que incrustava o dedo dela. Maria notou ser fotos íntimas, boquiaberta, o paninho esfarrapado em sua mão parou de esfregar a mesa, atento a tudo. Viu o cara pegar as fotos de olhos esbugalhados e logo gritar.

— Você tá ficando lesa, Ana Luíza?! Que porra é essa?

— Não, lesa nunca fui, só quando aceitei ficar contigo. E quer saber? Vai é te foder que é! — E como se o caos se abrisse, a moça pegou a cuia fumegante e atirou no rapaz, com camarões, forcados e tudo. Ele gritou, colocando as mãos no rosto desesperado, e ela saiu andando. Maria sentiu o solavanco quando Ricardo passou ao seu lado, indo socorrer o moço como uma muralha em movimento.

— Por tudo que é mais sagrado, mano, você tá bem?

— Eu tenho cara de estar bem, palhaço?

— Eu vou buscar água, okay?

Maria viu Ricardo sair apressado com uma meia carranca, porém ela não mexeu um dedo sequer. O cara parecia ser um escroto de primeira. Que se fodesse, como a moça havia dito. Seu celular gritou com a notificação que chegou do seu grupo de três amigos, o único que ela deixava ligado. Só viu pela barra de tarefas e quase cascou o bico na cara do rapaz arrogante. Era um vídeo do cara e vários boomerangs do tacacá sendo jogado na cara dele. Nunca ficou tão feliz por estar viva.


Depois daquele acontecimento, nada mais na noite chamou a atenção. Se desligou de tudo entre suas tarefas e só se deu conta quando a porta de enrolar já estava sendo fechada e ela com sua sombrinha amarela. Foi andando em meio as despedidas e desejos de boa noite. Decidiu parar no bar próximo para pedir um churrasco, o RexPa rolava a todo vapor sem nenhum dos dois times realmente fazer algo que preste. Até escondeu o brasão do moletom azul claro, porém o lobo de capuz não fez muito pra ajudar. Viu a cadeira a frente ser puxada por uma menina de vestido branco, as pontas estavam arroxeadas da chuva ralinha que caía e Maia não pôde deixar de notar os seios sem sutiã com leves marcas de piercing, desviou envergonhada, isso era coisa de homem fazer, não ela. Geralmente só ficava olhando disfarçadamente sonhando com os filhos que nunca teriam e quando a pessoa dizia sim no altar, ela notava essa mesma sumir e ir embora do recinto sem que ela houvesse dito ou feito nada. Ser tímida era uma merda.


Viu-a acender um cigarro e logo a fumaça preencheu seu nariz, assim como o pedido imaginário de divórcio, odiava cigarros.

— Tem pensamentos rápidos, pacoba.

— Oi?

— Paysandu ou Remo? Ah, que besteira a minha. Óbvio que é Paysandu.

Estava atônita. Não sabia realmente o que responder.

— Você dança pra muitos lugares e não vai realmente para nenhum. Deve escolher logo. Se eu fosse você, não voltava para casa. Convidaria você pra minha, porém, chegaríamos lá e você ainda não saberia o que me dizer.


Ela se levantou ao mesmo tempo que sua refeição chegou sem realmente Maia conseguir dizer nada. Poxa, será que suas respostas só ficavam realmente pros nojentos da rede social? Viu ela ir e atravessar no meio dos ônibus. Os enfeites marajoaras como se passando pelo corpo dela. Foi pisada por uma mulher gostosa e gostou. Parabéns pra ela.


Pegou a refeição em cima da mesa dando o dinheiro a moça e seguindo seu caminho para casa, o ônibus passou rápido e isso fez sua vida mais legal. O ar estava frio e gélido, e um restolho de gripe em seu nariz voltou para lhe lembrar que ainda não estava totalmente bem. Foi logo pegando o molho de chaves no bolso para entrar, estava com muito sono. Não tinha notado estar tão cansada até estar perto da sua parada. Desceu aspirando o ar sem o queimado de gasolina, libertador depois de tudo o que aconteceu no dia. Deu alguns passos pensando no litro de açaí que tinha em casa, estava meio azedo mas quem ligava. Um pouco de açúcar e o churrasco que trazia e já estava bem.

Entrou em casa já tirando toda a tralha e jogando por qualquer canto, seguindo pra minúscula cozinha e acendendo as luzes. Dispôs as coisas de forma a comer o mais rápido possível, e comeu quase sem mastigar, estava tudo tão bom e ficava melhor com ela scrollando e vendo memes repetidos. Deixou a louça na pia e depois do banho, logo deitou. Amanhã era outro dia.


Estava no deck de casa. De novo. A água, verde e escura, começou a borbulhar outra vez. A vitória-régia surgiu de novo, borbulhando e soltando sumo negro, dessa vez ela subiu mais e mais. Maia só conseguiu observar.


— Garota, levanta. Agora!

— Por tudo que é mais sagrado, o que você está fazendo aqui?!

— Não adianta falar comigo grogue e não volte a dormir. Levante e venha. Eu disse para não voltar para casa. Achei ter sido bem clara.


O som de choque na madeira com o peso foi o suficiente para tremer a casa toda. Um ser surgiu do lago abaixo, com cordões de plantas por todo o corpo, a expressão no seu olhar parecia gritar para correr. A moça colocou Maia atrás de si, se colocando como escudo. Ouviu dela um profundo "pedi pra você não vir." O que diabos estava acontecendo ali?



4 de Fevereiro de 2021 às 00:36 3 Denunciar Insira Seguir história
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Sabrina Andrade Sabrina Andrade
Olá, sou a consultora Sabrina. E trabalho para uma plataforma de livros digitais. Gostei bastante da sua história. Se estiver interessada em saber mais. Entre em contato comigo através do WhatsApp: 92984759876
July 20, 2023, 02:46
Palas Palas
Amei~ muito, muito gostoso de se ler! É um mundo tão vivo que o contraste com o cenário do lago pro qual a protagonista volta, meio impreciso, só deixa os dois mais fortes. O retrato da vida urbana aqui conduz a história de um jeito que eu nem vi passar, e olha que minha atenção é ruim de ficar no lugar, viu 👀 em particular, a parte dela trabalhando no bar e parando pra ver o salseiro do cara levando um tacacá na cara foi tão divertida que eu me senti lá, parte do público. Saudade de um barzinho, putz. E terminou em uma nota que definitivamente me fez querer ver mais! Parabéns, fez a manhã do meu domingo muito melhor :)
January 23, 2022, 14:05

  • Blue Martell Blue Martell
    Nossa, fez meu domingo seu comentário também, de verdade. Eu decidi escrever porque geralmente as histórias que eu vejo ambientadas são mais sudeste e sul, queria algo em que eu pudesse colocar a minha regionalidade, sabe? Fico feliz que a história tenha te trazido até aqui. O próximo capítulo eu pretendo postar o quanto antes, já tá em processo de escrita. Muito obrigada pelos elogios, de verdade 💙✨ January 23, 2022, 14:09
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